Entregou, em Dezembro de 2022, ao Presidente da Assembleia Nacional o Projecto de Lei que visa classificar a língua portuguesa como património cultural imaterial de Cabo Verde. Qual a necessidade desta iniciativa?
A primeira e grande necessidade é a de travar o processo de degradação da língua portuguesa no nosso país. Ninguém ignora que a língua portuguesa está sujeita a um grande desgaste em Cabo Verde. Acho que poderá confirmar que o vosso jornal chegou a noticiar que de há uns anos a esta parte nenhum aluno cabo-verdiano pode candidatar-se ao ensino superior no Brasil, nem em Portugal, sem um certificado de proficiência, ou seja, sem um exame de aptidão na língua portuguesa, a nossa língua oficial. Convenhamos que isso não é nada bom para nós. O projecto de lei também se justifica pela nossa história, pela nossa cultura e pela visão de desenvolvimento do país que defendemos. Afinal, quinhentos anos não são quinhentos dias. A língua portuguesa faz parte da história de Cabo Verde desde a descoberta destas ilhas em 1460 e constitui, sem dúvida, parte importante do nosso edifício cultural juntamente com a língua cabo-verdiana. É sempre bom lembrar que o português é a língua oficial dos Estados membros da CPLP. É preciso também ter em conta que neste momento é uma das línguas mais faladas no mundo, com mais de 260 milhões de utilizadores espalhados pelos cinco continentes, e ainda lembrar que no final do século estima-se que o português venha a ter mais de 500 milhões de falantes. Como vê essa iniciativa legislativa é muito importante para o nosso país.
Fez-se acompanhar na altura pelo líder da Bancada Parlamentar do MpD. Significa que poderá contar com o apoio da Bancada do MpD?
Significa que o nosso líder parlamentar respeita a Constituição da República. A nossa Constituição diz claramente que o Deputado tem o poder de apresentar projectos de lei, propostas de referendo, etc. Foi muito bom ter contado com a presença do líder parlamentar do meu partido no acto de entrega do projecto ao Sr. Presidente da Assembleia Nacional. Para mim a sua presença constituiu um estímulo e um sinal de confiança nos Deputados da Nação. Claro que conto com o apoio da minha Bancada Parlamentar na aprovação do projecto de lei.
Da Bancada do PAICV, há sinais de apoio?
Sim, há sinais de apoio e estou satisfeita com isso.
E da UCID?
Veio da UCID um dos primeiros apoios espontâneos ao Projecto de Lei.
A sua Proposta de Lei contou a colaboração da linguista Ondina Ferreira. Porquê esta linguista e em que consistiu a sua colaboração?
Porque a Dra. Ondina Ferreira é uma linguista respeitada, uma intelectual e escritora com créditos firmados e uma figura proeminente da cultura cabo-verdiana. O apoio dela foi extremamente variado. Ajudou-me a encontrar pistas de investigação muito importantes, proporcionou-me esclarecimentos fundamentais na área da linguística bastante úteis para a iniciativa e, sobretudo, é responsável pelo essencial do conteúdo do preambulo do projecto de lei.
O artigo 9.º da Constituição da República de Cabo Verde, de 1992, já define o português como língua oficial. Então qual a importância desta iniciativa?
É verdade, o português é a língua oficial de Cabo Verde. É a língua utilizada nos documentos e nas diversas actividades oficiais, é basicamente a utilizada no domínio público, em geral. Isto numa definição ligeira de língua oficial. A classificação de uma língua como património cultural imaterial é o reconhecimento do seu valor histórico e cultural e o reforço da sua importância como elemento estruturante da identidade e da memória colectiva de um povo. Portanto, são realidades diferentes, embora complementares. Ao classificar a língua portuguesa como Património Cultural de Cabo Verde o Estado obriga-se a pôr em prática as medidas convenientes para a sua defesa e valorização. Daí o interesse em classificar a língua portuguesa como património cultural imaterial de Cabo Verde.
O seu Projecto de Lei tem apenas 4 artigos e apenas quatro páginas. Porquê? É suficiente?
A resolução que reconhece a língua cabo-verdiana como Património Cultural Imaterial de Cabo Verde tem metade de uma folha A4 e três artigos. Apesar disso constitui um precioso instrumento de salvaguarda da nossa língua cabo-verdiana. Tanto num caso como noutro, o número de páginas e o número de artigos é o que menos conta. O importante é o efeito transformador e a capacidade de defesa e valorização do bem cultural garantidos pela lei.
