A criminalidade, com destaque para os chamados “casobody” (assaltos), parece estar a ganhar terreno, deixando a população à mercê da violência urbana.
No terminal de autocarros no bairro de Vila Nova, um dos principais pontos de intersecção entre o Norte e o Sul da capital, falámos com Maria (nome fictício), empregada doméstica, que recorda um dos dias mais traumáticos da sua vida.
“Cheguei à paragem um pouco antes das sete horas. Já estavam outras pessoas à espera. De repente, apareceram uns rapazes a anunciar o assalto. Recusei-me a entregar a minha bolsa. Um deles sacou uma faca e começou a golpear-me na mão. Outro pegou numa pedra do passeio e atingiu-me com força na cabeça. Desmaiei logo ali, no meio das pessoas que também estavam a ser assaltadas.”
Maria, que vive em Ponta d’Água e tem de descer até Vila Nova todos os dias para apanhar o autocarro para ir trabalhar, ficou um mês sem poder exercer as suas tarefas. Ainda hoje carrega o trauma e as cicatrizes do ataque. “Sou mãe e chefe de família. Não temos resposta da polícia até hoje. Vivo com medo de ser surpreendida outra vez.”
Mais a Leste da capital, em Achada Mato, o retrato é semelhante. A zona é conhecida por ser ponto de passagem de estudantes, trabalhadores e vendedeiras ambulantes. Mesmo durante o dia, os assaltos são frequentes.
“Vendemos aqui todos os dias. As pessoas já nos conhecem, mas isso não impede os ‘casobody’. Já vimos pessoas a chegar em pânico, acabadas de ser assaltadas a poucos metros de nós. É só estar distraída. Vivemos numa selva. Em vez de feras, temos delinquentes. E as autoridades parecem não saber mais o que fazer”, desabafa uma vendedora.
Cidadãos atrás de grades
Em Achada Limpo, no complexo habitacional Casa para Todos, os relatos continuam. Ali, os moradores optaram por se manter fechados em casa. “Aqui ninguém anda livremente. Quem está na rua, são os bandidos. Nós que trabalhamos, estamos atrás de grades nas portas e janelas. É a única forma de nos sentirmos um pouco seguros”, conta um residente, que prefere não se identificar.
As histórias repetem-se e acentuam um sentimento colectivo: a insegurança tomou conta das ruas da capital. O medo é transversal – dos bairros populares às zonas habitacionais mais recentes. E as vítimas já não se limitam a evitar sair de noite: o perigo espreita a qualquer hora do dia, em qualquer esquina.
Num contexto em que os relatos de assaltos com recurso a facas, pedras e até mesmo armas de fogo tornam-se cada vez mais frequentes. A questão que se impõe: estamos perante uma crise de segurança pública na Cidade da Praia? A resposta ainda parece distante, mas a urgência em restaurar a confiança da população nas autoridades é, para muitos, ainda mais urgente do que nunca.
Especialista
Para compreender melhor as causas e consequências desta vaga de criminalidade, ouvimos José Maria Rebelo, Mestre e Doutorando em Direito e Segurança, Auditor de Segurança Interna, Docente, Investigador e Formador de Segurança.
“A insegurança que se vive actualmente na Cidade da Praia é reflexo de vários factores que se foram acumulando ao longo dos anos. Um deles é a ausência de políticas públicas eficazes e sustentadas de segurança preventiva. Foca-se muito na repressão, mas esquece-se a prevenção. E é aí que reside uma das maiores fragilidades do nosso sistema”, afirma o especialista, sublinhando que “não basta aumentar o número de polícias nas ruas, é preciso investir na coesão social, na educação, no urbanismo e no acesso a oportunidades”.
Segundo José Maria Rebelo, os fenómenos criminais que se repetem, como os assaltos violentos do tipo “casobody”, devem ser analisados sob uma perspectiva sistémica. “Estamos perante um quadro onde o crime, sobretudo o patrimonial com violência, começa a tornar-se uma resposta de grupos vulneráveis, muitas vezes jovens, a contextos de exclusão, desemprego e falta de perspectivas. Mas isso não os justifica. O que se exige do Estado é uma resposta multissectorial e não apenas policial.”
Questionado sobre o papel das forças de segurança, o especialista reconhece os esforços das autoridades, mas considera que “a Polícia Nacional tem feito o possível com os recursos disponíveis, mas não pode resolver sozinha um problema que é estrutural. Precisamos de uma política nacional de segurança pública que envolva vários ministérios e actores sociais. Sem isso, vamos continuar a correr atrás do prejuízo.”
Estratégias preventivas
Sobre que tipo de estratégias preventivas, com enfoque em inteligência e policiamento de proximidade, poderiam ser mais eficazes neste contexto, José Maria Rebelo afirma que a combinação de algumas abordagens pode ser altamente eficaz.
