Francisco Tavares, ex-presidente da Câmara Municipal de Santa Catarina de Santiago : “O municipalismo é a primeira grande vaga de descentralização”

PorAntónio Monteiro,13 set 2020 11:59

Para o ex-autarca, essa vaga de descentralização é um dos maiores ganhos da democracia cabo-verdiana “por expandir as possibilidades de acesso aos órgãos de poder, promover a partilha de poder e por consequência maior responsabilização dos agentes políticos”. Entre os grandes desafios do municipalismo cabo-verdiano Francisco Tavares aponta o reforço da sua capacidade institucional através de uma profunda reforma da administração municipal, com foco nos recursos humanos e nos processos e assim poder contribuir para a melhoria da eficiência global do Estado.

Como avalia a evolução do municipalismo em Cabo Verde?

O Municipalismo consuma a primeira grande vaga de descentralização com a criação das autarquias sendo, indiscutivelmente um dos maiores ganhos da era democrática. Foi determinante o contributo do poder local para valorizar o voto do povo, promover a participação política e o alargamento do espaço de acção da comunicação social. Essa vaga de descentralização é um dos maiores ganhos da democracia cabo-verdiana por expandir as possibilidades de acesso aos órgãos de poder, promover a partilha de poder e por consequência maior responsabilização dos agentes políticos, a cidadania e a cultura políticas, a territorialização das políticas públicas, o desenvolvimento cultural e desportivo, quanto contribuir de forma determinante para melhorar o acesso aos serviços básicos como educação, água, saneamento e electricidade, o usufruto do direito à cidade, por realizar a gestão de proximidade, melhorar a gestão do território, reforçar os mecanismos de controle social do poder, contribuir para a mobilidade social ascendente, para a valorização de recursos e oportunidades locais e em suma para a promoção das economias locais.

Quais os principais desafios do municipalismo?

O desenvolvimento sustentável é o desafio maior dos Municípios cabo-verdianos e, aliás, de Cabo Verde. Esta é a década que Cabo Verde não pode perder e 110 das 169 metas dos ODS requerem implicação senão dependerem especialmente da intervenção dos Municípios. A territorialização das políticas públicas é assim essencial para o desenvolvimento sustentável e não deixar ninguém para trás. Um segundo grande desafio ter a ver com o reforço da capacidade institucional. É necessária uma profunda reforma da administração municipal, com foco nos recursos humanos e nos processos, visando sobretudo a prestação de serviços de qualidade ao cidadão e às empresas, a melhoria da base das receitas próprias e a eficiência fiscal, o reforço da autonomia financeira, da transparência e favorecer a descentralização e assim contribuir para a melhoria da eficiência global do Estado. Desta grande reforma deverá resultar a implementação de orçamentos-programas nos municípios e assim a gestão orientada para os resultados. Existe uma grande assimetria de capacidades e recursos entre os municípios cabo-verdianos. São, na maioria de pequena dimensão, com capacidades técnicas ainda reduzidas e no essencial, operam serviços que podem ser empresarializados. Assim, o processo de reforma da administração municipal deve apostar em soluções de intermunicipalidade designadamente de natureza empresarial na operação de vários serviços como os de turismo, gestão das cidades, urbanismo e gestão do território, limpeza urbana, recolha e tratamento de resíduos sólidos urbanos, estudos e planeamento e mesmo de polícia municipal. A ilha de Santiago não precisa de nove serviços municipais de saneamento com mais de mil pessoas, mas sim uma empresa intermunicipal com 20 a 30% do efectivo do pessoal de hoje, com escala, ou seja, servindo 56% da população de Cabo Verde, para realizar investimentos, modernizar serviços e garantir boa limpeza urbana nesta ilha, com os mesmos custos que as nove câmaras municipais têm neste momento com o saneamento. As soluções de intermunicipalidade visam economias de escala, a garantia de qualidade, regularidade e o nivelamento da qualidade de serviços, mormente a nível de cada ilha. Águas de Santiago, Águabrava e brevemente Águas de Santo Antão são exemplos de soluções de intermunicipalidade. Um terceiro desafio do municipalismo tem a ver com o desenvolvimento das economias locais pela valorização efectiva do potencial económico dos municípios e das ilhas e especialmente com a liderança da implementação dos Master-planos do turismo e por esta via da gestão local dos destinos turísticos, da liderança e da participação efectiva. O maior desafio do municipalismo é a redução das assimetrias regionais que são desigualdades em termos de capacidade produtiva, - incluindo capital humano, de produção, de emprego, de rendimento e bem-estar especialmente em matéria de oportunidades sociais como educação, saúde e emprego e económicas, entre os concelhos e entre as ilhas de Cabo Verde. A redução das assimetrias regionais é essencial para garantir a convergência de todos os municípios e de todas as ilhas, uma das condições essenciais para o desenvolvimento sustentável.

Como avalia a autonomia do poder local em relação ao poder central?

