Implementada em 2021, inicialmente como projecto piloto, a factura electrónica, ou e-Fatura, nome oficial, está em fase de adesão obrigatória desde Janeiro deste ano. A medida abrange todos os sujeitos passivos e ambiciona a redução da evasão e fraude fiscais, o aumento de arrecadação de receitas e uma maior equidade fiscal. Ao mesmo tempo, representa um grande desafio para os pequenos operadores informais de subsistência.
A pequena dimensão dos serviços fornecidos, a falta de estrutura administrativa, além da iliteracia digital e fiscal são alguns dos constrangimentos enfrentados por este segmento da população.
Rodrigo, nome fictício, encontra na venda de leite de cabra o rendimento de que precisa para sustentar a família. Diz que a e-Fatura não foi pensada para quem vive no meio rural.
“A electrónica para mim é difícil. Vai trazer-nos muita dificuldade, andamos a desenrascar para não eliminar a criação. Acho que deviam criar um sistema para que não tivéssemos problemas com o Fisco, um sistema que poderíamos realizar a e-Fatura. Eu poderia aderir, mas era se tivesse condições. Com maior criação de animais, criava empresa, agora, com duas cabras, ou duas vacas… Acho que foi uma medida pensada para gente grande. Uma pessoa que vende um feixe de palha tem necessidade de emitir e-Fatura?”, questiona.
Em situação semelhante, Domingos Mota, que começou a criar gado como alternativa ao desemprego, teme perder o único meio de subsistência de que dispõe.
“É diferente para uma empresa grande. No meu caso, que estou a iniciar agora, fica muito difícil. Não tenho condições para chegar a este patamar e aqui na nossa comunidade somos criadores e cada um vive na sua casa, com a sua família. Neste momento, as coisas estão caras, não está a dar para viver só com o trabalho no campo. Esta questão preocupa-me”, desabafa.
Repetem-se os casos de pessoas que dependem do “tirar um dia de trabalho”, da economia “da mão para a boca”. Saturnino Santos, pedreiro, considera que cabe ao governo a criação de uma solução que não deixe ninguém de fora.
“Há certas coisas que acontecem e nós não conseguimos acompanhar, porque não estamos dentro do assunto. Por exemplo, se trabalhamos para uma empresa que nos pede uma e-Fatura, se sabemos de antemão que vamos trabalhar com ela por um longo período, fazemos, mas isso é quando tens um trabalho fixo. Penso que o governo é que tem de ver a nossa situação, nós que não temos condições de implementar a e-Fatura, e encontrar uma solução”, apela.
Em 2022, segundo as estatísticas do mercado de trabalho, presentes no Inquérito Multiobjectivo Contínuo (IMC), publicadas pelo Instituto Nacional de Estatística, mais de 95 mil pessoas trabalhavam no sector informal.
Adelino Fonseca, contabilista, analisa o quadro actual e conclui que, apesar de ser uma boa medida, a factura electrónica pode estar a excluir quem, pelos mais variados motivos, não tem capacidade para emitir o documento.
“[O governo] tem de perceber que vivemos num mercado onde uma boa parte, sou capaz de dizer que quase 50% do comércio, é feito numa base informal. Neste momento, quem está a ser mais sacrificado são as empresas que têm um regime de contabilidade organizada, que têm de ter um documento como deve ser. Podemos dizer que só se aceitam serviços de quem pode emitir uma factura electrónica, mas há casos, garantidamente, em que não há alternativas”, realça.
Precisamente, os empresários formalizados também se queixam de dificuldades nas transacções com pequenos operadores informais que não dispõem de uma estrutura administrativa minimamente organizada. Em muitos casos, os negócios formais dependem desses fornecedores para garantirem a sua própria actividade.
Um restaurante não pode não comprar peixe ou verduras. Um proprietário de uma carrinha de aluguer não pode não ter quem carregue a carga que transporta. Um produtor de queijo não pode não comprar leite. Acontece que, sem um comprovativo conforme com os requisitos legais, não é possível comprovar as despesas junto do Fisco.
Carlos Araújo, sócio de uma unidade de produção de queijo fresco, em São Vicente, diz que a empresa acumula prejuízos, que comprometem a tesouraria.
“A minha empresa está completamente afectada por isto, porque trabalhamos junto da população, das pessoas que subsistem no seio dessa sociedade, e essas pessoas subsistem vendendo pequenas coisas. Eu compro leite a pessoas que têm três, quatro, ou vinte cabras. Apresento as minhas despesas com a compra do leite, mas como não tenho a e-Factura [desses fornecedores], não são tomadas como despesas”, sintetiza.
