Falar de “África” é sempre um pouco complicado, e até falacioso, pois é um continente díspar. Mas tentando generalizar, na sua opinião, o que destacaria como o melhor que África tem para oferecer?
O primeiro aspecto que destacaria é a sua população. Todos os dados apontam que a África será o maior reservatório de jovens até 2050. Isso, por um lado, é uma oportunidade gigantesca para o continente, porque se traduz em mão-de-obra, energia criativa, até em participação cívica, mas também é dos maiores desafios que o continente enfrenta. O continente precisa de mobilizar entre 10 a 15 milhões de novos empregos por ano para ocupar esta força de trabalho jovem e não está a conseguir mobilizar, nem 5 milhões. Um outro aspecto que a África oferece é a sua diversidade, a diversos níveis: geográfico, da natureza; cultural; a nível da História; a nível de organizações sociais,... Enfim, sob quaisquer perspectivas, nós vamos encontrar diversidade em todo o continente. Isso leva-nos a uma reflexão sobre a tendência de olharmos para a África como um único país, uma coisa homogénea, quando a África é precisamente o contrário. A África é a diversidade a todos os níveis. Um outro aspecto, uma outra oportunidade, diria assim, que a África oferece tem a ver com o potencial de crescimento económico. Entre os 10 países que mais vão crescer nos próximos anos, há vários países africanos, portanto, não deixa de oferecer oportunidades muito interessantes, especialmente para pequenos países como Cabo Verde, cujo potencial de crescimento está um pouco abaixo do desejável, e que pode encontrar no continente alavancas interessantes para promover o seu crescimento económico.
Mas é também um continente de oportunidades que não se concretizam e “saída” dos seus recursos. Falou de que um dos maiores activos são os jovens, ora temos crescente emigração. Como vê esse fenómeno?
Vejo a questão da migração como resultado do cruzamento de três factores importantes. O primeiro factor, como referi, o défice em termos da criação efectiva de empregos – O continente precisa de entre 15 a 18 milhões de novos empregos por ano e está a gerar entre 3 a 5 milhões. Portanto, grosso modo, há 10 milhões de jovens que todos os anos entram na idade activa, mas que não estão a encontrar bons empregos, estáveis, bem remunerados, que possam levá-los a ficar no continente. O segundo factor que está a conduzir a este aumento da emigração africana tem a ver com o insuficiente espaço de participação dos jovens a nível da organização política e de funcionamento das sociedades. Já começa a haver tendências interessantes, de jovens a ascenderem a espaços de decisão, mas ainda é insuficiente e, naturalmente, isso pode gerar alguma frustração entre os jovens. O terceiro factor são os efeitos das mudanças climáticas, que ainda está a ser estudado, mas há já evidências substanciais de que afectam sobretudo países mais pobres. E os países da África subsaariana têm vindo a sofrer imenso com impactos das mudanças climáticas, que acabam por, em certa medida, forçar fluxos migratórios, não apenas dentro do continente, mas também para fora. Dito isso, há um aspecto que penso que é importante sublinharmos: há um viés na interpretação dos fluxos migratórios, sobretudo em direcção à Europa. A imagem que se tem é que o grosso do fluxo migratório para a Europa é africano. Nada mais falso. Dados da própria União Europeia mostram que o continente africano é origem apenas entre 23 a 25% do fluxo migratório para a Europa, incluindo fluxos legais e ilegais. Entre os cinco países que mais enviam migrantes para a Europa, nenhum deles é africano. Portanto, precisamos desmistificar ideias enviesadas.
Voltando à questão dos empregos, muitas vezes aponta-se como tríade essencial para o desenvolvimento económico e social o trabalho, a produtividade e o capital. Falando na produtividade, o continente ainda está aquém do desejado. O que acha que está a falhar?
