O respeito pela ética e pela deontologia reforça a confiança na advocacia - OACV

PorManuel Brito-Semedo,13 dez 2025 8:20

A Ordem dos Advogados assinalou, no dia 4 de Dezembro, 25 anos de existência. Foram duas décadas e meia de caminhada, de afirmação da justiça e de consolidação do Estado de Direito Democrático, garantindo que a justiça sirva o cidadão e que o advogado continue a ser a voz livre do Direito.

Nesta entrevista, o Bastonário Júlio Martins Júnior, agora eleito para um segundo mandato, revisita a história desta instituição, reflecte sobre o presente e projecta o futuro da advocacia em Cabo Verde.

Entrando nas nossas questões. A advocacia acompanhou a consolidação do Estado de Direito Democrático. Que balanço faz dessa relação entre a Ordem e as instituições de justiça? Uma das principais atribuições, senão a principal, da Ordem dos Advogados é contribuir para a consolidação do Estado de Direito Democrático em Cabo Verde. Temos muito orgulho da história da Ordem nos últimos vinte e cinco anos, porque em vários momentos demos provas disso, através de acções concretas e de iniciativas destinadas a consolidar efectivamente o Estado de Direito em Cabo Verde – como se sabe, uma construção recente. Fomos várias vezes postos à prova e soubermos responder em diferentes níveis, tanto através dos meus antecessores como, durante o último mandato, por via das nossas intervenções públicas. Fizemos sempre questão de dar vida a essa atribuição constitucional e legal da Ordem dos Advogados, colaborando na consolidação do Estado de Direito e também na boa administração da Justiça em Cabo Verde.

A independência dos advogados e a defesa dos direitos fundamentais são hoje realidades sólidas?

Acreditamos que sim. Ao longo destes vinte e cinco anos, é importante perceber como foi tratado este tema tão relevante da independência dos advogados. Pouca gente sabe que, logo após a independência, houve um decreto que declarava o exercício da advocacia privada em Cabo Verde incompatível com os desígnios da nação. Não era só a advocacia, mas também outras profissões liberais, nomeadamente a medicina. Logo de seguida, foi institucionalizado o IPAJ [Instituto do Patrocínio e Assistência Jurídica]. O IPAJ foi criado pelo Estado de Cabo Verde para centralizar o exercício das profissões forenses, nomeadamente a de advogado e a de solicitador. Posteriormente, graças à luta incansável e corajosa de alguns advogados da nossa praça, conseguimos evoluir para a institucionalização da Ordem dos Advogados, precisamente porque procurávamos esse elemento estruturante do exercício da profissão – a independência. Os advogados cedo perceberam que não era possível assegurar essa independência estando enquadrados no Estado, pois o advogado é, ao mesmo tempo, obrigado a defender os interesses dos cidadãos contra o próprio Estado, mas a sua actividade era também organizada e controlada pelo Estado. Por isso, entendeu-se que só a criação de uma Ordem dos Advogados autónoma e independente do poder político permitiria introduzir o equilíbrio necessário no sistema de justiça cabo-verdiano.

E que lições nos deixa esse período a que se refere, em que a advocacia foi limitada pelo regime de partido único e pela existência do IPAJ?

O IPAJ acabou por centralizar no Estado o exercício da advocacia, e as lições que nos deixou não foram boas. Porquê? Porque, de um lado, tínhamos a magistratura controlada pelo Estado – e falamos aqui do período do partido único, em que os magistrados eram nomeados pelo poder político, o mesmo acontecendo com os procuradores –, e, de outro, a profissão de advogado também regulada pelo Estado. Nessas condições, não era possível garantir um efectivo exercício do direito de defesa dos cidadãos. Durante esse período, os cidadãos acabaram prejudicados com a criação dessa entidade, porque houve uma regressão na actuação dos advogados no país. Dou apenas um exemplo: houve um grupo de advogados que, no tempo do IPAJ, criticou o funcionamento do sistema de justiça, nomeadamente a forma como os magistrados eram nomeados, o facto de o Supremo Tribunal de Justiça, então tribunal de recurso, ser constituído apenas por dois magistrados, e também a actuação do Ministério Público e a sua relação com os tribunais. Do nosso ponto de vista, os cidadãos – em nome de quem a justiça devia ser administrada – ficaram extremamente prejudicados com a existência dessa entidade, que impedia o equilíbrio essencial entre os poderes.

Quantos advogados estão actualmente inscritos e como é que evoluiu a formação jurídica no país desde a criação da Ordem há 25 anos?

