“O problema em África é que temos lideranças que não se querem desapegar do poder”

PorJorge Montezinho,25 mai 2024 9:15

Odair Barros-Varela - Professor universitário e investigador
Odair Barros-Varela - Professor universitário e investigador

De acordo com o Institute for Security Studies, a principal fonte de insegurança em África é a fragilidade do Estado, que leva à fragilidade também dos mecanismos regionais de segurança. Neste contexto, cada conflito resulta de uma complexa combinação de factores, embora tenham sido identificadas três causas principais: transições de governo, disputas entre Estados e movimentos extremistas violentos.

Entretanto, o terrorismo deixou de ser uma ameaça isolada e tornou-se numa das principais ameaças para a defesa e segurança das nações no continente. A emergência dos grupos radicais e extremistas Boko Haram e Al-Shabaab, que procuram criar células e expandir as acções para fora das fronteiras em que se localizam, é um bom exemplo e existem algumas regiões entendidas como as mais críticas em termos de ameaças crescentes, como a Líbia, Moçambique, Golfo da Guiné, Sahel, Bacia do lago Chade e leste da República Democrática do Congo. A este cenário, junta-se a Rússia, que segundo muitos analistas, vai continuar a “explorar novos territórios” em África para estender a cooperação militar, não obstante ter assinado acordos com 43 países do continente entre 2015 e novembro de 2023. Através de acordos de cooperação militar e de acordos ‘ad hoc’, a Rússia tornou-se um importante fornecedor de armas a África. As importações da Rússia representaram 40% das importações africanas de sistemas de armas importantes no período entre 2018 e 2022, ultrapassando os fornecimentos dos Estados Unidos, da Europa e da China. Para abordar as questões securitárias no continente, o Expresso das Ilhas falou com o professor universitário e investigador, Odair Barros-Varela.

Neste momento, há factores territoriais, religiosos e económico-religiosos no Corno de África e na África Oriental – como na Etiópia, ou em Moçambique – temos o islamismo radical na África Ocidental, há a pirataria no Golfo da Guiné, narcotráfico e exploração ilegal de matérias-primas. Considera serem estes os principais problemas securitários que o continente enfrenta?

Se formos olhar para o conceito de segurança do ponto de vista mais securitário, sem dúvida. Mas se formos para um conceito mais abrangente de segurança, teremos de acrescentar questões ligadas às alterações climáticas. Em termos securitários sim, esses serão os chamados pontos quentes. Referiu o Corno de África, onde temos situações bastante paradoxais. Há o Djibouti, que nos últimos anos deu um salto enorme em termos de segurança porque optou por ser uma espécie de cluster de bases militares de vários países ocidentais e da China, conseguindo ganhos elevados e usando esse dinheiro para financiar o desenvolvimento do país. Por outro lado, temos países como a Etiópia que está a praticar um genocídio na região do Tigré, como denunciam muitos activistas. O islamismo radical utiliza o terrorismo para atingir fins políticos e objectivos territoriais. O ISIS criou o califado no Médio Oriente, mas pode querer fazer o mesmo em África. Ou o Boko Haram, na Nigéria, país onde o presidente não é respeitado pela elite militar e teme-se mesmo um golpe militar na Nigéria, o que seria catastrófico para a CEDEAO. Ainda recentemente houve mais um rapto e o presidente foi a um estado do norte inaugurar um estádio com o seu nome em vez de estar preocupado em ir ao terreno ver o que se passou. E depois estamos inseridos neste conflito global entre os Estados Unidos – que querem continuar a ser a maior potência – e a China e a Rússia. Não podemos, portanto, descurar o que se passa internamente do que se passa a nível global.

Deixou uma série de tópicos interessantes que podemos analisar. Começando por esse último, em que África volta a ser o palco de uma nova guerra fria. Presumo que isso não seja bom para o continente.