Há uma tendência recente de melhoria que se tem constatado, mas, ainda há um longo caminho a percorrer para que o nível da produtividade no continente africano atinja o das melhores regiões comparáveis neste domínio. Apontaria como as principais causas dessa baixa produtividade, primeiro, a questão da tecnologia e da inovação. Apesar de hoje se constatar uma dinâmica bastante interessante em termos de polos de inovação no continente, ainda é preciso fazer muito para se criar as condições estruturais para promover e incentivar a inovação a nível do continente e a transformação dessa inovação em fonte de crescimento económico e de desenvolvimento sustentável. Há muito a fazer a nível do quadro político e legal e de políticas; infra-estruturas; capacitação, formação e educação; construção de ecossistemas indutores de inovação; mecanismos de transferência da inovação para o mercado e sua transformação em produtos e serviços passíveis de serem transformados em alavancas de crescimento económico. Um outro aspecto que também precisa de ser trabalhado é a governança e funcionamento das administrações públicas do continente, mas eu apontaria como uma razão-chapéu, uma área central para se trabalhar, a questão da liderança. É preciso que as lideranças africanas assumam a questão da inovação como uma prioridade, assumam a questão da boa governação como uma prioridade, e que aloquem os recursos necessários para o seu florescimento.
Apesar de bons sinais em muitos lados de África, a verdade é que quando já se falava de uma espécie de Renascença africana, temos assistido, em vários países, um retrocesso. Tivemos vários golpes de Estado, aqui na nossa sub-região, temos recuos democráticos. Como é que vê estes contínuos retrocessos?
Nós podemos analisar essa questão a, pelo menos, dois níveis; um mais imediato, mais na copa da árvore, e um mais profundo [mais na raiz]. No mais imediato podemos encontrar um conjunto de factores que estarão a contribuir para estas dinâmicas recentes. Os primeiros factores são de natureza económica, isto é, se olharmos para esses países onde se têm vindo a registar esses eventos reparamos que são países que atravessaram, ou estão a atravessar, problemas económicos substanciais que acabam por resultar em aumento do desemprego, preços, aumento do custo de vida ... Se repararmos neste plano económico, tem havido uma confluência de factores que incluem a diminuição de preços de algumas commodities, de que dependem várias economias africanas, no mercado mundial; a inflação global; os efeitos da covid-19; os efeitos da invasão da Ucrânia pela Rússia; o aumento de preços do petróleo no mercado internacional, portanto uma série de variáveis que acabaram por afectar substancialmente as condições de vida dos africanos em vários países. As pessoas reagem a estes desafios no plano económico, no plano sociopolítico e até militar. Um outro aspecto também a considerar nesta questão, é que tem havido uma onda de frustração dos africanos face a promessas não entregues ao longo da sua história recente. A promessa do movimento independentista não foi entregue. Isto é, se recuarmos a meados do século XX, uma das bases da legitimação desses movimentos era precisamente a promessa da melhoria da condição de vida das populações e isso em muitos países não se verificou. Isso terá gerado, na minha leitura, a primeira onda de frustração. Uma segunda promessa, já nos finais do século XX, é a da democratização, de que a introdução da democracia em vários dos países que na altura contavam com regimes de partido único, iria resultar na melhoria das condições de vida da população. O que é que se tem constatado é que esta promessa também não está a ser entregue e isso acaba por gerar uma segunda onda de frustração. Já neste século XXI houve essa promessa de que a globalização, a abertura de mercados, o ritmo de crescimento económico da África na primeira década do século, iria resultar, mais uma vez, em melhoria das condições de vida e mais uma vez, esta promessa não está a ser entregue. Portanto, estamos a atravessar uma terceira onda de frustrações que está a varrer todo o continente. Como é que as pessoas estão a reagir? Questionando os modelos existentes da governação, desafiando o status quo, desafiando, portanto, os conceitos e é nessa perspectiva que podemos entender até o apoio público, e sobretudo o apoio de jovens – é importante frisar - , aos recentes golpes militares na África subsaariana. Portanto, é nesse contexto que devemos interpretar esse processo de questionamento do status quo. Essa seria a minha leitura mais mediata.
Qual a outra leitura?
É uma discussão que se deve e pode fazer. Repare-se que há uma corrente da mainstream relativamente ao modelo de democracia. O que se tentou na África, e um pouco por todo o mundo, foi implementar o modelo de organização das sociedades que chamamos de democracia. Quando se pega em um “fato” que foi feito, desenvolvido em outras realidades, designadamente as ocidentais, e se tenta vestir este “fato” a realidades que têm um histórico aprofundado, que têm modelos de organização social tradicionais que ainda persistem, que estão bastante bem estabelecidos, fazendo tábua rasa desse histórico de valores, de perspectivas, de papéis e de responsabilidades de grupos diferentes dentro da sociedade, substituindo por um modelo teórico de democracia, há desajustes, há fricções. E essas fricções também acabam por contribuir para o quadro que vemos hoje.
