Pergunto-me se o país não seria outro, talvez mais próspero, humanizado e visse mais além, se o questionamento passasse a fazer parte da nossa rotina diária.
Mas não é um questionamento murcho que cai ao primeiro toque de resposta sem nexo e se esborrache no chão. É um questionamento persistente. Implacável e frontal, a tal ponto que obrigue a respostas fundamentadas e comprometimento.
Infelizmente, estamos desabituados a isso. Questiona-se muito pouco aos detentores de cargos públicos e contenta-se com a primeira resposta bera que se recebe. Ou então, passam-se décadas a fazer as mesmas perguntas e a receber o mesmo tipo de resposta. Precária. Evasiva. E ponto. Larga-se da mão.
A questão do controlo da população de animais sem dono é uma delas, entre tantas outras. Quantos são? O que se tem feito para resolver o problema? Até quando?
Nina, é uma miúda adorável de 11 anos que está a crescer bem num país que não tem sabido fazer o mesmo. Preocupa-se com o que se passa à sua volta. É sensível. Empática e sofre com a situação dos animais (cães e gatos) abandonados pelas ruas. Percebe que são vidas não humanas, mas vidas não menos importantes que a nossa. Apega-se a eles. Quer cuidar de todos e já se apercebeu da impossibilidade de albergar a todos na sua casa. Sofre desmesuradamente sempre que perde um amiguinho patudo errante. E à custa disso experimenta sensações como a revolta, indignação e impotência.
Nina junta-se a um número não negligenciável de pessoas (crianças e adultos), inconformadas em viver num país esbanjador de maus-tratos onde nenhum ser vivo escapa. E os animais não humanos são as principais vítimas.
É facto que a população canina e gatil errante tem crescido de forma alarmante e é uma realidade que afeta todas as ilhas do país. É facto que é um problema ambiental com custos dolorosos para a saúde pública, segurança rodoviária, qualidade de vida, direitos dos animais não humanos e imagem do país no exterior. E é facto que há uma necessidade inadiável de sanar o problema.
A questão é que governar há muito deixou de ser a arte de resolver problemas, atender às necessidades da população. Passou para não se sabe bem o quê. Algo indecifrável, ambíguo, tanto faz quem ocupe o poder, o que diz ou faz. Não se notam os resultados.
A toxicidade do ato de governar advém de este se ter tornado apenas numa envelhecida arena de disputa do poder. Esgota-se na busca do poder. Acesso. Apropriação. Luta. Manutenção. Transmissão e controlo. O que é terrivelmente desgastante e percebe-se que a seguir faltem forças para agarrar os problemas pelos cornos e os solucionar.
O que se pode esperar disso tudo? Disfuncionamentos. Distopias que atingem três gerações e permanecem intactos e frescos. À espera. À desespera. Sufocados, sufocando. Mexendo com os nossos nervos, saúde e afetando a nossa autoestima.
O oposto ao que acreditava James Madison quando um dia disse que: “um bom governo implica duas coisas: primeiro, a fidelidade ao fim do governar, isto é, a felicidade das pessoas; segundo, o conhecimento dos instrumentos com que tal fim se pode alcançar”.
Nina chora e sofre pela mesma razão que sofri há quarenta e tal anos na minha infância. Exatamente pelo mesmo motivo: a desumanização do país. A banalização e normalização das aberrações. A presença em toda a parte da comunidade canina e gatil abandonada à sua própria sorte. Uns esqueléticos, outros com doenças ou com sinais visíveis de maus- tratos.
Um grave problema ambiental e sanitário que possui a “impertinência” de só ser solucionável através de intervenção humana. E isso é uma chatice por esses lados onde a procrastinação se tornou num mantra de sucesso.
Nina não sabe que tudo o que é pessoal também é político. Que toda a necessidade é política inclusive as psicológicas e de bem-estar individual. Que o “problema dela” não é dela, é coletivo. E que cabe aos poderes públicos, com o envolvimento ativo da comunidade, é claro, encontrarem respostas sustentáveis e definitivas ao problema dos animais abandonados. A isso denomina-se governar.
Como não vejo campanhas de educação para a posse responsável de animais. Como não vejo iniciativas de recenseamento dos animais abandonados. Como não vejo a aplicação de coimas aos que abandonam e maltratam os animais. Como não vejo a presença de veterinários nas Câmaras Municipais. Como não vejo incentivos fiscais que encorajem as pessoas a levarem os animais de estimação ao veterinário. Como não vejo governantes a debaterem seriamente o assunto e, em contrapartida, despejam tudo nas costas de associações (quando o compromisso eleitoral é com eles e não com as associações). Parto do princípio que os políticos, supostamente servidores públicos, também ainda não se aperceberam que a conversa sobre o crescimento descontrolado da população canina e gatil errante em Cabo Verde é diretamente com eles. E que estamos atentos e avaliando.
Essa miúda de 11 anos, sem sequer desconfiar, já sabe que a pergunta é uma máquina de fazer ver. Desgostosa com a forma como tratamos (ou seria melhor dizer maltratamos?) os restantes animais, faz perguntas. Quer saber. Compreender o que se passa. Os adultos esforçam-se e lá vão calibrando as palavras de forma a reconfortá-la.
É importante que ela, e todas as restantes crianças, cresçam com confiança no futuro. Um futuro que espero que tenha juízo e não carregue na mala os problemas do presente.
Mindelo, 28/05/2024
Antónia Môsso