Romilda Gomes, que opera no sector de restauração, afirma não ter alternativa a comprar no sector informal, mesmo não conseguindo justificar a despesa.
“É uma questão que não se põe. Um restaurante em pleno São Vicente que não vende peixe e marisco? Não vou dizer aos clientes que não tenho. Não tem como não comprar, é obrigatório. Não vou reduzir a minha oferta apenas a produtos que se podem comprar com e-Factura. Se assim fosse, nunca se poderia vender um peixe, nunca se poderia vender um marisco, nunca se poderia vender uma mandioca, nunca se poderia vender uma batata doce, nunca se poderia vender, basicamente, o que é mais procurado”, reforça.
Para Romilda, a implementação da factura electrónica não levou em conta as especificidades do mercado nacional.
“Houve toda uma pressa em implementar a e-Fatura sem, de facto, se criarem as condições e disponibilizar as informações necessárias para que isso fosse colocado em prática. Conheço uma microempresária que faz bolos para colocar nos supermercados e teve de andar à procura de ajuda para poder atender às exigências. Foi criado um sistema com condições para fazer isso e aquilo, mas na prática nada foi feito para informar as pessoas”, sinaliza.
A e-Fatura pode ser emitida através de um emissor público de acesso gratuito, alojado no site da Direcção Nacional de Receitas do Estado, ou via softwares certificados.
Em rigor, o novo modelo de facturação prevê a implementação de um sistema de autofacturação, através do qual o cliente se substitui aos seus fornecedores na emissão das respectivas facturas. Contudo, o mecanismo ainda não está em vigor, por falta de regulamentação. O contabilista Adelino Fonseca critica a demora.
“Às vezes, os políticos dizem que estão a criar um ambiente favorável, com conversa bonita, mas na prática, na parte operacional, não é bem assim. Por exemplo, a lei prevê a autofacturação e tenho seguido isto com atenção, porque para mim é uma solução para resolver ou mitigar um bocado este problema. Estamos a falar de capacidade técnica e logística, porque [os fornecedores] têm de saber mexer no programa e lidar com os meios de comunicação”, adverte.
Questionada sobre a regulamentação da autofacturação, a Directora Nacional de Receitas do Estado (DNRE), Liza Vaz, antecipa que a expectativa é que tudo esteja a funcionar no próximo ano.
“A autofacturação vem dar uma resposta. Faltam alguns aspectos a serem regulamentados, nomeadamente questões que tinham que ser definidas para evitar algumas situações de auto-abuso, que não ficaram definidas e as directrizes em termos de software que vai introduzir essa possibilidade do contribuinte autofacturar. De acordo com o nosso plano de trabalho, estas dificuldades ou estes desafios estão a ser superados e na lei do Orçamento de Estado vamos introduzir alguns aspectos”, garante.
Liza Vaz realça que estamos perante um novo contexto, com ganhos para todas as partes. A melhoria da contabilidade e uma maior facilidade no cumprimento das obrigações fiscais, a par de um reforço da transparência nas relações com o fisco, são ganhos apontados pela dirigente.
Em jeito de alerta, o economista Agnelo Sanches recorda que, na realização de reformas estruturantes, a intervenção do Estado deve ser consistente, para que o produto final não seja resultado de um processo inacabado, com consequência sociais.
“Tem de haver combinação de políticas, de medidas, sobretudo o apoio aos que teriam menos possibilidades de aderirem com facilidade a novas modalidades e novos instrumentos, para podermos dar a todos as mesmas condições de acesso ao mercado e às oportunidades. Assim, estaríamos a colocar todos numa posição de equidade”, diz.
Já Ailton Tolentino, gestor de negócios da Cegid Primavera – Cabo Verde, especializada no desenho, implementação e suporte de softwares de gestão empresarial, acredita que, com o tempo, serão desenvolvidas soluções mais ágeis, que respondam às novas necessidades específicas.
“Os produtores de software, ou qualquer jovem empreendedor que queira aproveitar esta oportunidade, poderiam desenvolver sistemas de facturação ágeis, através de smartphones ou tablets, que possam ser utilizados por taxistas, por agricultores, que são pessoas que não têm um computador à frente, por exemplo”, desafia.
Com a e-Factura, o processo de facturação é completamente digital, tanto na emissão, como no envio, recepção e arquivo das facturas. A autenticidade da emissão, assim como a integridade dos dados que constam dos documentos, são garantidos por assinatura digital.
Esta reportagem foi produzida no âmbito da bolsa de jornalismo sobre Infra-estruturas Públicas Digitais (DPI), organizada pela Fundação dos Media para a África Ocidental e o Co-Develop.
*da Rádio Morabeza
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1144 de 1 de Novembro de 2023.