Esses modelos de organização são antes da “régua e esquadro” da Conferência de Berlim... Vamos questionar os Estado-Nação?
Estado-nação e Democracia, são conceitos com cerca de 300 anos. Assumimos o modelo de democracia, muitas vezes, como o único modelo bom e até criamos uma dicotomia entre democracia e não democracia, em que a não democracia equivale a ditadura. Essa abordagem dicotómica, acaba por ignorar outros modelos de organização tradicionais, por exemplo, que existiam no continente africano milhares de anos antes do surgimento da democracia, que ainda persistem e que não são ditatoriais no sentido que nós assumimos, não são negativos no sentido que nós entendemos o não democrático, mas que já são utilizados para governar as sociedades tradicionais a nível do continente há milhares e milhares de anos. Em Cabo Verde não temos essa percepção, porque não temos sociedades tradicionais com milhares de anos. Somos uma sociedade muito recente.
E que já “nasceu” com instituições europeias...
Pois. Portanto, nós não sentimos. Um factor que acabou por surpreender-me, até certo ponto, e contribuiu para tomar consciência da necessidade deste debate, foi ter visitado e ter vivido durante este ano no Gana [no âmbito do doutoramento], onde as organizações tradicionais ainda coexistem com o Estado, com a democracia. Ainda neste mês de Maio foi o jubileu de prata do rei do império Ashanti. O Gana tem reinos, tem rei, tem estruturas tradicionais que são altamente valorizadas e respeitadas no plano social. Têm uma legitimidade que poderá não estar escrita na lei, mas que na prática ainda é bastante forte.
Mas isso não enfraquece o governo?
Há um debate muito forte sobre isso, mas acredita-se que não. Aliás, ainda ontem estive a ler um artigo de um investigador que pesquisa esta relação entre sistemas tradicionais de governo e Estados, e que faz exactamente esta pergunta: até que ponto, esses modelos da organização social enfraquecem a democracia? As conclusões são díspares. Claro que os modelos de organização tradicionais também não são uniformes ao longo do continente, variam de região para região, até dentro do país, de comunidade para comunidade, mas a correlação não é tão imediata. Há realidades, de acordo com esse pesquisador, em que o modelo de organização tradicional reforça a democracia, quando o nível de democraticidade desses modelos tradicionais é forte. Por exemplo, na Etiópia.
O Gana é tido como um exemplo de democracia aqui nesta zona Ocidental...
Sim, mas eu poderia apontar ainda um outro exemplo, que é do povo Oroma [povo nómada] na Etiópia, que há mais de 400 anos, portanto muito antes da introdução da democracia no mundo ocidental, já utilizava um sistema de organização social, o Gada System, que é profundamente democrático na sua essência, ainda que não seja considerado uma democracia. Portanto, precisamos, se calhar, de revisitar os modelos de organização tradicionais das sociedades que temos na África, e ver até que ponto esses modelos podem inspirar-nos para melhorar os sistemas democráticos que temos, que são imperfeitos. A democracia, pode estar em evolução, mas não é um modelo perfeito, tem as suas fraquezas e fragilidades. Enquanto africanos – não digo Cabo Verde porque a nossa realidade, como referi há pouco, é um pouco distinta, mas enquanto africanos - temos que olhar para os modelos tradicionais, inspirar-nos nos mecanismos internos que permitiram que esses modelos sobrevivessem por milhares de anos, e ver o que é que podemos aproveitar para melhorar a nossa democracia. Se houver uma decisão da população de que o modelo democrático é o mais apropriado para a sua realidade, certo. Só que o debate é tão fechado, tão sensível que sequer colocamos essa questão em cima da mesa para reflectirmos sobre ela. Qualquer tentativa de discutir a relevância, a utilidade e a qualidade da democracia, já corremos o risco de sermos taxados de anti-democráticos. E é isso que é um risco, é uma fragilidade neste debate.
