Com sede na ilha da Boa Vista, há vários anos que a BIOS.CV se dedica, entre várias outras acções de conservação, à observação e estudo da dinâmica de animais como aves marinhas, tartarugas e tubarões, e realiza um censo mensal destas populações. Como parceiros neste trabalho conta com a comunidade piscatória que lhe reporta as suas próprias observações.
“Temos um projecto chamado Guardiões do Mar e trabalhamos com os pescadores” que vão dando assim o seu contributo para esta monitorização, conta Samir Martins, secretário da ONG.
Com essa rede de colaboração no terreno é pois, com muita certeza, que se pode afirmar que já não há Fragatas (Fregata magnificens), também conhecidas localmente por Rabil, em Cabo Verde.
De vez em quando ainda há avistamentos destas aves, mas não são residentes. Crê-se que sejam indivíduos do outro lado do Atlântico.
“Quando eu comecei a trabalhar na conservação, há 15 anos, havia três fêmeas e dois machos”, recorda o biólogo conservacionista. Colocavam ovos, mas não nasciam [crias], crê-se que por motivos de consanguinidade e pelo envelhecimento dos animais reprodutores. A população tornara-se infértil.
“Segundo o meu colega Pedro López, que trabalha com as Fragatas há mais de 20 anos, a Fragata não teve sucesso reprodutivo entre 1999 e 2017, ano em que foram vistas as duas últimas fêmeas da população”, explicita.
Duas das fêmeas, ou seja, dois ‘fósseis vivos’, assim chamados, por alguns, pela impossibilidade de reprodução que, inevitavelmente, leva à extinção. Um termo que, no entanto, Samir Martins rejeita.
O que é certo é que “o último filhote foi fotografado por Nick Willians, em Março de 1998”. Não se conhece qual foi o destino desse indivíduo.
O que levou ao desaparecimento gradual da Fragata terá sido um conjunto de factores. A somar aos referidos problemas reprodutivos de uma população muito reduzida está o facto de esta espécie ter características que a tornam muito dependente de outras.
“Apesar de ser uma ave marinha, ela não entra em contacto com a água, porque se o faz as suas plumas ficam molhadas e não consegue voar”, explica Samir Martins.
É que, ao contrário das outras aves marinhas, que produzem óleo que espalham pelas plumas, impermeabilizando-as, as Fragatas não têm essa capacidade.
“O que fazem, então, para se alimentar é roubar peixe das outras aves. Se há um problema com outras aves, elas sofrerão também”.
Assim, neste ecossistema, os problemas que afectam uma espécie, afectam também outras. Há, por exemplo, a destacar como factor directo e indirecto do declínio das Fragatas, as perturbações antropogénicas, nos ilhéus da Boa Vista (nomeadamente Baluarte e Curral Velho, onde foram vistos os últimos espécimenes), uma vez que houve um aumento do acesso de pessoas aos mesmos, perturbando o seu habitat e nidificação. E há inclusive o consumo das aves para alimentação.
No caso das aves marinhas, salienta-se também a pesca acidental, sendo que milhares de aves morrem anualmente, em todo o mundo, presas nas redes e anzóis dos pesqueiros industriais.
“Uma outra ameaça que estamos a quantificar agora é a iluminação. As aves vêm à noite e a iluminação dificulta o acesso” aos locais, conta o biólogo. Microplásticos, electrocussão, seca e mudanças climáticas e ainda a questão de predadores naturais, como gatos e outras espécies “invasoras” das ilhas, são outras ameaças elencadas.
Mas voltando às Fragatas. Hoje não há mais Fragatas de Cabo Verde. O processo, anunciado, de extinção não foi revertido.
“Estavam condenadas à extinção salvo se se fizesse alguma intervenção rápida. Ideias houve, mas não houve financiamento” para trazer espécimenes de outras paragens para repovoamento, recorda.
Fragata de Cabo Verde
A Fragata (Fregata magnificens) não é uma ave considerada em risco, a nível mundial. Há, de acordo com as estimativas publicadas na Lista Vermelha de Espécies Ameaçadas da União Internacional para Conservação da Natureza (IUCN), milhares de exemplares (cerca de 130 mil), concentrados essencialmente nas regiões costeiras da América do Sul e Central. No Oceano Atlântico, Cabo Verde seria o ponto mais a Leste, onde seria possível encontrar exemplares.
