Para falar deste Estudo Epidemiológico, há que voltar um pouco atrás, à doença inesperada de André Corsino Tolentino. Em 2016, o diplomata e intelectual foi diagnosticado com doença de Parkinson. Avaliações posteriores viriam a revelar tratar-se de Paralisia Supranuclear Progressiva (PSP), uma doença do movimento mais rara e agressiva.
Da sua vivência com a doença nasceu o livro "A vitória é hoje", um diário que não visa apenas a partilha da experiência, mas tem um objectivo solidário mais alargado: ser útil à sociedade, trazendo vez e voz aos pacientes com doenças do movimento em Cabo Verde.
O livro foi lançado em 2021 e foi criado o Projecto Doenças do Movimento em Cabo Verde (formalizado como Fundação em Outubro de 2022). Pouco depois do lançamento, Corsino Tolentino faleceu. Mas o seu legado continua vivo.
"Quando somos chamados respondemos"
Quando a doença o atingiu, a sua filha Leida Curado Tolentino, doutorada em Psicologia e Neurociência Cognitiva e activa nas artes do movimento (na dança), encontrou-se numa posição única para honrar a vontade do pai.
Assim, assumiu a liderança do Projecto, e posteriormente da Fundação, Doenças do Movimento em Cabo Verde, que actua em três vertentes: literacia, advocacia e pesquisa.
Foi criado um grupo no Facebook para divulgação de informação e partilha de experiências. Ao nível da literacia, organizaram-se ainda várias palestras e uma marcha no Dia Mundial de Conscientização da Doença de Parkinson. Além disso, foi criado um grupo de apoio que mensalmente se reúne na Uni-Sénior.
Na advocacia, e seguindo o apelo do paciente-fundador para exigir ao Estado maior protecção aos doentes das DM, tem-se destacado a necessidade de ampliar o apoio às terapias. “A participação do INPS continua limitada, mas vamos persistir”, afirma Leida Tolentino.
Foram ainda realizadas reuniões com entidades como a ERIS, EMPROFAC e o Ministério da Saúde, tentando, como conta Leida, “agilizar, principalmente, certos aspectos burocráticos do acesso à medicação.”
Entre as conquistas, destaca-se já a extensão do certificado de importação de medicamentos crónicos, de seis meses para três anos, resultado de um esforço conjunto.
Faltava, porém, o pilar da pesquisa. E aí entra o Estudo, ontem, apresentado.
4 fusos
“Demos conta, muito cedo, que não havia dados estatísticos sobre as DM em Cabo Verde e que era urgente um estudo básico para se ter a noção de quantos portadores existem e quais as barreiras que enfrentam”. Foi com este objectivo em mente que, em Janeiro de 2022, Leida, que vive na Califórnia começou uma troca de ideias com Filipe Monteiro, matemático com “vasta experiência na área de epidemiologia” da Universidade de Brown, em Providence.
Em Maio desse ano, apresentaram a proposta formal para Estudo, submetida às entidades reguladoras e aprovada no ano seguinte.
Entretanto, à equipa inicial da diáspora juntaram-se a neurologista Antónia Rodrigues Fortes, do Hospital Universitário Agostinho Neto (HUAN), e Cláudia Brito Pires, mestranda em Neurociências na Universidade de Coimbra, co-orientada por Leida e responsável por grande parte da recolha no terreno.
Assim se formou uma equipa nacional dispersa por quatro fusos horários diferentes, num estudo a quatro mãos, que contou ainda com o apoio da enfermeira Hedilaine Gomes.
A recolha
A recolha de dados decorreu entre Julho e Dezembro de 2024, abrangendo todas as ilhas do país, com excepção de Maio e Brava. O trabalho presencial concentrou-se em Santiago, Santo Antão e São Vicente, as ilhas onde habitualmente os neurologistas prestam consultas.
Na verdade, todos os neurologistas do país residem na cidade da Praia, deslocando-se esporadicamente a outras ilhas ou cobrindo o território através da telemedicina. Esta centralização deixa amplas zonas do país com acesso limitado a cuidados especializados e é, aliás, uma das fragilidades apontadas pelo Estudo.