Falou do descontentamento das populações. Temos visto um enfraquecimento do multilateralismo, e também o repúdio e animosidade crescentes para com o “Ocidente”, em particular a França, mas também EUA, e principalmente nos países que tiveram golpes de Estado. A que acha que este fenómeno se deve?
Se analisarmos essas questões do ponto de vista da população africana - e coloco a tónica na população africana, não falo das elites-, a arquitectura institucional global tem falhado para com a África, não obstante os fluxos financeiros, fluxos de ajuda pública ao desenvolvimento. Mas deixo aqui também uma nota: é uma falácia, ou não corresponde aos factos, que a África tem sido um recipiente substancial de fluxos financeiros líquidos. Dito de outra forma, está demonstrado, e a Dra. Cristina Duarte fez recentemente uma apresentação com dados muito robustos, que os fluxos financeiros que saem da África, incluindo os lícitos e os ilícitos, têm sido superior aos fluxos recebidos. Feito este aparte, os fluxos que têm sido direccionados para a África, a título de ajuda pública ao desenvolvimento e até de crédito, não têm resultado, no final da linha, na melhoria das condições de vida da população. A pobreza na África continua a ser um problema gigantesco, continuamos a ter uma percentagem elevadíssima de africanos que não dispõem ainda das condições básicas de sobrevivência, como energia, habitação, água, saneamento, comunicação, sistema de educação, sistema de saúde, etc. Portanto, eu acrescentaria, se calhar, esta onda da frustração, se colocarmos nesta perspectiva, que é a frustração para com o quadro institucional internacional, que não tem resultado na melhoria da condição de vida da população. Isso acaba por gerar um questionamento desse quadro, e até um posicionamento contra este quadro. Além disso, a forma como essas instituições, esses países, olham para a África não tem ajudado e isso pode ser visto em diversos momentos. Sou extremamente crítico com iniciativas como fóruns, cimeiras, país “tal”- África, que acho absolutamente paternalista. A África deve corresponder com outros continentes, a África não é um país. Portanto, tem-se revelado até na forma como as mensagens, mas também as agendas dessas instituições internacionais acabam por ser injectadas, ou até, de certa forma, forçadas a serem incorporadas na governação dos países africanos.
Também não é culpa das instituições africanas, nacionais e supra-nacionais?
É, com certeza, mas há aqui uma contradição. Não estou a descartar a responsabilidade dos governantes e líderes africanos e das instituições africanas nesse processo, mas essa fragilidade também resulta de dinâmicas muito complexas, a que não podem estar alheias essas relações que são estabelecidas entre as instituições internacionais, ou potências mundiais ou países fora do continente africano e a África. Para citar só um exemplo, recentemente a União Europeia assinou um acordo especial de comércio com o Quénia, ignorando a União Africana e o esforço que vinha sendo feito de uma negociação a nível do grupo de países daquela região. Quando a própria UE passa por cima de instituições regionais ou continentais na África, para discutir com países membros, o que é que está a fazer? Está a fragilizar essas instituições. Quando instituições internacionais, por exemplo, passam por cima de governos nacionais e vão directamente financiar projectos através de ONGs dentro desses países, estão a fragilizar os governos. Então, o argumento de que os governos são frágeis acaba por ser um argumento “ovo e galinha”, um argumento circular, porque os governos e as instituições também acabam por enfraquecer como resultado dessas dinâmicas, dessa tendência de se deixar à parte ou de se curto-circuitar essas instituições. Quando um país, como os Estados Unidos fez recentemente, e vários países têm feito, convida os líderes africanos para uma Cimeira, país “Tal” - África, está a fragilizar a instituição que devia representar o continente, que é a União Africana, ou as organizações regionais.
Há várias vozes, inclusive o governo e presidência cabo-verdianos a defender uma reformulação da arquitectura dessas instituições africanas. Está mal feita?