Não é não. Nem para o continente, nem para o mundo. Hoje o risco é maior. O Planeta nem sequer aguenta um conflito nuclear entre essas potências. Os sinais são preocupantes e o continente tem de arranjar uma forma, não de se afastar desta disputa, mas de procurar estabelecer a sua agenda perante essa disputa e não ser um joguete, um instrumento nas mãos dessas super potências em confronto. Os Estados africanos, os nossos líderes, devem preocupar-se menos com a manutenção do poder e preocupar-se em promover a industrialização, em incluir os jovens e há um exemplo que mostra isso: o Senegal. Os jovens deram uma lição aos outros países que não se pode partir para soluções de governação sem incluir os jovens. Foram os jovens que, recorrendo às TIC, conseguiram derrubar o Macky Sall e eleger um jovem com ideias arrojadas. Vamos ver agora se consegue implementá-las, o que não vai ser fácil.

Como fica Cabo Verde neste conflito entre potências?

Temos o exemplo da construção da embaixada dos Estados Unidos por trás do Palácio do Governo. A questão nem tem a valer com a localização, porque os Estados Unidos podem espionar Cabo Verde a partir de qualquer lugar, a questão é que esta grande infra-estrutura pode chamar a atenção de outros actores pouco amigos dos Estados Unidos, que podem começar a olhar para Cabo Verde como um alvo. Se estivesse na pele do governo de Cabo Verde, não deixaria construir naquela localização.

Há também recentemente a questão dos acordos da Rússia com países dos PALOP.

Eu creio que não é grande novidade. Em termos de impacto financeiro, este é reduzido e há muito que países dos PALOP têm acordos com a Rússia, inclusive Cabo Verde tem acordo de cooperação com a Rússia.

Voltando ao global, o clima não é favorável.

Não é. Estamos numa espécie de corrida armamentista. OS cinco membros permanentes do Conselho de Segurança são os maiores produtores de armas do mundo. E isso é preocupante. As Nações Unidas, em termos políticos, estão bloqueadas. E como sabemos, as armas procuram guerras e as guerras necessitam de armas. O cenário é preocupante. Vamos ver a capacidade das organizações internacionais em pôr cobro a esta situação. A Europa podia ser um bom espaço de diálogo com os actores asiáticos, americanos e africanos, mas está cada vez mais a cair na esteira da extrema-direita. A Europa conseguiu ter uma história de paz desde a II Guerra Mundial, mas agora está com a agenda em risco com a subida dos movimentos radicais.

Alguma razão em especial, na sua opinião, para este fenómeno?

Penso que a construção europeia teve duas falhas. Uma, não ter uma política externa comum e, dois, não ter também uma política migratória comum. Se houvesse uma política migratória comum, tenho a certeza que a questão das migrações não seria tão grave e isso não levaria a este emergir da extrema-direita. Porque quando não se consegue gerir as migrações clandestinas, que estão nas mãos de máfias poderosas, as pessoas entram nos países e depois ficam abandonadas, a viverem aos 20 dentro de uma casa, etc., e isso é um chamariz para os grupos extremistas. Porque no fundo, neste momento é como se eu tivesse uma casa e não soubesse quem está lá dentro. E porquê? Porque falta essa política migratória comum, e essa falha dá origem a esses movimentos clandestinos. Afegãos, sírios, somalis. Mesmo apesar de esse fluxo não ser tão grande assim, acaba por alimentar os fantasmas da II Guerra Mundial, do fascismo e isso tira margem à União Europeia. Se houvesse essa política comum, a União Europeia saberia exactamente quem está nos Estados Membros e com que propósito. Até porque, não podemos esquecer que os países europeus estão envelhecidos e precisam urgentemente de mão-de-obra jovem. Os últimos dados de Portugal, por exemplo, dizem que o país precisa, em média, de 50 mil pessoas todos os anos para conseguir alimentar a sua indústria e a Segurança Social. E ao mesmo tempo tem todos estes problemas, constrangimentos ao nível da CPLP, dos PALOP, veja-se a polémica com os vistos CPLP. Quando é assim, fica complicado. Por outro lado, a política externa comum, que se debate agora com a grande interrogação se sempre vão ter um exército comum ou não. Há países a querer voltar ao serviço militar obrigatório e outros não. Portanto, acho que a Europa podia ter um papel diferente, uma espécie de mediador entre Estados Unidos e Rússia, Nigéria e África do Sul, China e Índia, mas neste momento está enredada em problemas dos quais não consegue sair.

