“A Praia dos Amores Clandestinos” é o seu segundo romance. Sei que existe uma praia que fica entre o concelho de Santa Cruz e o de São Miguel com o nome de Praia dos Amores. Qual a relação entre a narrativa do livro e essa praia? É uma narrativa romanesca. Na outra ponta da vila de outrora, depois da capela da santa padroeira, existia uma enseada chafundada de areia branca com calhaus rolados em vários tons dourados na ourela. Era a única enseada de areia branca naquele extenso litoral do norte da ilha e ficava muito bem escondidinha, como uma concha, no recôncavo da encosta. Era, já naquele tempo, uma romântica enseada de hibernação dos amores contrariados, das relações casuais e das aventuras extramatrimoniais, de maneira que os brejeiros dessa árida zona litorânea lhe atribuíram um epíteto a condizer e, desde essa época mais remota, ganhou uma singularidade como a praia dos amores clandestinos. Veja bem que nós somos um povo cristão, muito católico. Numa aldeia pequena do interior da ilha, as aventuras e os amores desesperados eram assunto da boca do povo.
Que dimensão tem o seu novo romance?
Desde o primeiro volume da minha anunciada trilogia, cuja primeira obra foi a “A Ponte de Kayetona”, tenho vindo a trazer ao lume uma dimensão memorialística. Sabe, eu tive a sorte de ter avós e bisavós. Então, me afeiçoei muito à contação de histórias, à reconstrução do passado das pequenas coisas que outrora tinham significado para as nossas gentes, mas que se têm desvanecido no tempo. O desafio de entrar pela imaginação no contexto espácio-temporal dos nossos ancestrais é um processo de redescoberta pessoal e social muito importante porque ajuda a reconstruir um conhecimento situado e contextualizado a partir da nossa própria cultura e das comunidades locais do nosso país.
Este é mais um manifesto feminista?
Há formas incríveis de se revelar feminista, quer através de personagens, quer de temáticas. Então, pelas temáticas e pelo protagonismo de mulheres excepcionais, creio que este romance é mais um pilar na construção de um imaginário de mulheres fortes, particularmente as mulheres do interior profundo da ilha, que são fustigadas por tantas intempéries, que passam por tantos contratempos e que muitas vezes, do amor, apenas conhecem as promessas, mas que ainda assim se desabrocham perante o mundo com um sorriso terno. É isto, sim, mais um manifesto feminista.
Esse livro vem na sequência do romance “A Ponte de Kayetona”. Quais os elementos que ligam as duas obras?
Por se tratar de uma trilogia, desde o primeiro volume, há uma história por contar. Essa história vem sendo contada através da figura de Naia, mais desaforada quando jovem, em progressivo amadurecimento no início deste novo romance e apenas como memória no último volume que darei à estampa daqui a uns anos. Este romance, “A Praia dos Amores Clandestinos”, revela a forma improvável como, por força das circunstâncias, se cruzaram a vida de uma e outras figuras do vilarejo, ao longo de três gerações, e as tensões e alianças que se desencadearam no decurso de décadas de grandes mudanças locais e globais.
Quando é que começou a escrever “A Praia dos Amores Clandestinos”?
Isto vem de longe. Há muito tempo. O que chamo trilogia estava para ser um romance volumoso. Foi um amigo meu luso-angolano, escritor já de idade avançada, mais de oitenta anos, que certa vez me disse para não contar toda a história num único livro. Que deveria dividir em três. Assim em romances mais curtos e mais apelativos para a nova geração de leitores. Então, veio a ideia de fazer uma trilogia. Cada vez que pego num volume para submeter à editora, dá-me aquele gosto de reler e reescrever. Tudo isso faz parte de um processo que eu gosto muito. Gosto de ler, escrever, rabiscar, rasgar folhas… dá gozo. Para mim, tudo na vida tem que ser com gosto. Gosto de fazer as coisas de que gosto. Há pessoas que dizem que escrever é um dom. Acho que é uma meia verdade. Mais do que um dom, escrever é uma dedicação. Escrever exige muito trabalho, muita disciplina e muito rigor. As ideias flutuam com muito estudo, não apenas olhando as estrelas no céu, ou ouvindo o bater das ondas.
Há pessoas que defendem que a Praia dos Amores pertence ao concelho de Santa Cruz e outros que defendem que pertence ao concelho de São Miguel. Esta obra aborda esta questão?
Ave-maria! Queres é meter-me num grande sarilho com o pessoal do concelho fronteiriço. Mas, cá entre nós, só administrativamente aquela praia de banhos pertence àquele outro concelho. Aliás, não há habitante da Calheta que não tenha uma história inconfessável ocorrida na afamada praia dos amores, sobretudo as gentes de outrora.
O título do livro é um convite à leitura?
Foi uma escolha democrática dos meus alunos. Eu tinha várias propostas de títulos e eles escolheram esse, argumentando que suscitaria curiosidade e chamaria atenção a pessoas de todas as gerações, inclusive os mais jovens.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1020 de 16 de Junho de 2021.