Não diria que está mal feita, diria que precisam ser melhorada e isso é um processo natural. As realidades evoluem, os contextos são dinâmicos, portanto as instituições devem acompanhar essas dinâmicas. Quando a União Africana foi criada, havia um outro contexto, e isso encoraja, a repensarmos a UA dentro deste novo contexto global. A mesma leitura relativamente à CEDEAO, que vem dando sinais evidentes de que precisa de ser repensada, fortalecida, revista em termos de arquitectura, de processo de funcionamento e de modalidades de intervenção. Portanto, não vejo nenhum drama nesta necessidade de ajuste, mas temos que colocar este desafio em cima da mesa de forma muito clara, honesta e construtiva, não no sentido de destruir essas instituições, mas de melhorá-las, porque não perderam a sua relevância. Pelo contrário, precisamos cada vez mais de instituições regionais e continentais, para a que a África, no plano mundial, possa desempenhar um papel que corresponda à sua importância objectiva.
Falando da ligação entre a geopolítica e a concessão de empréstimos. Anteriormente, o Paulino referiu isso em relação à China. Como é que avalia a maneira como os africanos no geral, mais uma vez estamos a tentar generalizar, gerem estas relações e financiamento?
Essa é uma questão um bocado complexa porque há duas forças aqui em jogo. Uma é a força do lado da procura, da necessidade. A África precisa de financiamento, ponto final. O montante de financiamento de que precisa para poder acelerar o seu crescimento e melhorar as condições de vida da população é gigantesco. E há a força do lado da oferta, que também tem agendas, prioridades e objectivos por detrás, que são legítimos, pois cada país defende o seu interesse. Os africanos têm que estar conscientes dessas dinâmicas, desses objectivos, para poder fazer a melhor escolha em termos de opção de financiamento. Do lado da oferta, entre os objectivos, estão objectivos geopolíticos claros, das grandes potências mundiais relativamente à África enquanto fonte de matéria-prima, enquanto reservatório de minérios que estão a assumir uma importância estratégica nesse novo contexto, ligado à tecnologia, à economia verde, etc. Portanto, África tem uma significativa importância estratégica a nível até das tensões, geopolíticas ou militares que têm vindo a recrudescer nos últimos anos, e, naturalmente, a disponibilização de crédito muitas vezes é motivada por um ou mais desses objectivos das grandes potências. Nem sempre é apenas um objectivo financeiro de rentabilização do capital que dispõe. Claro que há outros actores, designadamente privados, como os grandes bancos globais, que têm interesses financeiros e vêem na África uma oportunidade de maximizar os seus lucros. Basta dizer que os juros pagos pelos países africanos são de longe superiores aos juros pagos por países de outras regiões, ao que não é alheia uma abordagem das agências de rating, de avaliação de riscos financeiros, que tem sido extremamente penalizante para com a África.
A própria dívida das nações africanas não se compara com a dívida dos países do Norte, não é tão elevada, mas continuam a ser vistos como países mais endividados. Por que é que se mantém esta narrativa? É uma questão da credibilidade do continente nos mercados?
Vejo isso como uma confluência de interesses também. Há uma teia de interesses que acabam por resultar em taxas de juros extremamente elevadas, penalizadoras para o continente africano e que muitas vezes não são baseadas numa avaliação criteriosa, metódica, objectiva e justa dos riscos e objectivos associados a esses financiamentos. Há uma discussão muito intensa no sentido de se criar mecanismos de avaliação de risco dentro do continente africano, que entendam melhor as dinâmicas e os riscos subjacentes, numa perspectiva mais justa, objectiva e transparente. Portanto, há um questionamento da metodologia e dos critérios utilizados pelas agências de rating internacionais relativamente à África, que têm contribuído para essas taxas de juros quase pornográficas que são aplicadas aos empréstimos concedidos a países africanos.
Falando do comércio intra-regional. Eu sei que fez também um estudo sobre as barreiras às trocas no Gana, mas como vê esta questão a nível do continente?
São dois grandes desafios: essa dependência do exterior relativamente à importação de uma série de bens e de serviços e o limitado nível de trocas intra-regionais dentro do continente africano. Este problema está identificado. Uma das bandeiras da União Africana para a sua agenda África 2063 é precisamente a implementação de um mercado único africano [área de comércio continental africana], que, e isto é uma notícia boa, já está ratificado pela esmagadora maioria dos países africanos. Há apenas uma meia dúzia de países que ainda não ratificou o acordo de livre comércio. O processo está em fase avançada, e espera-se que quando implementado alavanque fortemente o comércio intra-regional dentro da África.
