A 11 de Agosto, a ilha de São Vicente foi atingida pela tempestade Erin. Poucas horas bastaram para que a chuva torrencial transformasse ruas em rios, arrastando carros, invadindo casas e deixando marcas duradouras. Em poucas horas, a chuva torrencial transformou ruas em rios, arrastou carros, invadiu casas e deixou marcas profundas na vida de muitos.
O diagnóstico é conhecido. Nove pessoas morreram, incluindo quatro crianças. Duas continuam dadas como desaparecidas. Nas encostas e ribeiras, dezenas de famílias viveram momentos de sufoco e perderam as suas casas. Outras habitações, infra-estruturas públicas e espaços comerciais foram severamente afectadas. Agora, é altura de reconstruir, mas também de fazer melhor.
Cidade de direitos e deveres
São Vicente tenta reerguer-se e o país tirar lições. A ilha enfrenta o maior desafio das últimas décadas. A antropóloga Celeste Fortes alerta que os esforços não podem ficar limitados às infra-estruturas físicas.
“O primeiro passo é a dignidade habitacional, garantir habitação social condigna às famílias que não têm recursos para adquirirem ou construírem sozinhas essas casas. Acho que tem de se começar a fazer aquilo que noutros contextos se faz, que são projectos participados, utilizando metodologias mais participativas, indo às comunidades, ouvindo, escutando sugestões de líderes comunitários, da própria comunidade, fazendo reuniões comunitárias, como devem ser feitas, para que o desenho de todo esse projecto de reconstrução social comece na base, ou seja, nas pessoas que realmente precisam dessa reconstrução social. E, a partir daí, também envolver as próprias pessoas nestas decisões”, sintetiza.
Além da habitação, Celeste Fortes defende a necessidade de se criarem condições para gerar rendimentos, formação profissional e acesso ao emprego. O direito à cidade deve ser protegido.
“As pessoas têm de se autonomizar. É um exercício que tem estado a ser feito, mas é também um processo que envolve outras coisas, nomeadamente a mudança de mentalidade a nível dos direitos e dos deveres dos cidadãos. O direito à cidade começa, precisamente, pela consciência de que a cidade é minha, eu vivo nesta cidade, tenho de cuidar dela, tenho de apropriar-me da cidade e o direito à cidade também passa pelo exercício de envolvimento, de decisões colectivas participadas”, observa.
“Por exemplo, em relação ao saneamento, é preciso explicar às pessoas o que é isso de saneamento, onde é que passam os esgotos, os impactos que o lixo tem nas cidades. Todos nós sabemos que as pessoas, na sua maioria, não têm uma relação com o espaço colectivo como deveriam ter”, ilustra.
Planear com (e para) as pessoas
Para o arquitecto e urbanista Nuno Flores, refazer depois da catástrofe implica integrar a gestão das águas pluviais, a presença de técnicos nos bairros e políticas públicas para redução dos riscos climáticos.
“[Ter] equipas técnicas nesses locais, para que se perceba como é que as pessoas estão no território e, ao mesmo tempo, entrar em processos de compreensão e mesmo de educação urbanística e da forma como se ocupa o território, para evitar a ocupação em zonas de risco, para se evitar, por exemplo, o deslocamento de terras para determinados lugares”, desenvolve.
Num plano nacional, porque cada ilha apresenta realidades e vulnerabilidades próprias, a gestão dos riscos climáticos deve estar no centro das decisões.
“Esta política de proximidade e de compreensão do território pode ser um exemplo, mas [é preciso] encontrar quais os processos e quais as técnicas que respondem a cada modelo de ocupação”, enfatiza.
A reconstrução deve ser encarada como uma oportunidade de transformação estrutural e não como um simples processo de reposição. É o que diz o arquitecto César Freitas, para quem duas das acções prioritárias são um diagnóstico rigoroso e um planeamento mais robusto.
“Defendemos que a reconstrução deve ser focada não apenas na cidade do Mindelo, mas numa visão transformadora de São Vicente como uma ilha polinuclear, onde as outras localidades, como por exemplo Calhau, Salamansa, Baía das Gatas, São Pedro, Ribeira de Vinha, Ribeira de Julião, Lazareto, etc., sejam desenvolvidas de forma sustentável e planeada, contribuindo para a coesão territorial e para o desenvolvimento e competitividade da ilha”, diz.
O arquitecto propõe Mindelo como cidade de bairros, onde cada comunidade tenha identidade própria, serviços básicos e espaços públicos de qualidade.
“O processo de reconstrução não se vai fazer em um mês, nem em três, nem em seis e, se calhar, nem em dez anos. É um processo que vai ser, digamos, bastante longo, porque esta oportunidade já não é para remediar. É para transformar esta catástrofe numa grande oportunidade para transformar a ilha e as diferentes localidades”, reforça.