A força do Poder local e sua capacidade de contribuir para o reforço da democracia representativa dependem em boa parte da sua autonomia. O nosso quadro legal confere autonomia plena aos municípios. Contudo, de facto, a autonomia é relativa, pois a maioria dos municípios depende em larga escala dos recursos afectos pelo governo. Nestes recursos não incluo o Fundo de Financiamento Municipal que não é de nenhum governo, mas sim a participação das autarquias locais nas receitas do Estado. Prova disso é que neste ciclo autárquico 2016-2020, que marca o início de uma nova era, de diálogo técnico e político e de complementaridade entre o Governo e as Câmaras Municipais graças ao reforço dos recursos financeiros pelo governo, pela via dos Fundos do Ambiente, do Turismo e de Manutenção Rodoviária, mas sobretudo do PRRA, os municípios realizaram grandes investimentos na requalificação urbana, nas acessibilidades quanto na habitação e esta dinâmica é uma das maiores marcas desta legislatura quanto é hoje elevada a confiança no presente e no futuro a nível dos municípios. A autonomia dos municípios é fortemente determinada pela sua capacidade de geração de receitas próprias, de planeamento de mobilização de recursos para valorizar o potencial de desenvolvimento e garantir elevado nível de respostas às demandas da população. Os municípios têm um grande potencial de aumento das receitas próprias, que reside na modernização da administração fiscal municipal e a consequente redução ao mínimo da fraude e evasão fiscais e especialmente no referente ao imposto sobre o património que hoje depende da extensão do cadastro predial a todos os concelhos e da actualização das matrizes prediais. Mas o reforço da autonomia dos municípios realiza-se sobretudo pela via da dinamização das economias locais, com a promoção do turismo em todos os municípios, nos termos dos Master-planos do turismo das ilhas e por consequência pela emergência de empresas e operadores locais e a dinamização da atividade turística, ancorando e dinamizando outras atividades económicas, como o comércio, a restauração, a agricultura, os transportes e animação cultural e turística, aumentando o potencial dos impostos sobre o património, quanto das taxas e tarifas de serviços operados pelos Municípios.

Qual o controlo efectivo das assembleias municipais sobre a prestação de contas das câmaras municipais?

Por ser um poder de proximidade, o poder local contribui para o reforço dos mecanismos de controlo social do poder em Cabo Verde. O poder local é o mais sujeito ao controlo, ou seja pelos munícipes à porta e no interior das câmaras municipais, na rua, nas zonas quando visitam, nos eventos em que os titulares participam, pela comunicação social, pela Assembleia Municipal, pela Inspeção-Geral das Finanças, pelo Tribunal de Contas e de quatro em quatro anos é avaliado e julgado pelo povo. Os municípios prestam contas, quando convencem a Assembleia Municipal da qualidade das despesas e em geral dos planos de actividades e orçamentos, mas sobretudo quando apresentam os relatórios de actividades e as contas de gerência. Muito pode ser melhorado com a reforma da administração municipal e o consequente reforço de capacidades em termos de recursos humanos. O grande passo a dar é a implementação de orçamentos-programas nos municípios e assim a gestão orientada para os resultados. É o que exige a nova Lei de Bases do Orçamento do Estado, mas também o sistema nacional de planeamento. Esta grande reforma poderá ser acelerada com o exercício de planeamento em curso, devendo todos os municípios ter, em breve concluído e aprovado os respectivos Planos Estratégicos Municipais de Desenvolvimento Sustentável. Assim, os orçamentos municipais seguirão directrizes aprovadas pelas Assembleias Municipais e financiam catálogos de produtos que os órgãos Municipais devem entregar à sociedade. Grandes melhorias deverão ainda ocorrer em matéria de relevância do controlo do Tribunal de Contas e acredito que a implementação, - em curso, do novo Estatuto do Tribunal de Contas e o reforço de capacidades e o alinhamento com os Objectivos de Desenvolvimento Sustentável que são também as referências essenciais do planeamento a nível municipal contribuirão para o reforço do controle.

Os quase 30 anos do poder local permitiram criar uma cultura municipal em Cabo Verde?

Existe sim uma cultura municipal em fase de desenvolvimento. Os munícipes assumem por um lado a cultura do poder local, do poder de proximidade, são sobretudo cada vez mais exigentes, ciosos dos seus direitos e em parte assumem os seus deveres fiscais, pois existe ainda alguma fuga e evasão fiscais. Contudo é o cadastro predial e a actualização das matrizes e globalmente a modernização da administração fiscal municipal que determinam maior transparência, justiça e cidadania fiscais, melhor controlo e assim melhor cumprimento dos deveres fiscais.Em termos de posturas municipais, há que reconhecer os avanços conseguidos, até porque muitas cidades actuais ganharam o estatuto por decreto, ou seja, eram zonas que passaram, por decreto, a ser cidades. A cidadania urbana não se desenvolve de um dia para outro. A educação para a cidadania urbana é assim um outro desafio que as câmaras municipais devem eleger, enfrentar e vencer. Todos os municípios devem ter códigos de posturas municipais adequados à nossa identidade cultural, mas alinhados com as melhores práticas internacionais, com a nova agenda urbana, tendentes doravante a promover designadamente a sã convivência, a cidadania urbana, o usufruto do direito à cidade, elevados níveis de civilidade, a segurança pública e globalmente a competitividades das cidades.

Pode-se falar em falhanço do municipalismo em Cabo Verde?

Antes pelo contrário, o municipalismo é uma das maiores conquistas do Estado de Cabo Verde, uma das reformas do Estado que mais contribui para a partilha de poder e o avanço da democracia cabo-verdiana. Foi essencial na valorização do território, na criação de oportunidades económicas e sociais a nível local, na democratização do acesso aos benefícios do desenvolvimento e na promoção da mobilidade social ascendente. Muito contribuiu para o nível actual de eficiência do Estado. Não fosse o advento do poder local, não estaríamos no nível actual de desenvolvimento pelo que em 1992 fomos realmente visionários.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 980 de 9 de Setembro de 2020. 

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Autoria:António Monteiro,13 set 2020 11:59

Editado porSheilla Ribeiro  em  14 set 2020 10:53

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