Mas será desta? Porque, por exemplo, a CEDEAO tem quase 50 anos e as trocas são mínimas. Com Cabo Verde nem chega a 1%...
Cabo Verde é um caso específico, porque, além aspectos institucionais e legais, há a questão da insularidade e do défice de transporte. Mas mesmo dentro da CEDEAO, apesar de teoricamente se prever a livre circulação de pessoas e bens dentro dos países, o facto é que na prática ainda existem muitas barreiras, não tarifárias, inclusive, que acabam por limitar o fluxo de comércio intra-regional.
Então que optimismo podemos ter com esta área de comércio continental?
Há um interesse muito grande, um engajamento muito forte das lideranças africanas relativamente à sua implementação. Naturalmente, não será um processo fácil, temos de calibrar as expectativas, levará o seu tempo, mas olhemos para o que aconteceu na Europa. Há menos de um século, a Europa estava a atravessar a Segunda Guerra Mundial e das cinzas guerra, com todas as tensões e as mágoas que existiam, com todo o quadro institucional e legal extremamente compartimentalizado, conseguiram criar uma coisa bonita chamada União Europeia, que para mim é um dos melhores exemplos da arquitectura continental que temos. Portanto, se a Europa conseguiu criar algo do tipo em menos de 50, 60 anos, porque é que a África, que nunca teve uma guerra mundial no seu território, não consegue? Portanto, eu não vejo razão para não estar optimista relativamente à possibilidade de implementação deste acordo de livre comércio. Haverão dores de parto, naturalmente, exigirá lideranças fortes, coragem, disciplina na remoção das barreiras tarifárias e não tarifárias que ainda persistem, e na resolução dos problemas de transporte em termos de infra-estrutura e de serviços, mas eu sou bastante optimista relativamente a esta matéria.
Por fim, um tema que hoje em dia é incontornável: mudanças climáticas. Fala-se muito das reparações históricas, mas o que parece estar a ser a grande questão do momento é as reparações climáticas, a justiça climática. Como é que acha que esta questão deve ser gerida?
Deixe-me fazer uma breve referência a essa outra questão, esse debate sobre as reparações históricas. Pessoalmente, não sou favorável a que estejamos aqui a exigir uma reparação financeira, económica, decorrente do período de colonização da África e dos períodos subsequentes. Por duas razões: primeiro porque isso implicaria calcular o valor a receber, e calcular o valor significaria colocar um preço nas vidas humanas, nos 18 milhões de africanos que foram arrancados do continente, no tráfico de escravos em direcção ao continente americano e à própria Europa.
Muitas vezes vendidos pelos próprios irmãos continentais…
Isso é uma falácia. É um argumento que não se sustenta, porque, vejamos, a escravatura existiu em todas as sociedades ao longo da história. Portanto, não é um evento típico do continente. O que é que mudou foi a escala assumida e essa escala foi dada pela empresarialização da escravatura. E essa empresarialização da escravatura não foi puxada pelos africanos, foi incentivada pelos europeus. Portanto, passou-se a exigir traficantes de escravos africanos. Se líderes africanos passaram também a traficar escravos, é porque havia uma procura que não existia antes. Virou uma economia, uma indústria e quem liderava essa indústria não eram os africanos. Eram os europeus e, numa fase posterior, os norte-americanos e os sul-americanos. Mas, dizia, eu não sou favorável a essa questão da indemnização. Porque acaba por levantar uma questão de como colocar o preço sobre uma vida humana.E, segundo, porque abre um precedente um bocado perigoso, a longo prazo, de que pode-se violentar a sociedade, violentar as pessoas, desde que depois se tenha dinheiro para pagar para indemnizar. Há ainda uma terceira razão, que é, no plano prático, como é que se iria gerir tudo isso, pois não vejo uma forma eficiente e justa, pragmática de gerir isso. O que eu defendo é que a Europa, o mundo ocidental, tem que assumir as suas responsabilidades históricas para com o que aconteceu na África e seu o impacto até hoje. Um pedido de desculpas formal, sincero, por parte do Ocidente já seria um passo gigantesco. Um segundo passo importante é a desconstrução de narrativas enviesadas relativamente à história da relação entre o mundo Ocidental e a África. Isso passa por um questionamento das mensagens, das comunicações, das narrativas que estão profundamente incorporadas no mainstream do pensamento ocidental e que precisa de ser desconstruído, em paralelo com esse pedido de desculpas. Essa desconstrução de narrativas enviesadas tem que ser construída em conjunto com os africanos, com os europeus, com os americanos, com os asiáticos também.