A realidade mudou completamente. No ano de 2000, praticamente, se não estou erro, não existiam universidades em Cabo Verde, ou parece-me que a primeira universidade terá sido criada nessa altura. O grosso dos advogados foi formado em Portugal e no Brasil, e parece-me que houve um grupo que fez direito em Cuba. Mas um grupo mais reduzido. Na altura, nem chegava a uma centena de advogados e hoje temos um mercado completamente diferente. Temos uma produção em massa de juristas em que muitos optam para ir para a carreira das magistraturas, quando se abrem concursos, ou para as conservatórias quando se abrem concursos, ou para os notários também quando se abrem concursos. Mas quando esses concursos não são abertos, o caminho é inscreverem-se na Ordem para serem advogados. E qual é a realidade que temos neste momento? Temos cerca de 550 advogados inscritos na Ordem, mas uma boa parte tem inscrição suspensa porque estão a estudar no exterior ou porque estão a exercer funções incompatíveis com o exercício de advocacia, o que nos conduz a um número de à volta de 270 advogados com inscrição em vigor. E depois temos um outro grupo, que é o grupo dos advogados estagiários, que neste momento vão iniciar o seu curso em Janeiro deste ano. Estamos a falar a nível nacional à volta de 70 advogados estagiários que estão no processo de formação.

Que novos desafios se colocam à profissão neste tempo de globalização, digitalização dos tribunais e emergência da inteligência artificial? Isto é um presente quase futuro.

Sim, mas já é uma realidade. A questão das novas tecnologias, a questão da inteligência artificial, e nós estamos atentos a essas realidades, porquê? Porque a utilização das novas tecnologias e da inteligência artificial, sem o necessário cuidado, sem ter em conta as principais normas éticas e ideológicas que regem a nossa profissão, podem pôr em perigo a confiança que a sociedade deposita no exercício da profissão de advogado. Eu digo isso porque um dos pilares do exercício da nossa profissão tem a ver com o sigilo profissional. E eu quando utilizo uma ferramenta da inteligência artificial e não tomo o devido cuidado de eliminar a identificação do cliente, os detalhes críticos que o cliente me passa numa consulta, eu corro o risco, porque não tenho o controlo sobre o que está por detrás de toda a engenharia da inteligência artificial, de colocar na Internet dados sensíveis, nomeadamente a identificação e os detalhes do caso. Por isso, nós temos que passar essa mensagem aos nossos colegas e aí está de facto um grande desafio, é conciliar essas ferramentas, que nós aconselhamos aos advogados a aprenderem como funcionam, e que tenham sempre presente as normas que regem a nossa profissão, que acabam por gerar a tal confiança que a sociedade deposita em nós.

Acaba de ser reeleito para um segundo mandato. Que prioridades estratégicas procurou consolidar no primeiro ciclo e que continuidade pretende imprimir agora?

Nós, quando iniciamos o mandato há três anos, encontramos uma realidade que desconhecíamos. Tínhamos indicações, mas não tínhamos os números correctos. Temos em Cabo Verde uma massificação do curso de Direito, que produz centenas de licenciados por ano. Isso acabou por aumentar o número de advogados estagiários inscritos na Ordem e nós tínhamos por obrigação de regular essa matéria. E uma das grandes prioridades do nosso mandato anterior foi, precisamente, trabalhar na base, na formação dos advogados estagiários. Essa situação neste momento está normalizada, temos um novo regulamento de estágio, estamos com novos programas de formação que iniciaram em Janeiro de 2025, temos um corpo renovado de formadores e para 2026 também vamos incluir outras matérias no domínio da formação dos advogados estagiários. Por isso, estando essa situação estabilizada, no que toca às prioridades do novo mandato, vamos pôr o foco mais acutilante já nos advogados. Nós precisamos prestar mais atenção ao tema da procuradoria ilícita, nós precisamos alertar as autoridades nacionais para respeitarem as prerrogativas dos advogados, nomeadamente o tratamento preferencial nos serviços públicos, de acordo com a lei aprovada pela Assembleia Nacional. Também permitir que os advogados tenham acesso integral aos documentos públicos que são emitidos pelos serviços. Muitas vezes temos tido problemas, particularmente com as câmaras municipais em todo o país, que continuam a exigir procurações aos advogados para pedirem, por exemplo, certidões matriciais quando são documentos públicos, entre outras matérias. E também criar fóruns de discussão de temas da nossa actualidade, mas já com o foco mais na actividade exercida no dia-a-dia pelo advogado, uma vez que já conseguimos, do nosso ponto de vista, estabilizar o tema do estágio, que consome muita energia e recursos.

