Há mais de quatro anos, Lígia, moradora em Achadinha, junta as sobras de comida de casa que depois doa a uma vizinha. Outros vizinhos, que também têm muitas sobras em casa, vão a casa da Lígia despejar os restos que alimentam os porcos.
“Sei que há pessoas que vendem as sobras, mas eu prefiro doar porque se não tenho que colocar no balde de lixo que, por sua vez, fica a cheirar mal, atrai insectos e cria vermes”, relata.
A dona de casa diz ainda que há pessoas que batem de porta em porta a pedir sobras que depois são vendidas no mercado municipal a 250 escudos por cada 25 litros.
Embora as sobras da sua casa sejam doadas, Lígia garante que toma alguns cuidados, como evitar colocar espinhas de peixe, ossos, papéis ou sacos de plástico, para não matar o animal que será alimentado.
Nem todos juntam as sobras para doar. No mercado de Sucupira, por exemplo, as barracas que vendem almoço também vendem as sobras das refeições que são servidas naqueles espaços.
É o caso de Maria. Maria chega à Sucupira às 09h00 da manhã e começa a preparar os ingredientes que serão utilizados na confecção dos pratos do dia.
Quando o Expresso das Ilhas lá chega, a senhora encontra-se a descascar as cenouras, a picar as couves e a tratar de outras verduras.
As cascas são colocadas num balde de 25 litros que depois será vendido a uma criadora de porcos.
“Por dia consigo encher um balde de 25 litros, mas aqui há quem consiga encher até dois baldes de sobras por dia porque também vendem pequeno-almoço”, conta.
Cada balde de 25 litros de sobras de comida é vendido por 200 escudos. Segundo Maria, há muita procura.
“Mas eu não vendo a toda a gente, já tenho compromisso com uma pessoa que vem buscar todas as tardes. 200 escudos não compensam nada, mas é um preço simbólico porque a pessoa traz normalmente o balde, quando vem buscar as sobras, higieniza o balde para evitar que se criem bichos e deixa pronto para o dia seguinte”, explana.
Assim como Lígia, Maria toma alguns cuidados com as sobras. O balde destinado à venda não pode conter espinhas de peixe, não pode conter ossos e as cascas de determinados alimentos, como mandioca, também não.
“Há pessoas que pedem para colocar toda e qualquer sobra porque têm cães e então separam os ossos e as espinhas, mas a quem tem apenas porcos não damos todo o tipo de sobras”, complementa.
Também evita colocar água no balde para não surgirem vermes. “É uma forma de ajudar quem faz a criação de animais”, afirma.
Relativamente às sobras que não podem ir no balde, Maria descarta-as no contentor de lixo.
Menos gastos com ração
Any tem três porcos cuja dieta é feita à base de sobras de comida que recolhe junto aos vizinhos e das sobras da sua própria casa.
“Recolho as sobras em pelo menos seis casas, sem que me cobrem”, relata.
Conforme conta, passou a fazer essas recolhas após ver essas pessoas a deitarem as sobras nos contentores de lixo. Assim, ofereceu-lhes baldes de 10 litros para as colocarem.
Uma vez por semana, Any desloca-se a essas casas para buscar os baldes que, após despejados, são higienizados e colocados de volta na casa dos vizinhos.
Quando não há sobras para alimentar os porcos, Any compra milho. “Fica mais barato alimentá-los com sobras. Além de ser mais barato, é melhor do que ração, que é leve. As sobras, geralmente, são comidas cozidas e, portanto, um pouco mais pesadas”, avalia.
Any detalha ainda que evita dar a comer espinhas de peixe, sobras de comida estragada e ossos. “Por isso, quando recolho as sobras, ao chegar a casa faço a separação das sobras numa peneira. Também, se a sobra estiver muito gordurosa, lavo-a antes de dar aos porcos”, esclarece.
Quanto às sobras que não são propícias para alimentar os porcos, Any refere que costuma cavar o chão e enterrar, e que dá aos cães as espinhas e ossos.
Esta criadora garante que não cata sobras de comida no lixo para dar de comer aos animais, para evitar doenças. Contudo, admite que conhece criadores que recolhem as sobras no lixo.
Por seu turno, Iolanda tem dois porcos e conta ao Expresso das Ilhas que os alimenta com sobras de comida misturadas com ração.
Além das sobras da sua casa, à semelhança de Any, Iolanda faz recolha junto aos vizinhos.
“Até há bem pouco tempo fazia recolha em várias casas nos arredores. Mas, depois, passaram a cobrar por balde entre 100 e 200 escudos, dependendo do tamanho do balde, então deixei de ir. Hoje em dia faço a recolha apenas numa casa, num balde de 15 litros”, ressalta.
Segundo a criadora, os restos permitem poupar os gastos com ração industrial, que custa cerca de 2.500 escudos.
