“As condições da liberdade só na Segunda República foram consignadas nos normativos constitucionais”

PorAntónio Monteiro,21 jul 2024 8:29

Carlos Bellino Sacadura, Professor da Uni-CV
Carlos Bellino Sacadura, Professor da Uni-CV

Em Cabo Verde, o Dia da Liberdade de Pensamento passou, este ano, quase despercebido, não obstante ser considerado uma pedra angular dos direitos humanos e fundamentais em sociedades democráticas. Para fazer uma reflexão sobre o significado desta efeméride o Expresso das Ilhas conversou com o Professor de Filosofia, Carlos Bellino Sacadura, autor do livro Uma visão ética da liberdade, democracia e sociedade aberta na perspetiva global e cabo-verdiana editado pela Livraria Pedro Cardoso e que já se encontra disponível nas plataformas electrónicas Fnac.pt e booki.pt e que versa sobre a cultura da liberdade, tanto na vertente histórica como na actualidade, numa perspectiva universal e cabo-verdiana. Referentemente a Cabo Verde o Professor Bellino considera que, embora a Constituição de 1992 garanta a liberdade de pensamento e de expressão, no nosso país como em muitas outras latitudes, a questão económica é central. “Importa não fazer uma dicotomia como às vezes se coloca, que, bom, as liberdades não interessam, vamos ao que interessa, que é a economia e há uma tendência para basear a liberdade apenas no cálculo, no quantificável”, afirma, acrescentando que “é preciso restabelecer o primado dos valores da pessoa humana, incluindo os seus direitos sociais e culturais”.

Porquê é que o dia 14 de Julho foi escolhido como Dia Mundial da Liberdade de Pensamento?

Bem, é o dia em que se comemora a Queda da Bastilha. Por um lado, a Bastilha fica como um símbolo, digamos, da opressão. Exactamente porque muitos foram lá parar porque exprimiram o seu pensamento livremente. E, por outro lado, é considerado um sinal, digamos um ponto de partida, em termos históricos para a Revolução Francesa que de algum modo se liga ao contexto do Século das Luzes.


O que significa liberdade de pensamento?

Bom, a liberdade de pensamento pode existir mesmo nas condições mais adversas. Um indivíduo poder estar preso, mas continuar a pensar livremente. Aliás, muitos diziam que na realidade, muitos que estavam presos, eram mais livres do que os outros que estavam cá fora, porque exactamente continuavam a exercer o seu poder de reflectir e, no fundo, de pensar, mas sem poderem exprimir-se livremente.


Aliás, há essa do Sartre, que é quase um absurdo, ao afirmar que os franceses nunca foram tão livres como durante a ocupação nazi-alemã.

Aí realmente não faz sentido, porque foi uma época de opressão, aliás o Sartre depois veio a juntar-se à chamada resistência francesa. Mas a liberdade de pensamento implica também a publicidade, conforme Kant refere. Elas são praticamente indissociáveis. Publicidade, na terminologia que Kant usa, não é fazer propaganda, é no sentido mesmo de tornar público. Ora, o acto de tornar público o pensamento é esse acto de liberdade de expressão.

Diz-se também que o 14 de Julho é uma das datas mais importantes da civilização moderna. Podia comentar?

Sim, faz-se essa referência porque as datas fundadoras da modernidade identificam-se, sobretudo, com as duas revoluções: a Americana, primeiro, e depois a Revolução Francesa, que apontam para essas mudanças, digamos, de época. Então a modernidade está ligada a esses eventos tal como a pós-modernidade é, de algum modo, um demarcar-se desse contexto das revoluções ligadas às Luzes.


Como têm contribuído universidades cabo-verdianas para uma maior liberdade de pensamento e de expressão face às tentativas de confinar o pensamento e matar o espírito crítico entre os estudantes, e não só?

