Nós éramos todos Cesária

PorDina Salústio,29 out 2019 6:06

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Olhou para mim e de repente “ninguém é de ninguém” perdeu qualquer significado: Cesária era minha. Cesária era nossa. Nós éramos todos Cesária

Nairobi – Kenya – a mil e setecentos metros de altitude. Na linha do horizonte, qual oração, o sol surgindo. Estendo as mãos. O Ungulani Ba Ka Khosa e o Ondjaki, escritores de Moçambique e Angola, habituados aos planaltos desmedidos não podiam sentir o mesmo que eu. Enganei-me. Emocionados, todos, mais o João Viana, Jethro Soutar e a Raquel, juntos, assistíamos ao nascer da terra, com a majestade, o espetáculo e as promessas que a cada sol se faz. Mais tarde, no Teatro onde se realizava o Macondo Literary Festival – 2019 alguém, quase nos meus ouvidos, trauteava a morna Sodade. Olhei e o homem desculpou-se. – Sou escocês, mas a minha mulher, francesa, ensinou-me francês. J’aime Cesária. Cabo Verde para ele era Cesária Évora, em dez ilhas feita, no meio do Atlântico. Lembrei-me do ano de 1983, ou seria 1982?, de São Vicente e de uma crónica que fiz para a Cise e que ofereci à Ercília Barreto e à Isaura Gomes.

“Uma tarde de domingo quase inútil, vazia de emoções. Um carro freia a meu lado. A porta de trás abre-se. – Entra. Recuso. – Vamos a um lugar diferente; vais gostar. Mais uma desculpa. Um carro buzina. Fico impaciente. – Estás a impedir o trânsito – diz a Zau. Entro. – Há uma tocatina – diz a Ercília. A Cise vai cantar. O Moacyr Rodrigues foi buscá-la. O meu primeiro impulso é sair do carro. Impossível. Estamos a andar. Não oiço nada do que elas dizem. Eu não queria ouvir a Cesária. No sábado tinha negado ir à sua apresentação. Não contei para ninguém mas queria guardar a Cise com a voz que eu amei. Se fracassasse iria doer muito. E eu tinha medo.

O carro parou. Uma casa desconhecida. Gente desconhecida. Apenas os tocadores certos das noites cabo-verdianas e um ou outro habitué. Apetece-me fugir. Cesária chama-me. Abraço-a. Um abraço de desculpas por lá estar. Ela não percebe. Os olhos húmidos. Uma cadeira, um copo. Odeio as amigas que me levaram. 

Cesária vai cantar. Ninguém pede silêncio. Ele faz-se sozinho. Sinto-me presa. Cesária levanta-se e coloca-se quase à minha trás. Melhor assim. Não a posso ver, nem ela a mim. Mas eu vejo-me e as minhas mãos tremem. Tenho medo que a sua voz, como a minha, se prenda. Que a garganta não lhe obedeça. Que as palavras se percam e a música não chegue. Esvazio o copo. Quero queimar a garganta e me queimar. 

Num gesto de defesa recuo anos atrás e procuro a Cesária que eu conheci e a voz que eu guardei. “Fruto proibido” chega até mim e sinto que não estou a recordar, mas a ouvir. É a mesma voz. Mais sofrida, mais doída, guardada inteirinha para mim. Para nós. É Cesária. É a voz da Cesária. Instintiva. Sem sofisticações orquestradas. Branda. Cheia. Vibrante. Variada e rica. COMPLETA.

Mornas, coladeiras, sambas sucedem-se uns aos outros. Cise entrega-se à música e na tristeza da despedida, na alegria do reencontro ou na ironia de uma coladeira entrega-se a nós. Nós pendentes dela.

O Noé diz-me: é ela, é Cesária. Olho para ele e para cada um dos presentes e percebo que em momento nenhum estive sozinha nos meus temores. Vejo o alívio e a emoção nos rostos brotando coração. A tensão desfazendo-se. Cesária disse uma piada. Ela só. Somente ela, o tempo todo, tivera a certeza. 

Isaura olhou para mim a sorrir. Eu ri-me para ela, pela primeira vez nesse domingo, um domingo cheio de Cesária. 

Levanto-me para sair. Olho para cada uma das pessoas e sinto-me como se eu é que tivesse cantado Cise, Oriundina, Fruto Proibido e tantos tantos sucessos. A festa era minha. O regresso e o sucesso eram meus. Senti-me Cesária. Eu era a Cesária. 

Abraço a Cise. Eu estava feliz e ela percebeu. Para a despedida ofereceu-me a canção “Ninguém é de ninguém”. Cantou como só ela é capaz. Profundamente. Com a sensibilidade vivida e desenvolvida no exílio, na solidão e na doença. Olhou para mim e de repente “ninguém é de ninguém” perdeu qualquer significado: Cesária era minha. Cesária era nossa. Nós éramos todos Cesária”. (Mindelo, 23/05/1983).

O escocês que ama a Cesária fez-me uma pergunta e trouxe-me de volta a Nairobi e ao belo continente africano.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 934 de 23 de Outubro de 2019

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Autoria:Dina Salústio,29 out 2019 6:06

Editado porNuno Andrade Ferreira  em  15 jul 2020 23:21

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