E no que toca às Mudanças Climáticas?
Também aqui a narrativa dominante, que não é de todo falsa, é que a África é apenas vítima das mudanças climáticas. Eu digo que não é apenas falsa, porque é um facto: a África é um dos continentes mais vulneráveis às mudanças climáticas, não obstante ser o continente que menos contribui para as mudanças climáticas. Há dados muito evidentes sobre isso. Um europeu médio emite três vezes mais dióxido de carbono equivalente para a atmosfera do que um africano médio. Entretanto, a África é o continente que mais tem sofrido e que mais tende a sofrer com os efeitos adversos das mudanças climáticas. Nesta narrativa, temos que continuar a demonstrar este facto, continuar a mostrar o que é que as mudanças climáticas já estão a provocar no continente, de modo a podermos, no quadro, não diria de indemnização, mas de que quem mais polui tem que assumir as suas responsabilidades, inclusive financeiras, para ajudar os países que sofrem com os efeitos das mudanças climáticas a adaptarem-se a esses efeitos. Já há decisões tomadas a nível das COPs, sobretudo a criação de um fundo que, de alguma forma deverá financiar a adaptação dos países, mas temos que acelerar o passo. Os países têm que assumir as suas responsabilidades, especialmente os países mais poluidores e têm que contribuir financeiramente nos montantes acordados, têm que ser mais pragmáticos, mais céleres, em termos de disponibilização desses fundos de implementação, para que os países possam efectivamente se prepararem para os efeitos das mudanças climáticas que já estamos a sentir. Uma outra narrativa que temos que colocar em cima da mesa, e aproveito esta oportunidade para deixar esta nota muito forte, é que nós temos que olhar também para a África e as mudanças climáticas numa perspectiva positiva. Isto é, não da África apenas como recipiente, mas da África que pode jogar um papel importantíssimo e proactivo, quer na questão da mitigação dos efeitos das mudanças climáticas, quer a nível de desenvolvimento de soluções que ajudem os países, as comunidades e as pessoas a adaptarem-se às mudanças climáticas. Há uma dinâmica muito forte, a nível, por exemplo, de desenvolvimento dos mercados de crédito de carbono e há uma dinâmica muito forte a nível da inovação dentro do continente africano. Há o desenvolvimento e adopção de inovações, de tecnologia, de abordagens, que podem ser soluções, que podem ser adoptadas em outras regiões do mundo, que estão a nascer aqui na África. Soluções relacionadas com mitigação dos efeitos das mudanças climáticas. Um exemplo: fiquei agradavelmente surpreendido, há uns três ou quatro meses estive na Guiné-Bissau e no interior do país, nos mercados populares, encontrei equipamentos solares que não vemos aqui em Cabo Verde. Vi a adopção de pequenos equipamentos de geração de energia solar, até para carregar telemóvel e coisas do tipo, que podem ser comprados em mercados populares no interior da Guiné-Bissau. Há inovações a nível de utilização de energias renováveis para geração de energias bastante interessantes a nível do continente. A nível até da agricultura, estão a ser testadas abordagens no sentido de se ter uma agricultura mais resiliente às mudanças climáticas, mas ao mesmo tempo com maior potencial de captura de carbono. Já há iniciativas a correr neste continente que estão a gerar emprego e que já estão a dar um contributo para essa questão das mudanças climáticas. Portanto, precisamos também de olhar para a África nessa perspectiva positiva. Essa perspectiva de África apenas como recipiente e vítima, mas também como um actor com o potencial de dar o seu contributo global para a mitigação das causas das mudanças climáticas, mas também para a inovação a nível de mecanismos, produtos e serviços de adaptação aos efeitos das mudanças climáticas.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1173 de 22 de Maio de 2024.