Em entrevista ao Expresso das Ilhas, António Pedro Silva afirmou que uma das principais dimensões a ser revista é a institucional, apontando falhas na gestão da autarquia. “O principal lixo, eu diria, não foi varrido, que é a forma como a autarquia é gerida. Claro que isso transcende a questão da mera cheia que aconteceu”, disse, sublinhando que a má gestão, marcada por “laivos não só de incompetência, mas mesmo de corrupção”, está a minar a sociedade e tem ligações a nível nacional.
Reconhecendo a necessidade de medidas imediatas para apoiar as populações afectadas, considera, no entanto, que o desafio vai muito além das respostas paliativas. “O trabalho é gigantesco, mas terá de ser feito”, afirmou, defendendo que o verdadeiro problema não é a ausência de estudos ou diagnósticos sobre o ordenamento da ilha, mas a falta de decisão séria e honesta.
“Não é problema quase de estudar, é de gente honesta a tomar decisões, gente séria a tomar decisões e, acima de tudo, penso que há necessidade de responsabilizar criminalmente os decisores que participaram, ou as pessoas que participaram, por inércia e por acção directa”, frisou.
Segundo António Pedro Silva, essa inércia traduziu-se na proliferação de construções descontroladas nas ribeiras e encostas sem a devida fiscalização, enquanto a acção directa se expressou na atribuição de lotes em zonas de risco e na falta de manutenção de infra-estruturas como diques e espaços destinados à infiltração da água.
“Há muito por fazer”, concluiu António Pedro Silva.
É urgente um PDM
O engenheiro civil Hernano dos Santos defendeu que a ausência de um Plano Director Municipal (PDM) é o maior entrave à organização urbana de São Vicente e à prevenção de catástrofes como as cheias que atingiram a ilha na última semana.
Em entrevista à Televisão de Cabo Verde (TCV), o técnico foi claro: “São Vicente é a única ilha do país que não tem PDM. Este é o instrumento maior, a ‘constituição’ do desenvolvimento urbano, e sem ele não faz sentido sequer falar de Carta de Risco”.
Hernano recordou que há mais de dez anos já tinha sido levantada a preocupação com o crescimento desordenado da cidade, sem que nada fosse feito. “Continuamos a crescer de forma desorganizada. É tempo de termos qualidade nas decisões e de exigir mais de todos — Câmara Municipal, Governo, técnicos e políticos”, afirmou.
Segundo o engenheiro, a devastação causada pela tempestade poderia ter sido atenuada com medidas de prevenção, incluindo a limpeza sistemática das ribeiras, o respeito pelos canais de drenagem e a implementação de soluções modernas. “Precisamos de adoptar um sistema de colectores subterrâneos para drenar as águas pluviais. O actual sistema superficial é frágil e incapaz de responder a chuvas intensas como as de segunda-feira”, alertou.
Além de reduzir riscos, este modelo permitiria reaproveitar a água para rega, transformando um problema em recurso. Hernano apelou à mobilização urgente de recursos financeiros para concretizar esta mudança estrutural, lembrando que os fenómenos climáticos extremos têm hoje ciclos de retorno mais curtos.
Sobre as construções feitas em zonas de risco, como no caso de Chã de Alecrim, o engenheiro foi categórico ao afirmar que o “PDM eliminaria estas situações, porque não permite construções em leitos de ribeiras nem em canais de drenagem. Quem autorizou essas obras terá de justificar-se tecnicamente”.
O especialista defendeu que a tragédia deve servir de lição para privilegiar critérios técnicos nas decisões sobre o ordenamento urbano. “Gastamos mais dinheiro a reconstruir do que gastaríamos em medidas preventivas. A prevenção é sempre mais económica e salva vidas”, sublinhou.
Hernano dos Santos apelou ainda a um planeamento a longo prazo, pensando em soluções para os próximos 20 a 50 anos, e não apenas em respostas imediatas. “Temos de pensar nos nossos filhos e nos nossos netos. A cidade merece muito mais. Precisamos de decisões transparentes, responsáveis e sustentáveis para o futuro de São Vicente”, concluiu.
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Estudo de investigadores da Universidade de Coimbra já alertava para riscos de cheias em São Vicente
Um estudo publicado em 2021, intitulado “São Vicente de Cabo Verde: território de riscos”, produzido por investigadores da Universidade de Coimbra, já alertava para a elevada vulnerabilidade da ilha face a fenómenos naturais extremos, sobretudo cheias rápidas em Mindelo. O trabalho apontava a conjugação entre alterações climáticas e ocupação desordenada do solo como factores de agravamento, sublinhando a necessidade urgente de medidas estruturais. Destacava ainda a irregularidade das chuvas, longas secas seguidas de precipitações intensas, que provocam enxurradas violentas e prejuízos elevados. A expansão descontrolada, a construção em ribeiras e a falta de drenagem eficaz foram identificadas como pontos críticos. Muitos moradores viam as cheias como inevitáveis ou “castigo divino”, enquanto a desconfiança nas instituições aumentava a fragilidade social. O estudo recomendava ordenamento, reforço de infra-estruturas e sensibilização comunitária.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1238 de 20 de Agosto de 2025.