Já falou disso, mas só para afunilar a questão. Que iniciativas a Ordem tem vindo a desenvolver para reforçar a ética profissional e a confiança pública na justiça.

A nossa visão é que é impossível reforçar a confiança pública na justiça ou a confiança pública na advocacia sem o respeito pela ética e pela deontologia da nossa profissão. Por isso, são conceitos que estão interligados e que devem estar sempre presentes na actuação dos advogados em Cabo Verde. Porque só respeitando as normas éticas e deontológicas da nossa profissão, estaremos em condições de ganhar a confiança do público no sistema. Por isso, durante esse novo mandato, vamos continuar a despertar na consciência dos colegas a necessidade de cumprirem, de forma intransigente e rigorosa, os padrões éticos do exercício da profissão de advocacia, tanto no relacionamento entre o advogado e o cliente, que é um ponto extremamente sensível, mas também no que toca ao relacionamento entre os colegas. Os colegas não têm que se relacionar fora do quadro deontológico. Tem-se que trabalhar com urbanidade, com cordialidade. E também no relacionamento entre os advogados e os magistrados judiciais, do Ministério Público, com as conservatórias, com os notários, com o poder político, com o poder legislativo, e enfim, o relacionamento também do advogado, a sua postura perante a sociedade. Porque a sociedade tem uma imagem do advogado e essa imagem decorre precisamente porque é um profissional que está obrigado a ter determinados comportamentos na sociedade por causa das exigências da sua profissão. Por isso, vamos continuar a alertar aos advogados no sentido de cumprirem as regras deontológicas da nossa profissão.

Nós já revisitámos o passado, para entendermos como se chegou à Ordem dos Advogados; já olhámos o presente, com o balanço do que foi e o seu programa para o segundo mandato. Em termos de perspectivas futuras, como imagina o papel do advogado cabo-verdiano nos próximos 25 anos?

É uma pergunta extremamente difícil, mas vejamos. Toda a actuação do advogado assenta num código deontológico e ético com mais de cem anos. O dever de se relacionar com o cliente com transparência e confiança, de se relacionar com os colegas com base na cordialidade e na urbanidade, são conceitos intemporais. Nesse domínio, acredito que a situação se manterá, porque estamos a falar de valores imateriais e duradouros. Já quanto à prática profissional, as mudanças serão inevitáveis. Há 25 anos, os advogados eram sobretudo profissionais de tribunal – os chamados advogados de contencioso ou de barra – e alguns prestavam também serviços ao Estado. Hoje, a realidade é bem diferente: há colegas que quase não vão aos tribunais, porque prestam outros tipos de serviços, nomeadamente a empresas e clientes com interesses empresariais. A profissão tem-se adaptado às dinâmicas da sociedade e ao desenvolvimento económico do país, passando de uma advocacia de tribunal para uma advocacia abrangente, com novas áreas de especialização. Questões como o direito laboral, empresarial, fiscal e, cada vez mais, o direito administrativo, exigem dos advogados novas competências e atenção especializada. Com os novos instrumentos jurídicos aprovados, prevê-se um reforço da actuação em matéria administrativa, e a Ordem deverá acompanhar essas transformações, garantindo que os profissionais estejam preparados para responder às novas exigências da sociedade.

Para fechar, que mensagem deixa às novas gerações de juristas que hoje ingressam na profissão?

Mais uma pergunta difícil, porque falamos de uma geração diferente, com outras perspectivas, dinâmicas e influências. O que observo é que esta geração vive muito do imediatismo – tudo está à distância de um clique, de um computador ou de um telemóvel; tudo se faz nas redes sociais, no Facebook ou no Instagram.
A grande mensagem que deixo aos mais novos é: não se deixem dominar pelo imediatismo no exercício da profissão. O imediatismo não combina com os padrões de rigor e responsabilidade que a advocacia exige. Quando ele se sobrepõe à ética e à deontologia profissional, abre caminho à descredibilização da carreira e, por vezes, a situações desagradáveis e irreversíveis. Por isso, a mensagem essencial é esta: cumpram as regras da profissão, mantenham a ética como norte e façam do respeito pelos princípios o seu caminho para o futuro.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1254 de 10 de Dezembro de 2025.

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Autoria:Manuel Brito-Semedo,13 dez 2025 8:20

Editado porFretson Rocha  em  13 dez 2025 18:19

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