A revista The Lancet publicou a 26 de Fevereiro o maior estudo mundial até hoje feito sobre a violência que sofrem as mulheres em contexto íntimo. Realizada com base em dados globais da Organização Mundial de Saúde e mais de 330 inquérito e estudos em todo o mundo (de 2000 a 2018), a pesquisa cobre cerca de 90% das mulheres de todo o mundo.
O estudo contemplou mulheres entre os 15 e os 49 anos e, no total, 27% da população analisada foi ameaçada, agredida ou violada, pelo menos uma vez, em algum momento da sua vida, pelo companheiro ou ex-companheiro. Uma em cada sete mulheres (13%), sofreu algum tipo de violência durante 2018, último ano incluído neste estudo da OMS.
De uma forma global, os dados mostram que, “embora tenham havido avanços nos últimos anos, estes são ainda extremamente insuficientes para cumprir a meta dos Objectivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) de eliminar a violência contra as mulheres até 2030”, avisa a co-autora do estudo, Claudia García-Moreno, da OMS.
Recorde-se que em 2013, quando a OMS publicou as primeiras estimativas globais sobre a prevalência de violência física e/ou sexual de parceiros era de 30%.
Os autores do estudo pedem, pois, que “se invista urgentemente em intervenções multi-sectoriais eficazes e que se reforce a resposta de saúde pública” para fazer frente ao problema.
Entretanto, alertam os autores do estudo, apesar da imensa cobertura do mesmo, tendo em conta que as estimativas se baseiam em relatos das mulheres, e “dada a natureza delicada e estigmatizada do tema, é provável que a verdadeira prevalência da violência a que as mulheres estão sujeitas por parte dos companheiros seja ainda maior”.
Jovens
Os dados do estudo, que se intitula “Global, regional, and national prevalence estimates of physical or sexual, or both, intimate partner violence against women in 2018”, mostram que a violência sobre as parceiras começa cedo. Uma em cada quatro jovens (24%) das mulheres entre os 15 e 19 anos sofreram violência pelo menos uma vez. E, em relação à violência vivida no último ano analisado (2018), a prevalência nessa faixa etária é superior à média global da população do estudo: 16% das jovens, contra 13% da média total. Os autores consideram estes dados “alarmantes”, tendo em conta que essas idades são etapas importantes, “nas quais se constroem as bases para relações saudáveis”, como refere Lynnmarie Sardinha, da OMS, outra das co-autoras do estudo.
Conforme acrescenta, torna-se necessário “investir em intervenções comunitárias e escolares efectivas que promovam a igualdade de género e reduzam o risco de as mulheres jovens serem objecto de violência por parte dos seus parceiros íntimos”.
Regiões
O estudo faz também o recorde regional, concluindo que os países de baixos rendimentos reportam uma maior taxa de prevalência, que se torna mais acentuada no recorte temporal do último ano.
Quanto às macro-regiões, África contava com a maior quantidade de mulheres vítimas de violência ao longo da sua vida (33%), seguindo-se a Oceânia (30%), Ásia (27%), América (25%) e Europa (20%).
Em termos sub-regionais, a Ásia Central (18%) e Europa Central (16%) foram regiões com menor estimativa. A África Ocidental apresenta uma estimativa de 27% de prevalência.
Analisando as vítimas de violência cometida pelo parceiro, pelo menos uma vez na vida, Kiribati (53%) e Fiji (52%) são os países com taxa mais elevada, enquanto Arménia e Georgia, ambos com prevalência de 10%, são os menos violentos. No quadro de actos cometidos no último ano, Singapura apresenta a menor taxa, 2%, e há vários países com taxa de 3%. Com taxa de 35%, o Afeganistão foi o país com mais violência em 2018.
Cabo Verde
Embora o estudo publicado não apresente os dados por país, é possível encontrá-los no Anexo Suplementar (também disponível online). Olhando o caso de Cabo Verde, a estimativa é que 19% das mulheres (entre 15 e 49 anos) tenham sofrido algum tipo de violência por parte dos seus parceiros íntimos em algum momento da sua vida.
Cabo Verde apresenta assim uma taxa menor do que países desenvolvidos como a França (22%) e Reino Unido (24%). Também tem prevalência mais baixa do que países nórdicos, geralmente os mais bem classificados em índices ligados aos direitos humanos, como a Noruega, a Suécia ou a Finlândia, que aqui apresentam uma prevalência da violência ao longo da vida de 20% e 21% e 23%, respectivamente. Os EUA ficam também mal no quadro com 26%.
Porém, quando o cenário analisado é o último ano para o qual há dados (2018), Cabo Verde mostra números mais preocupantes. A prevalência da violência é de 11%. Voltando aos mesmos países de comparação: A Finlândia tem uma taxa de 8%, a Suécia de 6%, a França de 5%, o Reino Unido e a Noruega ambos de 4%. Os EUA têm 6%.
Quanto aos países da CPLP, Portugal é o que apresenta melhor quadro, com uma taxa de 18% ao longo da vida, e de 4% no último ano. Segue-se o Brasil com 23% e 6% respectivamente. São Tomé e Príncipe apresenta 27% e 18%, Moçambique 30% e 16%, Angola 28% e 25% e Timor-Leste 38% e 28%. Não há dados para a Guiné-Bissau.
Dentro da sua sub-região, Burkina Faso tem exactamente as mesmas taxas de Cabo Verde: 19% analisando toda a vida, 11% no recorte do último ano. No que toca a violência ao longo da vida, são os melhor pontuados. Contudo, Gâmbia e Gana, apesar de apresentarem neste indicador uma taxa de 25 e 24% respectivamente, têm uma taxa relativa a 2018 de 10%. Em África, o país menos “violento” são as Comores (taxas de 16% e 8%).
Pandemia
Os últimos dados do relatório, como referido, reportam a 2018. Antes da pandemia, portanto. No entanto, e como aponta o Estudo, outras pesquisas recentes mostram que a pandemia exacerbou problemas que levam à violência contra a companheiro, nomeadamente factores como o isolamento, depressão e ansiedade e uso de álcool, além da redução de acesso a serviços de ajuda na pandemia.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1058 de 9 de Março de 2022.