“Não vejo razão para essa busca em massa por estudos em Portugal”

PorSara Almeida,13 out 2024 13:41

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Carlos Delgado, Reitor da Universidade Lusófona
Carlos Delgado, Reitor da Universidade Lusófona

A Universidade Lusófona e a Universidade de Santiago são duas entre as 12 instituições que compõem o panorama do ensino superior em Cabo Verde. Em conversa com o Expresso das Ilhas, os reitores, Carlos Delgado e Gabriel Fernandes, falam sobre a visão estratégica destas universidades e seu alinhamento com os desígnios de desenvolvimento do país. Temas mais amplos, como a “fuga” de estudantes e a Investigação, são também abordados numa análise geral sobre o sistema e desafios do ensino superior cabo-verdiano.

A Universidade Lusófona chegou a Cabo Verde em 2007, estabelecendo-se no Mindelo, com a missão de contribuir para o desenvolvimento académico, científico e humano do país. Sendo uma instituição da COFAC Portugal, portanto uma “sucursal” em Cabo Verde, trouxe também um conjunto de ofertas formativas semelhantes às que eram leccionadas naquele país. Desde então, a Lusófona tem crescido continuamente, sempre “mantendo o seu compromisso com o progresso de Cabo Verde”, sublinha o seu reitor, Carlos Delgado.

As ofertas formativas foram alargadas, o número de alunos passou de menos de 200, em 2007, para “à volta de 900”, em 2009, divididos entre vários cursos: Gestão, Hotelaria e Turismo, Direito, Ciências da Comunicação, Engenharia Informática, e outros. Anos depois, em 2016/2017 instalou-se também na cidade da Praia. Cresceu em território e, depois, também em oferta, passando a integrar pós-graduações. “A partir de 2021, quando fui nomeado reitor da universidade, um dos meus desafios foi trazer cursos de pós-graduação, que ainda não tínhamos para a instituição”, lembra Carlos Delgado. Hoje, no total, a Lusófona oferece 20 cursos, dos quais 12 licenciaturas, sete mestrados e um doutoramento em Educação, que enquadra quatro valências profissionais: a Educação propriamente dita, tecnologias da educação, administração e regulação da educação. “Um doutoramento muito importante para Cabo Verde no contexto actual”, avalia.

Desde a sua instalação, garante o reitor, a grande aposta da Instituição tem sido a qualidade da sua oferta formativa e “este selo de qualidade tem servido como trunfo para que tenhamos cada vez mais alunos a procurar a Lusófona”. Além disso, a universidade tem apostado em “ofertas formativas que são únicas para Cabo Verde”, desenhadas em “sintonia com aquilo que são as exigências do desenvolvimento do país”. Um exemplo disso, aponta, é o curso de licenciatura em Economia Digital, que é único em Cabo Verde e que também não existe em Portugal, nomeadamente. “Esta licenciatura está perfeitamente sintonizada com os objectivos de Cabo Verde. Somos a instituição a realizar o programa do governo nesta matéria”.

Carlos Delgado elenca ainda outras ofertas formativas sintonizadas com os objectivos do país, como o curso de Engenharia Informática e Computadores, recentemente acreditado, ou o mestrado em Regulação e Administração da Educação, que forma profissionais, como inspectores e administradores da educação, evitando, desde modo, a necessidade de formações pontuais pelo Ministério da Educação. Além disso, a universidade é também a única a oferecer um curso focado no sistema financeiro, com uma licenciatura em Gestão Bancária e Seguros, que prepara os alunos para actuar no sector bancário e de seguros, tanto em Cabo Verde quanto internacionalmente, especialmente na CPLP e África. Um outro exemplo destacado é o curso de Gestão da Saúde, “criado para suprir a falta de gestores hospitalares em Cabo Verde, onde o sistema de saúde está em expansão”. “A maioria dos gestores actuais é formada no Brasil ou em Portugal, o que motivou a Lusófona a criar este curso, alinhado à demanda local”, justifica.

Existe também uma articulação com o Estado na questão da oferta formativa. “Enquanto instituição de ensino superior, sentimos que devemos dialogar com as instituições”, defende. Destaca-se, nessa articulação, a parceria com o Ministério da Administração Interna, por meio da oferta de formação para a Polícia Municipal, uma formação que não é superior, e que é unicamente ministrada pela Lusófona.

Além disso, a universidade criou o mestrado em Direito do Trabalho e da Administração Pública, após recomendações do MAI e da Ministra da Justiça, para atender à necessidade de profissionais qualificados nessa área. O curso tem sido altamente procurado, não só por cabo-verdianos, mas também por alunos de outros países da CPLP e até de países como Bélgica e Alemanha.

