José Maria Neves, Presidente da República
PR pede consensos políticos para renovação de mandatos caducados
O Presidente da República voltou a apelar, no seu discurso durante a sessão solene, à necessidade de renovação de mandatos em órgãos constitucionais não eleitos. José Maria Neves defendeu que a permanência em cargos por tempo indeterminado, mesmo quando justificada pela necessidade de garantir o funcionamento das instituições, não se deve sobrepor ao princípio republicano da alternância de poder.
Congratulando-se com o cumprimento rigoroso dos mandatos nos órgãos eleitos e eleições directas regulares, o PR critica que o mesmo não aconteça como os titulares de órgãos não eleitos, que muitas vezes mantêm os seus mandatos prorrogados por anos, “por falta de consensos entre os actores políticos ou por omissão de quem tem a competência constitucional de propor”.
No seu entender, o princípio da renovação de mandatos deve prevalecer, e a permanência no cargo deve ser considerada apenas uma garantia de funcionamento das instituições, “num quadro de transitoriedade e precariedade, por um tempo razoável, geralmente para acomodar transições de governo, atrasos de ordem burocrática ou outros da mesma natureza”.
Assim, o PR reitera o apelo dirigido a todos os actores políticos para que procurem os consensos necessários para renovar os mandatos que já estão caducados de titulares de vários órgãos constitucionais.
Este princípio da renovação de mandatos é, conforme refere, essencial para o reforço da inclusividade das instituições.
O apelo foi lançado após o chefe de Estado insistir naquela que tem sido uma espécie de bandeira da sua magistratura que é a desestatização da sociedade. Durante a sessão, o PR também voltou a defender a necessidade de um maior equilíbrio entre o Estado e a Sociedade Civil. Citando Acemoglou e Robinson, Prémios Nobel da Economia de 2024, que afirmam que a prosperidade das nações depende “da inclusividade das instituições políticas e económicas e o futuro da liberdade do equilíbrio entre o Estado e a sociedade”, JMN frisou que, em Cabo Verde, a excessiva dependência dos cidadãos em relação ao Estado gera um ambiente de subjugação e medo, comprometendo as liberdades civis e políticas.
“Se é verdade que precisamos de Estado forte, é fundamental, por outro lado, que a sociedade seja autónoma e também forte para conter os excessos do Estado e moldá-lo para responder com efectividade às demandas e às exigências das pessoas”, disse.
Cultura de resultados
Com um discurso que, no que toca em concreto à Justiça, incidiu no “equilíbrio de poderes e defesa da Liberdade”, o Presidente da República começou por lembrar as múltiplas ameaças às liberdades e à democracia, que apenas podem ser combatidas com “instituições políticas e económicas fortes e inclusivas”, com destaque para os tribunais independentes.
Insistindo que os investimentos na Justiça são essenciais “para a remoção dos obstáculos que ainda persistem e constrangem todo o sistema”, JMN realçou que há, no entanto, outras questões a ter em conta para uma justiça eficiente. Entre elas estão hábitos mentais, normas e regras, atitudes e interacções das quais dependem também o funcionamento do sistema.
“Neste como noutros sectores são essenciais a vontade de vencer os obstáculos e a cultura de resultados”, destacou.
A ideia de que os recursos são importantes, mas os “valores, atitudes e desempenho de cada um” são igualmente fundamentais, marcou, aliás, o discurso em vários momentos.
JMN defendeu um entendimento entre as forças políticas para estabelecer um pacto de regime no sector da justiça, recordando que em 2010 foi possível um consenso para a Revisão Constitucional, que resultou em importantes avanços, como a criação dos Tribunais de Relação e a instalação do Tribunal Constitucional, órgão a que elogia o “elevado desempenho“ e ”inestimável contributo para a criação de uma cultura da constituição e defesa da dignidade da pessoa humana”.
Conselhos da Paz
Quanto às medidas adoptadas pelo governo, em articulação com os Conselhos Superiores, o PR acredita que, depois de efectivadas, trarão ganhos importantes para o sistema.
JMN elencou várias medidas que considera promissoras como o Portal da Justiça, e plataformas digitais como o SIJ, entre outras, dizendo que espera então a implementação efectiva desses serviços, bem como a aprovação rápida de várias iniciativas legislativas, que irão adequar a justiça às exigências actuais.
O PR ressaltou também a implementação de mecanismos de mediação e resolução de conflitos, defendendo a criação de Conselhos da Paz nas comunidades e a atribuição de competências à Polícia Nacional para resolver pequenos conflitos, a fim de reduzir a carga sobre os tribunais tradicionais.
Na sua intervenção, JMN falou também da era da infocracia, alertou para os desafios impostos pelo avanço das tecnologias, como a Inteligência Artificial e as redes sociais, bem como desafios como a pressão das fake news e o populismo digital, que fragilizam instituições tradicionais e exigem novos mecanismos de comunicação com a sociedade. “Os serviços judiciais devem melhorar a comunicação e contribuir para o aumento da literacia jurídica,” concluiu.
Benfeito Mosso Ramos, Presidente do Supremo Tribunal de Justiça
Presidente do STJ exorta a procurar as causas da “avalanche de processos”
“Anfitrião” da cerimónia, enquanto presidente da entidade a quem cabe organizar a sessão solene, Benfeito Ramos começou por admitir que a “Justiça que celebramos em cada abertura do ano judicial está longe de ser perfeita”, mas tem evoluído positivamente.
Um ponto central do seu discurso foi o apelo a um “olhar mais abrangente” sobre o sistema, considerando não apenas os números de processos, mas também as causas que levam ao grande volume de litígios.