Quanto à metodologia, combinou a revisão de processos clínicos em hospitais e clínicas com entrevistas estruturadas, presenciais e telefónicas, e ainda um inquérito online.
O estudo teve apoio financeiro do INPS, apoio logístico do Instituto Nacional de Saúde Pública (INSP) e CV Telecom, e alguns apoios pontuais destinados à apresentação pública dos resultados.
Os dados
Quanto aos dados aferidos, contabilizou uma amostra de 110 pacientes com DM, entre os quais a maioria foi diagnosticada com Doença de Parkinson (DP), seguida do Tremor Essencial (9%) e da doença de Huntington (8%). Distomias e Atrofia Multissistémica (AMS) representam 1% dos casos. A PSP não chegou a 1%.
A investigadora principal, Leida Tolentino, admite que a elevada proporção de casos de DP pode reflectir limitações no diagnóstico, especialmente nas fases iniciais, quando é difícil distinguir entre parkinsonismo típico e atípico, que inclui a PSP, a AMS ou a Degeneração Corticobasal (DCB).
Adicionalmente, alerta para um possível subdiagnóstico, devido, nomeadamente, à escassez de serviços especializados. “Existem neurologistas em Cabo Verde, mas não especialistas em doenças do movimento”, observa. Ao mesmo tempo, a concentração desses profissionais em Santiagopoderá também contribuir para a subestimação dos casos noutras ilhas, em especial nas zonas rurais, onde muitos doentes podem nunca chegar a ser diagnosticados.
Abaixo da média mundial
Talvez esse subdiagnóstico justifique também o facto de a DP ter em Cabo Verde uma taxa de prevalência bastante inferior à média mundial. Segundo o Global Burden of Disease 2021, essa taxaera de138,6 casos por 100.000 habitantes, devendo atingir entre 145 e 150 em 2025. Com cerca de meio milhão de habitantes, mais de 700 estariam a viver com Parkinson em Cabo Verde. Isto segundo estimativas mais conservadoras, tendo em conta que outras fontes apontam para 200 em 100.000 habitantes, a nível mundial. Ora, como referido, foram encontrados apenas 110 casos, nas ilhas estudadas.
Além do subdiagnóstico uma outra hipótese aventada para esta discrepância é o facto de uma grande franja da população ser bastante jovem. Quanto a eventuais factores genéticos, “não nos podemos pronunciar. Ainda não existem estudos que possam fornecer dados científicos”, aponta Leida Tolentino.
Entretanto, existem vários estudos a nível mundial que mostram o exponencial aumento do Parkinson, sendo que o maior crescimento ocorrerá na África Ocidental, impulsionado sobretudo pelo envelhecimento da população.
Dados Surpreendentes
Sendo as DM associadas ao envelhecimento, um dado que surpreendeu os investigadores foi o facto de 23% dos pacientes “terem sido diagnosticados com uma idade inferior a 50 anos” e 3% antes dos 30 anos.
“Cada vez mais se observam casos precoces, e até formas juvenis, antes dos 21 anos”, aponta Leida Tolentino. “Não identificámos muitos casos juvenis, mas a percentagem de diagnósticos em idades precoces foi surpreendente.”
Uma das possíveis explicações poderá estar nos factores ambientais: 35% dos participantes foram expostos a materiais nocivos como ferro, cobre ou pesticidas - substâncias associadas a um maior risco de desenvolver Parkinson. “Cada vez mais, os factores ambientais ganham peso face à componente genética”, lembra a investigadora.
Talvez esses factores ambientais expliquem a maior prevalência nas ilhas de Barlavento (20) do que em Sotavento (15), mas a razão exacta permanece por esclarecer. “Não temos uma boa teoria”, admite. “Não se pode justificar por um maior acesso a neurologistas, porque acontece precisamente o contrário. Pode ter a ver com factores ambientais, como maior exposição a pesticidas, sobretudo em zonas rurais, como Santo Antão.”
O envelhecimento, ainda assim, destaca-se como factor de risco: a prevalência acima dos 60 anos foi sete vezes superior à da população em geral. Já em termos de género, o país segue a tendência mundial: os homens são mais afectados. “Foi um padrão claro”, nota Leida. A prevalência foi de 19 casos entre homens, face a 14 nas mulheres.
