Uma semana depois das enxurradas de 11 de Agosto, São Vicente continua a tentar medir a dimensão da tragédia, mas também começa a debater as suas causas, o que não foi feito e deveria ter sido.
As operações de limpeza avançam com alguma maquinaria pesada e, acima de tudo, graças ao esforço solidário da comunidade. Os serviços básicos vão sendo repostos, incluindo água, e a circulação retomada na maior parte das vias, mas muito continua por fazer. Para tantos, a “normalidade” é uma miragem.
Em Chã de Alecrim, Janine Ferreira estava a dormir quando a casa foi tomada pela força das águas.
“Tudo abafou. Estávamos deitados e não estávamos a ouvir água. Quando acordámos, a lama já chegava às pernas, não conseguimos salvar nada. Somos seis pessoas e estamos a dormir na casa de uma vizinha. Continuamos a correr perigo, porque se chover a enxurrada vai cair aqui também. Ainda por cima, os contentores lá em cima podem cair a qualquer momento”, diz, apontando para vários contentores no topo de uma colina, alguns dos quais já sem parte da base de sustentação.
Quanto mais nos afastamos do centro, piores as histórias. Em Portelinha, muitas casas de tambor sofreram danos consideráveis. Um dos casos mais graves é o de Joana Delgado. A água entrou pela parte traseira da construção precária e saiu pela frente, levando tudo consigo.
“Perdi quase tudo, digo quase tudo, porque ficámos com vida e saúde. Todas as minhas coisas, fogão, coisas de cozinha, electrodomésticos, cama, tudo ficou debaixo da lama. Até conseguir chegar à porta, já tinha lama na canela. Neste momento, estou na casa de um familiar”, comenta.
A estrada de acesso foi limpa pela própria comunidade, com o envolvimento de muitos voluntários, num cenário que se repete um pouco por toda a ilha. Uma mobilização sem precedentes, no país e diáspora (ver texto nas páginas 8-9), tem servido de rede de apoio - em muitos casos, a única - a quem foi afectado.
É de ajuda que Maria Auxilia Monteiro precisa. No Iraque, em frente à lixeira, a casa de tambor onde morava foi arrasada. Desalojada, vive com familiares. Ela e mais cinco pessoas, incluindo uma bebé de sete meses.
“Nem consigo explicar como escapámos. Começou a chover, fui abrir algumas saídas de água, para prevenir, mas, de repente, a água entrou dentro de casa. No desespero, não sabia o que fazer, tirei a minha neta das mãos da mãe e saímos para a rua, para nos salvarmos”, lembra.
Esta terça-feira, mais de 250 pessoas continuavam ao cuidado da Protecção Civil. 151 retiradas de zonas de risco, perante a possibilidade de mais chuva, 101 que não têm onde para onde ir.
(Re)fazer bem
O governo anunciou sábado o Plano de Resposta e Recuperação para as ilhas em situação de calamidade - São Vicente, Santo Antão e São Nicolau - com respostas para famílias, comerciantes informais, empresas e proprietários afectados (ver texto na página 6).
A dimensão dos prejuízos continua a ser apurada, mas são enormes. O fenómeno meteorológico extremo explica muita coisa, mas não explica tudo. Desde há muito que se fala da necessidade de melhores políticas de urbanismo, com mais cuidado na ocupação de solos e melhores infra-estruturas.
Para a engenheira civil e professora da Universidade Técnica do Atlântico, Vera Marques, numa primeira fase, é “muito importante” avaliar o estado de conservação das estruturas que resistiram às enxurradas. Depois, será tempo de refazer melhor.
“É necessário pensar no planeamento e ordenamento do território e, principalmente, em termos um sistema de drenagem de águas pluviais que funcione na dimensão da ilha, tanto em meio urbano, como a jusante, que é de onde a água vem”, observa.
Além de desviar as águas, é necessário proteger construções existentes, incluindo aquelas que surgiram em locais de risco.
“[É preciso] proteger as habitações que temos para, no futuro, não termos mais constrangimentos e desgraças como tivemos. A nível de construção nas encostas, temos que tentar proteger o que já está e tentar conter os taludes, perceber como é que podemos fazê-lo”, nota.
Além de investimento em infra-estruturas, a aposta em vegetação adequada ao nosso clima ajudará a diminuir a erosão.
“A vegetação diminui a erosão dos solos e aumenta a infiltração da água para o terreno, ou seja, cria maior estabilização. Há técnicas mais avançadas, mas que terão custos muito mais elevados”, destaca.
Ao anunciar a resposta do governo à tragédia do dia 11, o Primeiro-Ministro disse que o objectivo do programa de reconstrução de infra-estruturas deverá ser orientado por critérios de maior resiliência às mudanças climáticas. O plano abrangerá estradas, ruas, muros, sistemas de água, electricidade e saneamento, equipamentos urbanos, infra-estruturas desportivas, orlas marítimas, praias e sistemas de drenagem.
*com Fretson Rocha e Lourdes Fortes
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1238 de 20 de Agosto de 2025.