Por fim, o reitor salienta ainda a criação de um mestrado em Contabilidade, Fiscalidade e Auditoria Financeira, uma área com grande carência em Cabo Verde, que resultou de uma recomendação do Presidente da República e do Presidente da Assembleia Nacional, quando visitaram a universidade. É um curso com uma procura “extraordinária”.

Assim, são estas ofertas que “constituem o nosso marketing e o nosso selo único enquanto instituição de Ensino Superior”, resume Carlos Delgado.

Já falamos da oferta formativa, e quanto à empregabilidade? Sabem onde andam os vossos antigos alunos?

Monitoramos os nossos diplomados e podemos dizer que na área da Gestão mais de 90% dos nossos diplomados estão empregados. Em Direito, a taxa de empregabilidade está quase em 100%. Em Ciências da Comunicação e Multimédia, estamos com deficit, porque as instituições solicitam alunos formados na área e já “fornecemos” todos os que tínhamos. Aproveito para fazer esta publicidade: caso haja um aluno formado na Lusófona em Ciências da Comunicação, jornalismo e multimédia, que nos procure porque temos emprego para ele.

A narrativa que corre é a de que as pessoas terminam a sua formação no ensino superior e depois não encontram um emprego digno.

Para áreas como Gestão de Empresas, Ciências da Comunicação, Direito e Informática, os empregos são certos. E aqueles que quiserem, a universidade toma conta. Os que estudam na Lusófona podem contar que daqui a quatro anos terão emprego.

E em termos da procura, quais são os cursos mais procurados pelos estudantes?

Direito é o mais procurado. Vamos abrir duas turmas só no Mindelo e as vagas já estão esgotadas. Contabilidade e Auditoria, também está com alta demanda.

Entretanto, ouvem-se várias queixas da “fuga” dos estudantes que preferem fazer a formação superior no estrangeiro. Como esse fenómeno vos afecta?

Afecta todas as universidades. Mais do que afectar as universidades, diria que este é um problema do país, globalmente. Vou dar o exemplo de dois cursos que oferecemos. Temos uma Licenciatura em Administração Pública, curso que foi desenhado em parceria com uma instituição portuguesa, com um plano curricular adaptado para Cabo Verde. Este curso, que em Portugal tem a duração de três anos, foi reformulado para quatro anos aqui, sendo acrescentadas unidades curriculares, e tem um perfil de saída mais abrangente. Da mesma forma, lançamos um curso, único em Cabo Verde, de Gestão Autárquica e Desenvolvimento Local, também em colaboração com uma universidade portuguesa, que inclusive nos oferece professores e tem experiência na área. No entanto, recentemente, vimos um município anunciar com pompa e circunstância uma “leva” de estudantes para estudar Administração e Poder Local em Portugal. Estão a enviar alunos para um curso de três anos em Portugal, quando temos aqui a mesma oferta formativa, alinhada com as necessidades de Cabo Verde, e com o diploma reconhecido pelas instituições reguladoras do país. Não é preciso pedir equivalência. Mesmo assim, os jovens preferem sair, e os próprios municípios estão a colaborar com isso, enviando estudantes para Portugal ao invés de aproveitarem a formação disponível em Cabo Verde, que até é melhor.

Mas como avalia o nosso sistema de ensino superior?

Apesar de haver vários problemas, em termos de matéria curricular e de perfil de saída estamos iguais ou até melhores do que muitas universidades portuguesas. Primeiro, porque os nossos ciclos de licenciatura são de quatro anos, não de três. Segundo, os nossos mestrados, são de dois anos, têm mais créditos e unidades e horas curriculares do que em muitas universidades portuguesas, o que torna a nossa formação mais robusta. O mesmo para o doutoramento, que foi concebido escutando vários professores renomados e com base nos planos de várias universidades também renomadas, incluindo de Portugal, mas com uma estrutura mais ampla e saídas especializadas mais adequadas ao contexto actual. Portanto, não vejo razão para essa busca em massa por estudos em Portugal ou em outros países. Não há razões.

Num olhar mais abrangente, como é que avalia todo o sistema de ensino até à saída da universidade?

Devo dizer que o sistema carece de uma revisão profunda e de uma maior distribuição curricular ao longo dos anos, do 1º ao 12º . De facto, detectámos que há algumas dificuldades no primeiro ano de formação que a Lusófona tem identificado. Estamos atentos a esses desafios e, naturalmente, estamos a trabalhar para os resolver. E resolvemos, naturalmente.