“Ao misturar a ração com os restos de comida, ao invés de comprar todos os meses um saco de ração, compro um mês sim e outro não”, argumenta.
Iolanda também faz a separação das sobras e evita espinhas e ossos para não engasgar os porcos.
“Os restos que não servem para alimentar os porcos coloco no lixo ou então enterro”, diz.
“Inova bu Prátu”: um projecto que transforma desperdício alimentar em inovação e educação nutricional
Em 2018, os estudantes da primeira turma do curso de Nutrição e Qualidade Alimentar da Universidade de Santiago (US) lançaram o projecto “Inova bu Prátu” para combater o desperdício alimentar e promover a sustentabilidade.
“O principal objectivo do projecto é promover o aproveitamento integral dos alimentos, evitando o desperdício e incentivando uma alimentação mais nutritiva, sustentável e acessível”, explica a US.
Além disso, o projecto visa gerar um impacto positivo na educação alimentar, na segurança alimentar e na economia local, contribuindo assim para a melhoria da qualidade de vida da população.
O projecto, segundo a Universidade, promove inovações na utilização de partes não convencionais dos alimentos, ou seja, as partes que normalmente seriam descartadas, como cascas, talos, sementes e bagaços.
“Entre as receitas desenvolvidas, destacam-se o bolo de farelo de milho, crepes de beldroega, carne vegetal à base de casca de banana, snacks com cascas de fruta e gelado de bagaço de cana”, diz a US.
A iniciativa incentiva ainda novas formas de preparar os alimentos já conhecidos, ampliando as possibilidades de uso e reinventando pratos tradicionais por meio da gastronomia criativa.
Quanto à escolha dos ingredientes, leva-se em conta a sazonalidade e o acesso local, o que contribui para um menor impacto ecológico.
“Um dos pilares do projecto é a valorização da sustentabilidade ambiental, promovendo o uso de produtos da época e reaproveitados, reduzindo o lixo orgânico e incentivando práticas de consumo consciente”.
A comunidade é o grande alvo da iniciativa, com um foco especial em famílias de baixos rendimentos, instituições educativas e profissionais do sector da alimentação.
Embora ainda não haja dados quantitativos sobre o impacto do projecto, a US garante que já foram realizadas diversas actividades, como formações e partilhas de experiências em escolas e instituições como as Aldeias SOS.
Aliás, refere a Universidade, até ao momento, cerca de 40 beneficiárias das Aldeias SOS de Assomada, Ribeirão Chiqueiro e Santa Cruz participaram em formações práticas.
“Estas formações têm promovido mudanças efectivas nos hábitos alimentares e contribuído para a redução do desperdício alimentar nessas localidades”.
Para o futuro próximo, está prevista a implementação de um projecto-piloto com o objectivo de recolher indicadores concretos sobre o impacto nutricional, económico e ambiental da iniciativa.
O “Inova bu Prátu” foi apresentado nas comemorações do Dia das Nações Unidas, na cidade da Praia, e já mereceu atenção internacional com destaque em publicações do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), no jornal português Observador e até num telejornal da região administrativa de Macau.
O projecto envolve nutricionistas, docentes e alunos do curso de Nutrição e Qualidade Alimentar.
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Resíduos orgânicos e desperdício alimentar colocam em risco solos, água e clima
O abandono de resíduos orgânicos pode agravar os impactos ambientais do desperdício alimentar.
Segundo explica o ambientalista Nemias Moniz, o problema vai muito além da perda de alimentos.
“Pode-se acrescentar o facto de os resíduos orgânicos abandonados poderem produzir ou libertar gases para a atmosfera, como o metano, e provocar a contaminação do solo e dos recursos hídricos subterrâneos. É claro que, para a saúde humana, não é nada benéfico”, diz.
Numa análise ao impacto ambiental deste fenómeno, Moniz recorda que Cabo Verde já enfrenta limitações em termos de recursos hídricos e agrícolas, e que o desperdício alimentar representa um agravante.
“O desperdício alimentar em Cabo Verde tem um impacto ambiental muito grande, dados os limitados recursos hídricos e agrícolas que temos. Sendo um país que gasta uma enorme quantidade de água para a produção agrícola, muitas vezes com técnicas rudimentares. Isso implica uma sobre-exploração não só dos recursos hídricos como dos solos, que perdem a fertilidade devido ao seu uso inadequado”, complementa.
Entre as soluções propostas, o ambientalista defende uma mudança nos hábitos de produção e consumo.
“Soluções sustentáveis para reduzir o desperdício eram, sem sombra de dúvidas, a aposta na conservação e limitar a quantidade dos produtos que cozinhamos. Também a produção devia cingir-se à rotatividade e diversidade de culturas”.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1235 de 30 de Julho de 2025.