“Algo vai mal na nossa sociedade, no que toca a nossa forma de estar na família e na comunidade”, disse, apontando que atribuir à Justiça a culpa por problemas que têm “origem em outras esferas da vida social” não é a melhor abordagem. Assim, defendeu uma intervenção séria a nível das causas, com uma pedagogia que desincentive a agressividade e violência. “Enfim, uma pedagogia que promova a educação cívica”.
Embora defendendo que é fundamental que os tribunais tenham os meios necessários para cumprir as suas funções, o juiz conselheiro considera ser um equívoco pensar que todos os problemas da Justiça se resumem à falta de recursos.
“Há ainda uma margem de progressão para o crescimento da prestação da justiça, em termos quantitativos e qualitativos (…) mesmo num quadro de compreensível limitação de recursos”, frisou.
Um outro ponto em destaque no seu discurso foi a questão das prescrições de processos criminais no Supremo, que se devem a um histórico de acúmulo de processos e falta de juízes. Embora estejam a ser constatadas e declaradas agora, ocorreram no passado. Hoje, em decorrência da nova dinâmica imprimida à gestão e resolução de todas as pendências, as prescrições têm sido evitadas, garante.
José Luís Landim, Procurador-Geral da República
PGR preocupado com saída de profissionais do MP
José Landim, que é também presidente do Conselho Superior do Ministério Público, criticou, no seu discurso, algumas propostas de reforma apresentadas em relação ao órgão que lidera e que, no seu entender, visam enfraquecer o papel do PGR e o próprio MP.
Entre as propostas “absurdas”, que vê como um retrocesso, está também a de que “os magistrados devem ser inspeccionados por entidades exteriores à magistratura”.
Essas medidas seriam prejudiciais ao sistema de justiça e comprometeriam o Estado de Direito Democrático, argumenta.
Landim também critica a dificuldade em obter consenso na Assembleia Nacional “para aprovação de diplomas legais estruturantes para o sector, com reflexos directos do desempenho da Justiça”, e cita como exemplo diplomas que visam melhorar as condições de trabalho dos oficiais de justiça e permitir a promoção extraordinária de magistrados.
Essa demora, considera, tem contribuído para evasão de profissionais em busca de melhores oportunidades, “desfalcando o quadro já deficitário do Ministério Público”.
Embora reconheça investimentos realizados pelo Governo, o PGR argumenta que não são suficientes para suprir as necessidades e defende um investimento mais robusto e concertado em recursos humanos e materiais.
Numa nota final de esperança, diz acreditar que, tendo em conta os “investimentos feitos ao longo dos últimos anos, (…) boas perspectivas se abrem em termos de resultados”. Porém, reforça: “cada um dos responsáveis terá de fazer a sua parte em tempo oportuno.
Bernardino Delgado, Presidente do Conselho Superior da Magistratura Judicial (CSMJ)
Principal desafio é superar o “empate técnico” entre processos entrados e resolvidos
Anualmente, há um empate técnico entre o número de processos que entram e os que são decididos. Usando uma analogia do futebol, o Presidente do CSMJ considera que superar esse empate é um grande desafio, e tem sido um entrave ao avanço do sistema.
Assumindo como objectivo prioritário a redução das pendências judiciais e da morosidade processual, Delgado considera que este é, apesar das dificuldades, tangível e necessário, representando um compromisso profissional e uma responsabilidade em deixar um legado positivo para as futuras gerações.
Tal como outros intervenientes, também ele destaca que a culpa sobre morosidade e pendências não pode era atribuída apenas aos magistrados. Questões que também resultam no actual quadro incluem a “uma forte pressão da demanda” e ausência de mecanismos alternativos de resolução de litígio. Isto é agravado pelo excesso de formalismo processual, “em detrimento de uma abordagem mais pragmática e orientada para os resultados e para a célere resolução dos litígios.”
O Presidente do CSMJ aponta ainda para a necessidade de um “choque orçamental” para que o sistema judicial tenha os recursos necessários para alcançar a eficiência e a celeridade desejadas.
Num discurso pautado pelo convite à acção, também Bernardino Delgado critica a demora na aprovação de leis importantes para o sector, que podem protelar os resultados pretendidos.
Júlio Martins Júnior, Bastonário da Ordem dos Advogados
OACV defende criação de Conselho Permanente de Diálogo da Justiça
A abrir o palanque, Júlio Martins Júnior defendeu a união entre advogados, juízes e procuradores, “pilares interdependentes e fundamentais para a justiça”, e exortou todos os operadores do sistema judicial a trabalhar em conjunto para fortalecer a confiança da sociedade na justiça.
Sem se deter muito nos problemas e desafios que a justiça enfrenta em Cabo Verde, particularmente no que se refere à celeridade e à transparência, o advogado concentrou o seu discurso na apresentação de soluções.
Assim, argumentando que “a Justiça é uma obra colectiva”, o bastonário propõe a criação de um Conselho Permanente de Diálogo da Justiça.
Esse Conselho, segundo o representante da OACV, não seria “um órgão burocrático”, mas um espaço de encontro e colaboração entre os diferentes actores judiciais, com o objectivo de identificar obstáculos, debater soluções inovadoras, fortalecer a ética e a deontologia no exercício das profissões jurídicas, e acompanhar a implementação de medidas para a melhoria da justiça.
“Com actuações exclusivamente individualizadas, dificilmente atingiremos o nosso objectivo maior”, reforçou.
Martins também sublinhou a importância da inovação no sistema judicial, questionando os modelos tradicionais e sugerindo o uso de novas tecnologias, como inteligência artificial e sistemas de gestão processual digital, para tornar a justiça mais eficiente.
“Para romper com essa estagnação, é crucial que o sistema de justiça passe a encarar a inovação como a ferramenta que é”, referiu.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1197 de 06 de Novembro de 2024.