No seu discurso de abertura do ano judicial 2025/2026, no dia 26 de Setembro, o Presidente da República alertou para “a fragilidade do serviço de inspecção judicial”, que funciona com apenas um inspector quando a lei prevê um corpo estruturado.
Uma constatação que surge num contexto mais amplo de fragilidades do sistema, marcado por um rácio de juízes que permanece manifestamente insuficiente, de apenas 12,6 por cada 100 mil habitantes, onde persistem a morosidade processual e as pendências acumuladas, e a confiança pública continua a ser um desafio.
“Mais do que diagnósticos, a hora reclama soluções firmes e estratégias coerentes”, exortou José Maria Neves, na altura.
Novo quadro legal, velhos limites
O debate sobre o funcionamento do serviço de inspecção é antigo e ganhou novo fôlego também com a recente aprovação da nova Lei de Inspecção, parte de um pacote legislativo que pretende responder aos problemas da justiça. A lei define critérios objectivos de avaliação e estabelece requisitos mínimos para o corpo de inspectores (três), mas a sua implementação enfrenta limites conhecidos.
Na verdade, ao longo dos tempos, várias propostas foram já sendo avançadas para colmatar a falta de magistrados e, portanto, a falta de recursos humanos para a inspecção, bem como para combater o corporativismo que possa existir na avaliação.
Uma das hipóteses foi a criação de uma carreira de inspector, descartada após um estudo que concluiu que, com apenas 70 a 80 magistrados no país, a medida não se justificaria e o problema do corporativismo manter-se-ia.
Também se aventou a possibilidade de recorrer a magistrados jubilados para integrar o serviço, o que poderia ser viável, mas dependeria da vontade e disponibilidade desses juízes.
E outra hipótese, defendida entre várias outras, seria o recurso à inspecção externa, feita por profissionais exteriores à magistratura, opção que é inviável face ao desenho constitucional que obriga a que os inspectores sejam necessariamente magistrados.
Entretanto, cabe aos Conselhos Superiores, neste caso, o Conselho Superior de Magistratura Judicial, operacionalizar os serviços de Inspecção.
CSMJ: Serviço de inspecção não é frágil, mas precisa de reforço
Questionado sobre como serviço de inspecção fragilizado põe em causa a qualidade da Justiça, o Presidente do Conselho Superior da Magistratura Judicial (CSMJ), Bernardino Delgado, discorda da caracterização do serviço como "frágil" e defende que este tem cumprido a sua missão.

"O serviço de inspecção tem vindo a funcionar com os recursos que tem e, diga-se, tem vindo a fazer o seu trabalho. Prova disto é que tem vindo a cumprir, com muito esforço, os planos de inspecção que anualmente são aprovados pelo CSMJ", afirma.
Não obstante, reconhece que é preciso reforçar e aprimorar o serviço para permitir um acompanhamento permanente dos magistrados e das secretarias judiciais, com maior previsibilidade das acções inspectivas. Só assim, considera, poderá cumprir cabalmente a sua missão de fiscalização e garantir a devida avaliação e disciplina dos magistrados e oficiais de justiça.
Reforma e reforço
A nova lei de inspecção deverá ser um passo importante nesse processo. Segundo o presidente do CSMJ, trata-se de uma "reforma profunda do regime jurídico da inspecção judicial" que vai permitir reforçar esse acompanhamento permanente dos tribunais. Além disso, introduz “parâmetros objectivos e verificáveis de avaliação numa perspectiva quantitativa” e um regime de incentivos que valoriza o mérito profissional.
O regime a implementar também facilita o recrutamento de magistrados e secretários qualificados ao mesmo tempo que estabelece critérios mais rigorosos para a renovação das comissões de serviço, o que torna, no entender do juiz, o exercício da função inspectiva mais atractivo.
Mas a nova lei, mais exigente, também “desafia as condições existentes”. Desde logo, exige mais meios humanos, tanto inspectores como secretários judiciais qualificados.
Para reforçar o serviço, o CSMJ inclusive já abriu concurso para recrutamento de um Inspector Superior Judicial, que deverá entrar em funções ainda em Novembro, avança Bernardino Delgado. A expectativa é que a nova contratação contribua para dinamizar e consolidar a inspecção.
Sobre as críticas quanto ao risco de falta de imparcialidade nas avaliações, num contexto em que o universo da magistratura é reduzido, o presidente do CSMJ defende que a transparência é algo assegurado, acima de tudo, por profissionais com perfil adequado e competência técnica. “Ou seja, magistrados e secretários qualificados e capazes de garantir a transparência e uniformidade de critérios na avaliação e classificação dos profissionais de justiça”, explicita, garantindo que “temos profissionais capazes de levar a cabo esta tarefa”.
Neste contexto, Bernardino Delgado afasta peremptoriamente a hipótese de recorrer a avaliação externa, que implicaria mudar a estrutura ao próprio nível constitucional e no seu entender, se feita por estrangeiros, colocaria a própria soberania em causa. “A administração da justiça é uma função de soberania e a inspecção judicial situa-se no âmago da administração da justiça. Como tal, deve ser exercido pelo Estado de Cabo Verde e sem qualquer interferência externa”, aponta, reiterando que o país tem profissionais no sector da justiça capazes de assegurar um serviço de inspecção de qualidade, isento e equidistante.