Mas isso não é também um fenómeno mundial? O primeiro ano da universidade, em todo o mundo, não é um ano de adaptação?

É, e por isso, na nossa instituição, damos especial atenção à questão da adaptação, da integração do aluno e até do reforço curricular. Damos muita atenção porque queremos que os nossos alunos saiam da universidade com perfil adequado para o mercado de trabalho. E não é por acaso que, especialmente nos cursos que mencionei, não enfrentamos grandes dificuldades em colocar os nossos diplomados no mercado.

Ainda sobre o ensino superior, no geral. Temos uma certa proliferação de universidades, sendo que muitas delas enfrentam dificuldades. Tem havido massa crítica para desenvolver o sector em Cabo Verde?

Não sei se há, mas devo ser cauteloso ao responder. As universidades em Cabo Verde não estão no seu melhor momento, principalmente porque enfrentam uma grande competição externa. Portanto, das Instituições de ensino superior de fora, como os Institutos Politécnicos de Portugal, que vêm procurar alunos em Cabo Verde. As próprias Câmaras Municipais também fazem geminações e parcerias com essas instituições, especialmente politécnicas, enviando muitos alunos. Acredito que o Estado pode fazer mais para apoiar as instituições de ensino superior em Cabo Verde, visando proteger as universidades locais. Não vou especificar o que se deve fazer, sobretudo em público, mas acho que deveria haver uma maior protecção, para garantir que tanto as universidades públicas quanto privadas possam funcionar adequadamente. Neste mundo globalizado, todas as universidades contribuem para o desenvolvimento do país, e é um pouco injusto que haja tratamentos diferentes para produtos iguais. Veja, o Estado, por exemplo, cria condições para que um estudante se forme em gestão autárquica em Portugal, com bolsas e apoio. Aqui, oferecemos o curso de gestão autárquica, mas os nossos alunos não têm as mesmas condições, como as bolsas. No entanto, ambos, o estudante formado em Cabo Verde e o que vai a Portugal, entram no mercado de trabalho na mesma altura e são dois técnicos formados que estão a contribuir na mesma circunstância e em igualdade para o desenvolvimento do país. O pressuposto é que todos os estudantes devem ter as mesmas oportunidades, e o Estado poderia fazer mais para apoiar as instituições de ensino superior em Cabo Verde, que estão, todas elas, a contribuir para o desenvolvimento do país.

Cabo Verde pretende proceder a uma reforma do modelo de financiamento do ensino superior. O que essa reforma deveria ter em conta?

Não tenho detalhes dessa reforma, pois as universidades ainda não foram envolvidas. Espero que sejam ouvidas neste processo. Cabo Verde precisa de um fundo para o desenvolvimento do ensino superior. O financiamento deve centrar-se nas condições que permitem aos alunos estudar. Financiar o aluno, mas também é importante assegurar que ele tenha garantias em como vai poder pagar. Em países como os EUA, existem fundos que permitem que os alunos se formem sem o peso imediato da dívida. Esse modelo deve ser pensado aqui, criando um fundo sustentável que seja retroalimentado. Por outro lado, tem de se pensar no desenvolvimento da ciência em Cabo Verde.

Falar de ensino superior sem falar de investigação faz sentido?

Nenhuma universidade, nem pública nem privada, nem nenhum docente, está em condições de fazer investigação. É cara. Em Cabo Verde, não há condições financeiras para isso. Para se garantir uma boa pesquisa, é necessário investimento. Em outros países os investigadores recebem bolsas robustas. O Estado precisa apoiar, co-financiando a investigação, pois é fundamental para o desenvolvimento do país. Estou convicto de que se vai encontrar uma solução, porque a investigação é o caminho para o desenvolvimento de qualquer país. Nenhum país funciona sem ter núcleos de investigação devidamente sustentáveis e organizados. A Lusófona, por exemplo, já tem um gabinete de investigação, mas isto não pode ser só conversa, porque os investigadores têm de ter meios para fazer investigação e publicar os seus estudos. A Universidade sozinha não consegue. Devo dizer que nesta matéria nós ainda praticamente não fizemos nada. E o Estado tem de pensar como financiar a investigação, que é cara, como apoiar as instituições de ensino superior em Cabo Verde, na investigação.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1193 de 9 de Outubro de 2024. 

Leia também a entrevista a Gabriel Fernandes, Reitor da Universidade de Santiago: aqui.

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Autoria:Sara Almeida,13 out 2024 13:41

Editado porSara Almeida  em  16 out 2024 20:20

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