Mas no continente também estamos a viver um tempo em que as juntas militares voltaram ao poder, inclusive na sub-região – Mali, Níger, Burkina Faso, Guiné-Conackry – que acabaram por pôr em evidência a fraqueza das organizações regionais africanas – seja a União Africana, seja a CEDEAO, não conseguem dar a volta a estas situações, ou impor soluções. Qual é afinal o papel actual destas organizações?

Infelizmente, o diagnóstico é que essas organizações têm sido aquilo que os seus Estados Membros querem que elas sejam. E quando falamos em Estados Membros, no fundo, falamos das elites políticas e militares. A que conheço melhor é a CEDEAO, aliás, acabo de vir de uma conferência sobre a justiça da comunidade e uma das queixas tem a ver com o facto de os países não serem obrigados a ratificar alguns protocolos do tribunal da CEDEAO. É o caso de Cabo Verde, que não retificou sequer o estatuto do tribunal e é por isso que pôde “rejeitar” a posição do tribunal de libertar Alex Saab [antigo enviado especial da Venezuela, detido em Cabo Verde em 2020, deportado em 2022 para os Estados Unidos e entretanto libertado pela administração Biden, numa troca de prisioneiros com a Venezuela]. Grandes potências como a Nigéria, o Senegal e o Gana não querem abraçar totalmente a supranacionalidade porque eles também têm problemas, esqueletos no armário. Como é que vão condenar golpes de Estado se muitos dos presidentes chegaram ao poder da mesma maneira? É como disse, o problema é que temos lideranças que não se querem desapegar do poder e não olham para outras forças sociais que querem contribuir para o desenvolvimento dos respectivos países. As elites políticas e militares não vão sair de livre e espontânea vontade. Tem de continuar a haver pressão interna. Qual é o segredo? É que esses movimentos internos sejam apoiados interna e externamente de forma discreta. Sem entrar em confronto directo com os governos.

O que aconteceu no Senegal, por exemplo. Uma mudança feita, essencialmente, pelos jovens.

O Senegal é um caso de estudo. A mudança foi feita nas redes sociais, com activismo, de forma discreta. Mas depois, as mudanças implicam também as academias, os jornalistas, toda essa constelação é que pode provocar mudanças. Se for só com o actor Estado, é complicado. Uma CEDEAO de povos tem de ser uma CEDEAO que dê espaço a outras formas de integração: a nível cultural, mobilidade de estudantes, de activistas e não apenas cimeiras de Chefes de Estado e do Governo. Imagine-se um golpe de Estado na Nigéria. Podia pôr em causa, inclusive, a própria CEDEAO, porque é a Nigéria o grande financiador da organização.

Os jovens poderão mudar o continente, mas há aqui duas questões: uma, é que na Europa têm sido os jovens a votar em força nos partidos de extrema-direita – estudos revelaram que são jovens com pouca formação e ligados à religião – dois, em África, não poderá haver um aumento do autoritarismo do Estado sobre os jovens?

Isso é fortíssimo. Alguns colegas chegam a dizer-me, de um modo até dramático, que os jovens têm de se preparar para sofrerem violência, até perda de vida, para haver mudança. Voltamos ao Senegal, o número não foi elevado, mas houve dezenas que morreram. Violência do Estado exercido sobre os jovens. Há riscos, claro. Mas também existem, por outro lado, como disse, o aproveitamento da religião e da pouca formação para os levar para o lado do extremismo. Tanto político como religioso. As igrejas evangélicas estão a aumentar em África, o extremismo islâmico também e temos muitos jovens activistas extremistas, que acreditam que a solução está nos extremos – islâmico e católico. É também, muitas vezes, uma forma de escaparem à pobreza e à fome. Como em Cabo Delgado [Moçambique] onde os jovens entram nos grupos radicais em troca de um ordenado e para quem está desempregado e não tem muita formação é um emprego ser um militar destes grupos insurgentes. Há esse perigo. Por outro lado ainda, a grande esperança é que os jovens estão cada vez mais bem formados, com acesso à informação e podem protagonizar mudanças, quando bem apoiados.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1173 de 22 de Maio de 2024. 

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Autoria:Jorge Montezinho,25 mai 2024 9:15

Editado porAndre Amaral  em  27 mai 2024 14:15

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