À procura de casa para arrendar em São Vicente? Então boa sorte

PorNuno Andrade Ferreira*,1 fev 2025 9:27

O velho problema da falta de casas agravou-se com o aumento da procura turística. Os proprietários encontraram no arrendamento ao dia uma forma mais lucrativa e com menos chatices para rentabilizar o seu património. Mas a ‘febre’ do alojamento local não explica tudo.

Arrendar casa para morar em São Vicente tornou-se uma missão quase impossível e um teste à resiliência. Num mercado com défices históricos e perante o crescimento do arrendamento de curta duração para fins turísticos, o chamado alojamento local, tornou-se normal passar longos meses à procura de um sítio adequado e que caiba no orçamento das famílias cabo-verdianas.

É o caso de Elisângela Pereira, que desde Setembro do ano passado está numa jornada sem fim à vista.

“Procuro em qualquer zona, já nem falo do centro da cidade porque sei que é ainda mais complicado, apesar de sempre ter vivido no centro da cidade. Neste momento, em qualquer sítio onde procuro, dizem que só arrendam com mobília e para férias, não estão a arrendar por tempo indeterminado”, comenta.

As poucas opções que aparecem são a preços impossíveis de acomodar no orçamento familiar.

“Estava à procura de um T3, mas acabei por desistir, porque não encontrava. Comecei a procurar por T2, mas só encontrava por 30 mil escudos, valor que normalmente se pagava por um T3. Pedem-te um ou dois meses de caução e, mesmo assim, sem a garantia de permanecer por tempo indeterminado”, destaca.

Nos últimos anos, muitos imóveis antes disponíveis para arrendamento de longa duração foram redireccionados para o alojamento local, arrendados ao dia, tanto via plataformas online como no ‘boca a boca’.

Marcos Teixeira, estudante, natural de Santo Antão, foi despejado do apartamento que partilhava com colegas.

“Fomos avisados à última hora que tínhamos de deixar a casa. Tivemos de sair todos de imediato. Estou temporariamente numa casa em Lombo Tanque, também com um preço elevado. Antes, os estudantes juntavam-se e arrendavam uma casa partilhada, mas agora o preço está muito alto e, preferencialmente, as casas são alugadas ao dia, o que cria dificuldades para nós que estamos a viver cá. É uma situação que afecta a maioria dos estudantes que vêm das outras ilhas. Além da falta de casa, o preço”, lamenta.

As velhinhas placas de “arrenda-se” saíram das janelas. Nas imobiliárias, a oferta também é limitada e maioritariamente para outros fins. Sucedem-se os relatos de quem só conseguiu terminar a longa demanda graças ao círculo restrito de familiares, amigos e conhecidos.

Foi assim que Viviane Rocha colocou um ponto final numa missão que chegou a considerar impossível.

“Consegui encontrar uma casa através de uma pessoa que conhecia outra, que estava a alugar um apartamento T1. Fiquei em lista de espera e fui chamada porque houve uma desistência. Neste momento, ninguém coloca placas em casas para arrendar. Muitas vezes alguém coloca um anúncio no Facebook e em cinco minutos é arrendada”, recorda.

O sector imobiliário não aparenta falta de dinâmica, mas parte significativa dos projectos em execução é dirigida a perfis diferentes daqueles que vivem e trabalham na ilha, com salários locais.

A consultora imobiliária Sílvia Pires corrobora estas percepções e relata que, nalguns casos, já são necessários três salários para suportar as despesas do agregado familiar.

“Um arrendamento que antes custava 15 mil escudos, agora custa até cerca de 30 mil. Estou a falar de um T2, dependendo da zona. Em algumas áreas, torna-se quase impossível para uma família tradicional. Sabemos que duas ou três pessoas na casa têm de trabalhar para cobrir as despesas”, explica.

“Enfrentamos dificuldades em ter apartamentos sem mobília, os proprietários optam por mobilar as casas, porque o preço é mais elevado. O nosso maior problema, neste momento, é a falta de casas, principalmente para famílias e estudantes”, sublinha.

Proprietários ouvidos pelo Expresso das Ilhas e Rádio Morabeza confirmam a preferência pelo arrendamento de curta duração, ao dia, de olhos postos nos turistas e emigrantes em férias. Para a decisão, além do maior rendimento obtido, também pesam outras variáveis. A destruição das propriedades, o não pagamento das rendas e as dificuldades em realizar despejo entram na equação.

Zeca Santos, proprietário, tem histórias por contar.

“Entregas uma casa pintada, remodelada, cheirando a novo. Tem sido norma fazer um contrato de um ano, renovável ou não, mas, às vezes, no espaço de três a quatro meses, os inquilinos acabam por destruir a casa e tens de usar o dinheiro da renda para reparar a casa, para alugar novamente. Muitas vezes, o valor da remodelação excede o valor cobrado pela renda. É claro que nem todos são assim, mas a maioria deixa a casa em condições difíceis. Outros, no fim do contrato, ao enviares uma nota de que não pretendes renovar o aluguer, não é fácil fazê-los desocupar a casa. Com um contrato assinado, com todos os termos legais, vais para tribunal, a situação arrasta-se e não se resolve nada”, relata.

Ao optarem por arrendamentos de curta duração, os proprietários procuram maximizar lucros e proteger imóveis, conta Zeca Santos.

“É financeiramente mais lucrativo e, com a estadia curta, a pessoa não tem tempo para destruir o teu apartamento. É justo dizer que a maioria das pessoas que alugam por curtos períodos, sejam nacionais ou estrangeiras, têm mais cuidado com o imóvel. Por isso, há uma tendência para alugar mais para pessoas que não vivem aqui”, diz.