Assim, a Fragata, ave que inclusive deu o nome à revista que a companhia de bandeira (TACV) tinha, embora emblemática, não é uma espécie endémica (ou seja, exclusiva) de Cabo Verde.
Porém, nos últimos anos, tal como tem ocorrido para outras espécies, estudos avançados com recurso a DNA, têm descoberto sub-espécies que são, sim, endémicas. Deverá ser o caso da Fragata.
Um estudo de 2021, publicado um ano depois na Conservation Genetics e intitulado “Cores, bordas e além: perspectivas sobre a filogeografia das aves fragatas com foco em populações ultraperiféricas e endémicas” assim o sugere.
No estudo, foram avaliados e comparados os padrões filogeográficos de Fragatas a nível mundial e em regiões ultraperiféricas isoladas, entre as quais Cabo Verde. A conclusão é que as amostras “mostraram ser geneticamente divergentes” das principais populações.
Embora o estudo reconheça algumas limitações na análise, que condicionaram uma compreensão completa da filogenia, o uso de DNA mitocondrial revelou padrões genéticos, indicando diferenças significativas entre as populações.
Os autores destacam a importância de futuras análises genómicas para uma compreensão mais aprofundada da evolução dessas aves na região, mas conclui-se que as Fregata magnificens de Cabo Verde podem ser na verdade uma subespécie única.
Uma subespécie endémica que agora já não mais existe…
No vermelho
O que aconteceu com a Fragata poderá acontecer em breve com várias outras aves.
“Em Cabo Verde o que está a acontecer é que há uma extinção em silêncio de algumas espécies”, denuncia Samir Martins.
Os dados sobre a biodiversidade em Cabo Verde estão manifestamente desactualizados. A lista que consta, por exemplo, do recente decreto-lei “que estabelece medidas de conservação e protecção das espécies da fauna e flora” (DL n.º8/2022 de 6 de Abril) recorre, para a maioria das classes, à única Lista Vermelha alguma vez realizada no país. Ora esse documento, que informa sobre o estado de conservação das espécies nativas e endémicas de Cabo Verde, data já de 1996 e todos ambientalistas defendem a necessidade de uma actualização urgente.
“Há espécies que já estão extintas, e isso não consta do documento, e, por outro lado, há outras espécies que já melhoraram”, aponta o biólogo.
A Fragata (Fregata magnificiens), que, como referido, já é tida como extinta, aparece na lista que acompanha o decreto ainda como “Em Perigo Crítico”.
No mesmo caminho do desaparecimento parecem seguir espécies como o Falcão Peregrino (Falco peregrinus madens), ave endémica, essencialmente de Santiago, que na lista aparece como “Em Perigo”. O Passarão (Neophron percnopterus), também conhecido por minhoto-branco, ou abutre-do-egipto, uma espécie nativa, tida como “Em Perigo”, também já está “praticamente extinta” na ilha de Santiago. Neste momento, existente apenas em Santo Antão e Boa Vista, sendo que nesta última ilha a BIOS.CV tem trabalhado, desde há vários anos, na sua monitorização e conservação.
Em Santiago, destaca-se, por exemplo, um projecto da Lantuna, ONG a que Samir Martins também pertence, sobre a “garça-vermelha [Ardea purpurea bounei], uma espécie exclusiva da ilha que está criticamente ameaçada, “da qual se sabe muito pouco sobre a sua ecologia e comportamento.”
“Não sabemos quase nada!”, enfatiza.
Há vários outros casos conhecidos, mas que talvez sejam apenas uma parte da realidade. “Pode ser que haja mais…”
Assim, reitera, “há uma extinção em silêncio”.
Recursos e Prioridades
Samir Martins considera que um dos principais problemas colocados é o facto de, até agora, o Ministério do Agricultura e Ambiente ter-se confrontado com outras prioridades, o que tem constrangido um maior apoio, nomeadamente no acesso ao financiamento (nacional e dos parceiros internacionais), algo que é fundamental para realizar “acções para retardar essa extinção ou recuperar a população”.
O país, na verdade, reserva pouco financiamento para a área, obrigando as ONGs que trabalham na conservação a procurar apoio directo no exterior.
“De todo o financiamento, menos de 5% é fundo nacional. Não falo só do Estado, mas também do sector privado, que ainda mostra relutância em financiar a conservação”, aponta.