Também é essencial garantir que a reconstrução seja “segura”, “resiliente”, “inovadora” e “sustentável”, adianta César Freitas.
“Devemos pensar não só no desenvolvimento do Plano Director Municipal, que é fundamental, [mas também] nos planos detalhados, que são importantíssimos e que devem ser feitos ou em simultâneo ou logo a seguir. Tem de ser um programa robusto, pensado para resolver estas questões, com projectos de execução das infra-estruturas, [inclusive] com a criação de soluções naturais”, sustenta.
O Bastonário da Ordem dos Engenheiros, Carlos Monteiro, espera que o programa de intervenção tenha em conta a protecção das encostas, das habitações e das linhas de água.
“O Governo irá, com certeza, delinear um programa de intervenção e a Câmara também deverá fazer a sua intervenção, no sentido de evitar que haja entulhos ou terra em locais impróprios, bem como rever os diques e uma série de actividades”, pontua.
Para a Ordem, mais do que a existência de um PDM, é necessário que este seja levado a sério.
“Há falhas na fiscalização da utilização do solo, há também falta de fiscalização das próprias construções, construções inadequadas, sem projecto, construções com diversos problemas”, declara o bastonário.
Considerar as alterações climáticas
Com as alterações climáticas, 11 de Agosto poderá não ser uma experiência única. Cientistas alertam para o aumento da frequência e intensidade dos chamados fenómenos meteorológicos extremos. O biólogo Tommy Melo, presidente da organização ambientalista Biosfera, realça que qualquer decisão sobre a reconstrução de São Vicente deve ter em conta as mudanças no clima.
“Seja decisão sobre infra-estruturas, seja decisão sobre regulamentações, seja decisão sobre criação de leis, deve-se ter sempre em conta o factor mudança climática. Deve-se colocar uma lente climática nos decisores”, afirma.
Tommy Melo não tem dúvidas: a tempestade Erin não foi um caso isolado ou irrepetível.
“Em qualquer ilha de Cabo Verde notamos que existem esse tipo de fragilidades. Portanto, não é só pensar em São Vicente, mas é pensar no país como um todo. Os erros que não podem ser repetidos são aqueles que foram colocados a descoberto com essa chuva. É uma oportunidade para pensar de forma diferente, agir de forma diferente e preparar-nos de forma diferente”, espera.
Planos
O primeiro-ministro, Ulisses Correia e Silva, defendeu recentemente a necessidade de implementar um plano de médio e longo prazo, com vista a tornar o arquipélago o mais resiliente possível.
“Fazer investimentos para podermos ter infra-estruturas mais resilientes, quer a nível do sistema de drenagem, quer a nível dos assentamentos populacionais. Vamos ter de equacionar isto tudo e depois ir fazendo aquilo que temos de fazer. Mais casas sociais, não voltar às situações de barracas, que têm muitas fragilidades. É um trabalho que tem de ser feito a médio e longo prazos, para podermos estruturar tudo isto de forma bem diferente”, disse.
Para a oposição, o ritmo actual é demasiado lento. O PAICV defende a necessidade de intensificar as intervenções no terreno. António Duarte considera que o plano de reconstrução já deveria estar concluído.
“A nossa rede viária precisa de ser repensada, reforçada e reconstruída. As nossas redes de infra-estruturas de abastecimento de água e de saneamento precisam de ser redimensionadas. Precisamos de avançar rapidamente para a quarta fase do plano sanitário do Mindelo. Temos de reforçar o gabinete técnico da Câmara Municipal, os bombeiros e a protecção civil. Em termos de infra-estruturas desportivas, temos de pensar num estádio completamente novo. Quanto às infra-estruturas culturais, uma sala de espectáculos para mil pessoas. E avançar para a habitação social em zonas seguras”, defende.
Da UCID, Anilton Andrade observa que a resposta tem sido lenta, com falta de visão estratégica e de sentido de serviço público.
“Como medida emergencial, gostaríamos de ver um apoio real às famílias que sofreram danos a vários níveis. Depois, a reabilitação das infra-estruturas, das redes de água e de energia pública, a desobstrução das vias e a limpeza pública, tudo de forma mais urgente. Em seguida, devem entrar as medidas mais estruturais, de fundo, que devem ser implementadas com uma boa coordenação, para que São Vicente realmente possa reerguer-se desta grave calamidade”, entende.
No primeiro semestre do ano, a Câmara Municipal de São Vicente aprovou a abertura do concurso para a elaboração do futuro Plano Director Municipal da ilha. A autarquia trabalha em articulação com o Instituto Nacional de Gestão do Território e com o Ministério das Infra-estruturas, Ordenamento do Território e Habitação.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1242 de 17 de Setembro de 2025.