Um grupo de quase 200 personalidades cabo-verdianas lançou em 2022 uma petição pedindo o apoio do chefe de Estado, José Maria Neves, para a promoção da língua, anunciando que pretende criar uma associação em prol do crioulo, não só para a sua oficialização como língua nacional, como para ensino e padronização. O seu Projecto de Lei vem em contramão a esta tendência?
Nem pensar! As duas línguas não estão em concorrência uma com a outra. Eu costumo dizer que são irmãs gémeas. É importante vê-las de mãos dadas, caminhando juntas.
Espera que a sua Proposta vai ser aprovada na Sessão Plenária que arranca esta quarta-feira?
Espero sinceramente que sim. Está tudo nas mãos dos Deputados da Nação. O que decidirem está decidido. Espero ver confirmado na Plenária o apoio manifestado por deputados da UCID e das bancadas parlamentares do MpD e do PAICV.
Os ventos são propícios?
São. Estou optimista.
De onde advém a sua percepção que existe um sentimento cada vez mais generalizado da sociedade cabo-verdiana da necessidade de uma intervenção urgente capaz de valorizar e salvaguardar a língua portuguesa no nosso país?
Essa minha percepção advém de encontros normais com pessoas na rua, nos táxis, nos salões de cabeleireira que frequento, nos supermercados, mas resulta também dos meus contactos com empresários, políticos, professores universitários, juristas, linguistas, com outros técnicos e com a população em geral, na minha qualidade de deputada.
O ministro da Cultura e das Indústrias Criativas Abraão Vicente afirmou anteriormente que se a Assembleia Nacional quiser classificar o português como património imaterial terá de mudar a lei, alegando que o poder de classificar qualquer bem ou item como património cultural é do seu ministério, através do Instituto do Património Cultural (IPC). Que leitura faz desta afirmação?
Diria que o importante é cumprir a lei, a começar pela Constituição da República de Cabo Verde. Ao apresentar-se o Projecto de Lei à Assembleia Nacional está-se a cumprir a nossa Constituição que diz que a Assembleia Nacional pode legislar sobre toda e qualquer matéria que não seja da competência exclusiva do Governo. Matérias relacionadas com a cultura não são da competência exclusiva do Governo.
Em todo o caso, noticiou-se que o Projecto de Lei foi-lhe devolvido no mês de Fevereiro, após parecer negativo da Direcção do Património Imaterial (IPC). Porquê e que obstáculos foram ultrapassados para que a aprovação da sua Proposta fosse agendada agora para a Sessão Parlamentar que inicia esta quarta-feira.
Sinceramente não sei de onde vem esta estóriade devolução à autora do Projecto de Leipara elevar a língua portuguesa a património cultura nacional. O projecto nunca foi devolvido e aquele que vai ser discutido nesta Sessão é aquele que acompanhado do meu líder parlamentar entreguei ao Sr. Presidente da Assembleia Nacional, sem tirar nem pôr. A Direcção do Património Imaterial emitiu um parecer negativo, mas na Assembleia Nacional, das duas Comissões Especializadas que se pronunciaram sobre a matéria, uma foi a favor e a outra contra. Convém dizer que os pareceres, neste caso, não são vinculativos. O Projecto de Lei foi agendado de acordo com os critérios da Assembleia Nacional e serão os deputados que irão alterar a proposta, se for caso disso, aprová-la ou rejeitá-la.
Que consequências pessoais, se o seu Projecto não for aprovado?
Nenhumas. Assim como não haverá consequências pessoais se for aprovado. Cabo Verde, sim, ganhará muito com a aprovação deste projeto de lei.
Devido às posições assumidas no parlamento, chegando a ponto de ir contra posições dado seu próprio Grupo Parlamentar, já foi considerada uma «enfant terrible» do parlamentarismo cabo-verdiano. Sente-se bem nessa pele?
Não se trata de me sentir bem ou não nessa pele. O importante é compreender que estou num partido aberto em que a liberdade de expressão e de pensamento é uma realidade. Isto existe na Assembleia Nacional de Cabo Verde. De uma coisa ninguém me pode acusar: de ter ultrapassado a linha vermelha. Votei todos os Orçamentos de Estado apresentados pelo Governo à Assembleia Nacional, por exemplo.