Pressão turística…

O quadro legal que baliza o alojamento local é recente, mas já existe. O Decreto-Lei 56/2024, publicado no Boletim Oficial de 13 de Novembro de 2024, regulamenta a exploração daquilo que denomina de “Alojamento Complementar”.

O diploma prevê o estabelecimento de quotas de atribuição do número de licenças por cada ilha ou município, revistas a cada dois anos, por proposta de uma comissão na qual têm assento “várias partes interessadas”, incluindo câmaras municipais, governo e sector privado. Essas quotas devem considerar “a oferta de habitação, a subida dos preços do arrendamento urbano” e “o peso do Alojamento Complementar no parque habitacional”.

Uma pesquisa nas plataformas dedicadas ao alojamento turístico residencial mostra a preponderância deste segmento no conjunto do mercado. No popular Airbnb, estão registadas mais de 200 casas no Mindelo, com diárias entre os 3 e os 10 mil escudos. O número real será superior, pois há que considerar alojamentos já arrendados para o período pesquisado (Novembro de 2025), aqueles que apenas estão registados noutras plataformas (como o Booking.com) ou ainda os que são arrendados informalmente.

O sociólogo Redy Wilson Lima fala na ‘airbinização’ das cidades cabo-verdianas, fenómeno já registado noutros países e que começa a ganhar forma entre nós.

“É um efeito perverso do aumento do turismo, da ‘turistificação’. São Vicente está claramente nesta rota e, hoje, temos este fenómeno, diferente, da ‘airbinização’ das cidades, porque convém aos proprietários. Muitos deles ficam na informalidade, porque é difícil de fiscalizar. Os preços aumentam e deixa de ser apenas uma questão de preço (…) as pessoas podem ter dinheiro para alugar as casas, mas os proprietários preferem ganhar mais e ter menos preocupações, pelo menos teoricamente. O resultado é que as pessoas são cada vez mais empurradas para a periferia, uma realidade muito comum na Europa, nos Estados Unidos e em países mais desenvolvidos, mas que agora também está a ocorrer aqui, reforçando a crise habitacional existente”.

Cabo Verde não dispõe de estudos que comprovem a relação entre o aumento do negócio do alojamento local e a subida das rendas, causada pela redução da oferta no mercado de arrendamento tradicional. Noutros países, este vínculo já foi demonstrado. Em Portugal, uma pesquisa de 2022, coordenada pelo economista Paulo Rodrigues, com financiamento da Fundação Francisco Manuel dos Santos, demonstrou que os preços das casas caíram 9% nas zonas onde foram proibidos novos alojamentos locais.

Para Redy Lima, são necessárias políticas adequadas.

“Liderada pelas câmaras municipais, temos uma política de loteamento: lotear, vender, lotear, vender. Nem sequer estamos preocupados com o espaço público. Agora, temos um mercado não só para pessoas que compram de fora, especialmente emigrantes, mas também para o mercado turístico. Isto acaba por ser um efeito perverso do próprio turismo. Em Portugal, já acontece há algum tempo. Nas Canárias, há movimentos anti-turismo devido a este problema”, alerta.

… e mais além

Mas o problema não vem só da pressão turística. A falta de casas para compra ou arrendamento é estrutural e anterior a qualquer boom turístico. Em 2020, o défice habitacional de São Vicente era de 3.208 fogos, conforme consta do Plano Nacional de Habitação (PLANAH, 2021).

O arquitecto Nuno Flores, que coordenou o projecto de requalificação urbana “Outros Bairros”, liderando uma intervenção em Alto Bomba, Mindelo, não tem dúvidas de que, além de se construir mais, é necessário promover um desenvolvimento urbano inclusivo e sustentável.

“Não é possível olhar para a questão da habitação desligada do território. Há uma política pública da habitação e do território que tem de ser aprofundada, tem de ser melhorada, que eventualmente traz falhas e erros que têm de ser olhados e corrigidos. Relativamente à habitação, há alguns factores que são claros, que têm a ver com políticas de habitação que foram desenhadas para construir habitação em massa e que não – necessariamente – acautelam essa relação entre a habitação e o território”, menciona.

“É necessário pensar, por um lado, na habitação a preços controlados e regulada, é necessário pensar no território, sem que este cresça de forma absolutamente aleatória e desorganizada. Para isso, há algumas coisas que se podem fazer, como a ocupação de terrenos devolutos que existem no território e que podem ser utilizados para consolidar tecidos e malhas urbanas, em vez de se estar a construir indefinidamente em qualquer lugar, aumentando a infra-estrutura, a especulação, etc.”, exemplifica.

A nível nacional, e através do PLANAH, o governo admite a necessidade de, até final da década, investir mais de 167 milhões de contos na construção, reabilitação e requalificação de casas, infra-estruturação e planos urbanísticos. Terão de ser edificadas mais de 36 mil novas habitações e intervencionadas 40 mil já existentes.

Nuno Flores apela a um debate aberto e alargado, envolvendo poder central e local, universidades e sociedade civil, para que sejam encontrados e adoptados mecanismos que garantam às famílias o direito constitucional a uma habitação condigna.

*com Fretson Rocha e Lourdes Fortes (Rádio Morabeza)

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1209 de 29 de Janeiro de 2025.

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Autoria:Nuno Andrade Ferreira*,1 fev 2025 9:27

Editado porDulcina Mendes  em  2 fev 2025 8:20

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