“Entre as abordagens-chave aponto a análise de dados e inteligência preditiva – a utilização de sistemas que permitem identificar padrões criminais e antecipar ocorrências; ferramentas como Big Data e georreferenciação, (ferramentas tecnológicas usadas para recolher, analisar e interpretar grandes volumes de informação, com o objectivo de apoiar a tomada de decisões), ajudam a direccionar acções policiais para áreas críticas, otimizando recursos. Muitas vezes esses dados estão à disposição, mas são pura e simplesmente desvalorizados. Nisso, diagnóstico errado gera soluções também erradas.”
O especialista aponta também a estratégia de policiamento comunitário: “o fortalecimento da relação entre a polícia e a população gera confiança e facilita a troca de informações. Programas como rondas a pé, diálogo com líderes locais e participação em eventos comunitários aumentam a sensação de segurança e dissuadem actividades ilícitas; monitorização estratégica com uso de tecnologia e partilha de informações entre forças e serviços – câmaras de vigilância, sensores e aplicativos de denúncia anónima complementam o trabalho policial, permitindo respostas rápidas e precisas”.
A integração dessas tecnologias, na opinião de José Maria Rebelo, com centros de comando unificado amplia a eficiência.
“Estão alguns destes elementos disponíveis, mas a partilha de informação ainda não é nem genuína, nem sistémica. No mais das vezes os serviços veem-se uns aos outros com desconfiança ou disputa de protagonismo; capacitação e especialização de agentes – investir na formação contínua dos profissionais de segurança, com ênfase em inteligência e mediação de conflitos, assegura abordagens mais técnicas e humanizadas, reduzindo a escalada de violência”.
A eficácia destas estratégias, defende, depende da combinação entre inteligência policial, proximidade com a comunidade e uso estratégico de tecnologia, sempre alinhadas a políticas públicas mais amplas.
No que toca ao papel das comunidades e das instituições locais na prevenção da criminalidade, José Maria Rebelo é taxativo: “A prevenção da criminalidade exige uma abordagem colaborativa, na qual comunidades e instituições locais possuem a capacidade de identificar vulnerabilidades locais, promover a coesão social e implementar medidas que sejam dissuasoras para actividades ilícitas. Ninguém conhece os problemas da comunidade mais do que os seus próprios membros. Desvalorizar ou estribar para minorar as contribuições que a comunidade possa dar é um erro estratégico.”
A proximidade com a realidade local, segundo o especialista, permite que os cidadãos reconheçam sinais de risco e adoptem medidas preventivas, como a criação de redes de vizinhança e a denúncia de comportamentos suspeitos. “Além disso, a promoção de actividades culturais, educativas e de inclusão social fortalece os laços comunitários, reduzindo factores que contribuem para a criminalidade, como a marginalização e a falta de oportunidades.”
“Já as instituições locais — como escolas, associações e órgãos públicos — têm a responsabilidade de estruturar políticas preventivas. Programas educacionais voltados para a cidadania, o acesso a serviços básicos e a mediação de conflitos são instrumentos úteis para combater as causas profundas da criminalidade. A parceria entre autoridades policiais e lideranças locais garantem respostas ágeis e estratégias adaptadas às necessidades das pessoas.”
Para José Maria Rebelo, a actuação conjunta de comunidades e instituições locais cria um ambiente mais seguro e resiliente. “Ao investir na prevenção social e no fortalecimento de laços comunitários, é possível reduzir significativamente os índices de criminalidade e promover um desenvolvimento sustentável. Isso só será possível com um forte investimento numa estratégia adequada para a recuperação da percepção da confiança dos cidadãos nas instituições.”
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PGR anuncia criação de equipa para combater criminalidade
O Procurador-Geral da República anunciou na terça-feira a criação de uma equipa para o “combate urgente” à criminalidade urbana na capital e restaurar tranquilidade nos bairros, face ao aumento de assaltos e conflitos entre grupos criminosos. Situação que, segundo Luís José Landim, relembra os "níveis críticos" registados em 2021. O anúncio foi feito à margem da abertura de uma formação especializada em Digital Forense, Investigação Digital e Policiamento de Proximidade, promovida no âmbito de uma cooperação técnica entre o Governo, o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (ONUDC) e a Polícia de Roterdão (Países Baixos). Luís José Landim informou que a equipa já iniciou os trabalhos com recolha de dados, identificação de suspeitos e preparação de medidas processuais, incluindo mandados de detenção.
O objectivo, conforme avançou, é restaurar a tranquilidade nos bairros da capital, à semelhança do que aconteceu em 2021, quando uma força semelhante obteve “resultados satisfatórios”.
“A criminalidade organizada transnacional preocupa-nos, sim. Mas neste momento, a criminalidade urbana na Praia exige uma resposta urgente. A população tem de colaborar, mesmo de forma anónima, para que as autoridades possam actuar de forma eficaz”, apelou.
O Procurador-Geral indicou ainda que a mesma estratégia será aplicada na ilha de São Vicente, com o intuito de garantir segurança aos residentes e turistas.
*Com Inforpress
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1223 de 07 de Maio de 2025.