Expectativas
Apesar de todas as limitações, as expectativas para o futuro do serviço de inspecção na magistratura judicial são positivas. Com a implementação da nova lei e reforço dos serviços de inspecção, o CSMJ espera várias melhorias concretas. Entre elas estão uma maior previsibilidade das acções inspectivas; maior celeridade processual; estímulo à meritocracia e mais transparência e uniformidade de critérios na avaliação e classificação. Bernardino Delgado elenca ainda entre as perspectivas, um acompanhamento permanente e não apenas episódico, "permitindo prevenir falhas estruturais em vez de apenas reagir a elas". No fundo, prevê-se uma melhoria da qualidade e eficácia do sistema, o que contribuirá para aumentar a confiança pública na Justiça.
“A missão da inspecção será cumprida sempre com observância estrita das garantias constitucionais e legais de independência aplicáveis aos tribunais”, vaticina.
OACV defende revisão da Constituição
Mas nem todos estão tão optimistas, face às limitações do modelo em vigor.
Dita o artigo 224.º da Constituição da República que “a fiscalização da actividade dos tribunais é exercida através de um serviço de inspecção judicial, integrado por um corpo de inspectores, recrutados de entre os magistrados judiciais”.

Para o bastonário da Ordem dos Advogados (OACV), Júlio Martins Júnior, o desenho constitucional, embora coerente com a ideia de autogoverno judicial, cria uma dependência estrutural difícil de superar: só pode haver inspecção se houver magistrados disponíveis para essa função.
"Se já temos falta de magistrados para os tribunais - e essa falta é reconhecida e documentada -, como podemos ter magistrados disponíveis para exercer funções de inspecção?", questiona.
O resultado, diz, é um círculo vicioso: a ausência de inspectores leva à falta de avaliação sistemática do desempenho judicial, a falta de avaliação impede a melhoria contínua e a ausência de melhoria alimenta a estagnação do sistema.
O problema da falta de magistrados, especialmente tendo em conta a dispersão territorial de Cabo Verde, é, no seu entender, uma limitação que irá reduzir o impacto positivo que a nova lei da inspecção poderia ter se houvesse “um sistema de inspecção diferenciado.”
Assim, apesar de reconhecer os “muitos pontos positivos” da nova legislação, o bastonário considera que ela não resolve o principal problema que se prende, precisamente com a composição do corpo inspectivo. Por isso, defende ser necessário rever o artigo 224.º da Constituição, pois tal como está redigido, transforma “um dever constitucional numa impossibilidade prática”.
“Talvez tenha chegado o momento de reflectirmos, com maturidade, sobre a necessidade de rever este artigo - não para fragilizar a independência judicial, mas para lhe devolver a capacidade de auto-regulação efectiva", sustenta.
Proposta: equipa pluridisciplinar
A proposta da OACV passa por abrir o recrutamento de inspectores a juristas com experiência judicial comprovada ou formação específica, mesmo que não sejam magistrados de carreira.
Inclui ainda a criação de uma unidade técnica permanente de auditoria e apoio à inspecção, com pessoal especializado em gestão, estatística e tecnologia judicial. “A inspecção faz-se sobretudo com obtenção de dados e temos que ter gestores estatísticos na equipa”, explica.
E, por fim, propõe-se "a institucionalização de um modelo de inspecção preventiva e pedagógica, que promova a melhoria contínua em vez da mera censura posterior".
Mudança de paradigma
O bastonário aponta igualmente um obstáculo cultural a ultrapassar. "Em muitos sectores, ainda se pensa que fiscalizar é punir. Mas a verdadeira fiscalização, especialmente no campo da justiça, não existe para punir - existe para melhorar", explana. A inspecção deveria, pois, ser vista como um instrumento de qualidade e transparência, não como uma ameaça, servindo para apoiar os tribunais e não apenas para apontar falhas.
"Do nosso ponto de vista, o principal foco do sistema de inspecção não é avaliar colegas, não é avaliar juízes, é avaliar o sistema. É avaliar a forma como se trabalha", sublinha.
Assim, para Júlio Martins, é necessário mudar de foco, colocando-o no sistema, para sair do círculo vicioso do meio ser pequeno e de todos se conhecerem. “Se mudarmos esse foco, acredito que o sistema de inspecção de facto vai melhorar."
Questionado sobre a percepção de que os juízes não prestam contas, o bastonário lembra que o fazem através dos relatórios anuais produzidos com base na informação que os tribunais prestam ao CSMJ. "O que se pode questionar é se prestam com um nível de detalhe suficiente. Do nosso ponto de vista, a forma como os dados estão a ser produzidos neste momento não permite termos uma noção real sobre a performance do sistema judicial em Cabo Verde”, critica.
Inspecção e qualidade
O bastonário aponta ainda para a necessidade de uma inspecção moderna, capaz de acompanhar o desempenho dos tribunais, avaliar procedimentos e fluxos, observar a utilização de recursos humanos e tecnológicos e produzir relatórios periódicos públicos sobre a qualidade do serviço judicial.
"Uma inspecção moderna é, antes de tudo, uma ferramenta de confiança pública. Ela demonstra que o sistema tem a coragem de se avaliar, de se corrigir e de se responsabilizar. Não é um mecanismo disciplinar - é um mecanismo de credibilização institucional”, defende.
Para ter um sistema de justiça que funcione com rigor, transparência e ética, “não podemos continuar a fingir que temos uma inspecção judicial que funciona, quando ela praticamente não existe”, avalia.
É necessária, pois, coragem para enfrentar o problema com soluções estruturais, sem receio de rever a Constituição se for necessário, e tendo em vista que “uma inspecção judicial moderna não serve para punir o passado”, mas sim “para preparar o futuro.”
“É o que falta à justiça cabo-verdiana para dar o salto de qualidade: de um sistema que reage, para um sistema que previne; de um sistema que julga, para um sistema que aprende”, conclui.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1248 de 29 de Outubro de 2025.
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