Principais dificuldades
Entre os dados marcantes estão as dificuldades enfrentadas pelos pacientes. Cerca de 70% relataram obstáculos moderados ou graves no acesso à medicação. Os testemunhos citados no relatório do Estudo ilustram bem este problema.
“A maior dificuldade é o medicamento, está sempre em falta e tem que se ir a Portugal comprar, ou mandar vir”, contou um dos entrevistados. Outro afirmou: “Tivemos de ir para os Estados Unidos para obter medicamentos, porque teve instantes em que não havia no mercado em Cabo Verde.”
Também o acesso a terapias se revela limitado. Embora apenas 35% tenham referido barreiras nesse domínio, a investigadora alerta que é preciso “interpretar este dado com cuidado, porque nem toda a gente busca a terapia. Medicamentos sim, mas a terapia nem tanto. E existem muitas barreiras.”
Como resume um dos participantes: “As ajudas do INPS são bem-agradecidas, mas não são suficientes.”
Além disso, a qualidade de vida também sai fortemente afectada: 51% indicaram um impacto forte ou extremo. E não apenas nos próprios doentes, mas também nas suas famílias.
Um outro dado a destacar são os desafios emocionais enfrentados pelos pacientes, referidos por um total de 68 entrevistados (61,8%). 36% dos pacientes referiram, inclusive, sofrimento psicológico, com sintomas como tristeza e falta de motivação.
Recomendações
No relatório, a equipa de investigação traça várias recomendações, alinhadas, acredita Leida Tolentino, com os planos e objectivos do Ministério de Saúde.
Dentro das mais urgentes, destaca-se a já referida necessidade de reduzir a burocracia no acesso a medicamentoseaumentar a comparticipação do INPS. Outra das recomendações estruturais é a descentralização dos serviços neurológicos, apontada como um entrave “real” ao diagnóstico e tratamento.
Outra necessidade apontada é a modernização dos sistemas nacionais de saúde, nomeadamente a organização e digitalização dos arquivos clínicos. Enquanto instituições como o HUAN já utilizam sistemas electrónicos, outras continuam a depender de registos em papel, frequentemente desorganizados, incompletos ou duplicados. “Tínhamos que ir de A a Z para encontrar um paciente”, conta.
No plano clínico, recomenda-se a promoção do diagnóstico precoce, sobretudo à luz da proporção significativa de casos em idades mais jovens. “É fundamental sensibilizar a população e detectar mais cedo, para que se possa acompanhar desde o início, com maior probabilidade de sucesso”, alerta.
Recomenda-se ainda melhor acesso a terapias complementares e apoio psicológico sistemático, tendo em conta os desafios emocionais associados às doenças.
E apresentam-se ainda recomendações sistémicas, nomeadamente a necessidade de intervenções holísticas coordenadas entre sectores.
O futuro
Três anos e meio depois da morte do paciente fundador, chegou o momento de entregar à sociedade cabo-verdiana o primeiro retrato científico das suas doenças do movimento.
O estudo está feito e foi ontem apresentado, na Biblioteca Nacional. Será também realizada uma apresentação em São Vicente, direccionada para a comunidade de profissionais de saúde, no auditório do Hospital Baptista de Sousa.
O impacto deste estudo, que revela realidades antes invisíveis e abre caminhos para políticas públicas baseadas em evidência, dependerá muito da recepção das instituições e utilizadores. Espera-se, acima de tudo, que cumpra o seu propósito maior: ser útil, como desejava André Corsino Tolentino, o paciente fundador.
“Esse é o principal motor deste projecto”, sublinha Leida Tolentino. “Que seja útil”.
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Doenças do Movimento
As doenças do movimento são um grupo de distúrbios neurológicos que afectam o controlo dos gestos voluntários e involuntários. Podem manifestar-se através de tremores, rigidez, lentidão, espasmos, movimentos anormais ou dificuldade em iniciar e coordenar acções. Entre os exemplos mais comuns estão a doença de Parkinson, as distonias, a ataxia e a doença de Huntington. No entanto estes distúrbios vão além do que se vê, envolvendo também sintomas não motores, como perturbações do humor, défices cognitivos, problemas gastrointestinais e do sono.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1230 de 25 de Junho de 2025.