Tratando-se de espécies endémicas ou outras ameaçadas a nível mundial, é possível obter recursos, mesmo que poucos e quase sempre abertos apenas a espécies bandeira como tartarugas ou tubarões. Se uma espécie não está ameaçada no mundo, é quase impossível o financiamento externo. Foi o que terá acontecido com a Fragata…
O biólogo apela, assim, a que seja dada uma maior atenção e prioridade a estas questões.
Outra lacuna é a falta de meios para pesquisas científicas, falha que se tenta colmatar, mais uma vez, por meio da colaboração com entidades e institutos de pesquisa ambiental internacionais. Além disso, a nível interno, destaca-se a carência na divulgação dos trabalhos já realizados.
Por exemplo, no que diz respeito a aves, “nos últimos cinco anos, graças a um financiamento enorme de fundação MAVA, houve muita produção científica. Houve doutoramentos e mestrados [na área] e foram feitos mais de trinta artigos sobre as aves que foram publicados em revistas de renome internacionais. O problema é que não há divulgação”.
Samir Martins lembra que no caso das tartarugas houve produção científica, mas esta foi acompanhada de “muita divulgação e também sensibilização”, o que permitiu colocar este animal marinho sob os holofotes. O mesmo não acontece com as aves. “Estão atrás”.
De qualquer forma, reconhece, a questão da Conservação é algo relativamente recente, que só começou a ser encarada com algum vigor há cerca de 10-15 anos.
“Além disso, antes eram pessoas que vinham, faziam o seu estudo e iam. Agora é que os cabo-verdianos estão também a fazer estudos”, refere.
Boas notícias
Mas nem tudo são más notícias. Em Cabo Verde, tal como referido, as listas estão desactualizadas e, enquanto o panorama se agravou para umas espécies, outras saíram do “vermelho”.
É o caso da Cagarra (Calonectris edwardsii), uma espécie endémica presente sobretudo no Ilhéu Raso, que enfrentou quase a extinção. Graças ao trabalho das ONGs, com destaque para a Biosfera 1, a situação inverteu-se.
“Houve um esforço enorme, as coisas melhoraram bastante”, destaca Samir Martins.
Outro exemplo de sucesso é a endémica Calhandra-do-ilhéu-Raso (Alauda razae). Tal como o nome indica, a espécie existia apenas nesse ilhéu, mas foi reintroduzida, num trabalho também liderado pela Biosfera1, na ilha de Santa Luzia, onde fósseis encontrados atestaram a sua presença no local, em algum momento. A reintrodução, realizada em 2019, foi um sucesso, sendo que a retirada de gatos, predadores da espécie, terá sido um dos elementos que o permitiu. Com o aumento da área de reprodução, em quatro anos a população introduzida passou de menos de 100 indivíduos para cerca de 600.
Estes são alguns exemplos, mas a “conservação de aves marinhas no terreno tem sido muito forte em todas as ilhas”, observa o secretário da BIOS.CV. E, em muitos casos, tem mostrado bons resultados. Falta agora garantir as condições para que os bons exemplos se somem.
Reportagem realizada no âmbito da Formação em “Introdução às Ciências Climáticas e Ambientais” do Projecto CFI/Terra África
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Birdwatch
Cabo Verde tem vindo a assistir à mais-valia que pode ser o turismo associado ao ambiente e biodiversidade. O caso das Tartarugas e “romarias” aos seus locais de nidificação é, sem dúvida, o mais emblemático, mas há outros, com os berçários de tubarões, só para dar mais um exemplo. Uma das modalidades com um bom retorno é o birdwatching (observação de pássaros), que conta com algum nicho de mercado.
Porém, “já não dá dinheiro, com excepção das visitas clandestinas ao Ilhéu Raso”, expõe Samir Martins.
O que acontece é que as pessoas (incluindo os birdwatchers) publicam na internet os lugares onde fizeram os avistamentos. Então, muitos birdwatchers quando chegam a Cabo Verde, alugam carros e vão para os sítios.
Para gerar uma actividade económica seria fundamental, por exemplo, “a visita controlada e regulamentada às Reservas Integrais para olhar espécies como a Calhandra-do-ilhéu-Raso ou o Pedreiro-azul (Pelagodroma marina).”
@Fotos de Pedro Lopez, gentilmente cedidas por BIOS.CV
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1156 de 24 de Janeiro de 2024.