Bem, as universidades, não só aqui em Cabo Verde, como num contexto geral, têm tido problemas com correntes do chamado politicamente correcto que querem paradoxalmente propor ideias consideradas positivas e livres, mas um pouco à força, que os pequenos grupos querem impor. Ora, isso não corresponde à liberdade de pensamento que deve haver nas universidades. Isso é um ponto. A universidade, ao invés de ser um centro de debate, às vezes costuma ser um centro quase de propaganda de algumas tendências e, portanto, de intolerância, venha ela de quadrantes ideológicos, às vezes opostos. Por outro lado, a redução do espaço das humanidades a favor de uma hegemonia das tecnociências limita o pensamento ao calculável, em vez do argumentável, onde se efetua uma aprendizagem da liberdade de pensar. Tecnologias de inteligência artificial propõem-se substituir a pesquisa e a decisão pessoal que tornam os estudantes autónomos, invertendo assim o lema iluminista de “pensar por si próprio”.

Quais são os limites da liberdade de pensamento e de expressão?

Bom, desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos que já se estabelecem esses limites. Eu diria que são direitos e deveres. Os deveres praticamente passaram de moda e só se põe a tónica nos direitos, porque há direitos que nós temos, entre os quais a liberdade de pensamento e expressão, mas também há os deveres para com os outros, com a comunidade, conforme a célebre definição de a minha liberdade terminar onde começa a do outro. Então os limites são esses: respeitar também a liberdade do próximo. O dever de respeitá-lo – entra aí também a noção do dever.

Entrando no nosso caso. Como avalia o exercício da liberdade de pensamento na Primeira e Segunda República de Cabo Verde?

A Primeira República corresponde a um conduzir à independência e a uma vertente que é chamada a autodeterminação dos povos, conduzindo na sua última instância à independência. Só que as condições da liberdade, só na Segunda República foram consignadas nos normativos constitucionais, incorporando os princípios da democracia liberal, entre os quais a liberdade de pensamento e expressão, no texto da Lei Fundamental. E não é por acaso que se usa essa designação, Lei Fundamental. É exactamente porque ela se baseia em fundamentos e em direitos fundamentais, onde está também a liberdade social. Então, um filósofo que é o Xavier Zubiri até diz que fala-se muito na crise económica, crise política, crise social, mas para mim, para o Xavier Zubiri, o que nós atravessamos actualmente e não se fala é, sobretudo, uma crise de fundamentos. Esse fundamento que é o Grund, em alemão, que dá propriamente sentido ao Estado de Direito e ao Estado de democracia liberal, porque os seus fundamentos são pré-políticos, éticos e axiológicos. Isso é discutido num diálogo entre Habermas e Joseph Ratzinger (ainda antes de ser Papa) sobre os fundamentos do Estado Liberal. Antes de se estabelecer o sistema político, existem esses fundamentos, dos quais o central é a dignidade humana, já implícita no texto do Pico de la Mirandola, Discurso sobre a dignidade e o valor da pessoa - os chamados direitos de personalidade.


A Liberdade de Pensamento permite a luta pelos direitos básicos, como água, comida, saúde, oportunidades e condições justas de emprego, condições adequadas de habitação e saneamento, etc. Como estão estes direitos garantidos em Cabo Verde?

Aqui em Cabo Verde essa questão da economia é central, mas importa não fazer uma dicotomia como às vezes se coloca, que, bom, as liberdades não interessam, vamos ao que interessa, que é a economia e há uma tendência para basear a liberdade apenas no cálculo, no quantificável. E aí os índices de desenvolvimento humano que o Amartya Sen, de certa forma, foi o precursor e o pensador, tem uma visão mais alargada do que é ser moderno, democrático e livre. Ao não ir apenas para a quantificação, por exemplo, do rendimento per capita ou do produto nacional bruto, mas a educação, a cultura, a saúde, até os índices de longevidade, servirem de medida, uma medida, digamos, qualitativa e não apenas quantitativa.

Em Cabo Verde, sobretudo nos debates parlamentares, fica-se também com essa impressão que as liberdades não contam tanto e o que interessa é a economia e o que é qualificável: o número de aviões e barcos que o país tem, as escolas, barragens e estradas que cada governo construiu, etc.

Ouvimos isso não só em Cabo Verde como em muitas discussões que há no Parlamento Europeu e noutras instâncias: é tudo a nível orçamental. Ora, o orçamento é um instrumento para o desenvolvimento e não, digamos, a única ocupação da vida social e política. Então, é preciso restabelecer o primado dos valores da pessoa humana, incluindo os seus direitos sociais e culturais.

Em Cabo Verde há já focos de populismos. Trata-se de uma realidade, ou de um fenómeno transitório?

É um fenómeno mundial a que praticamente não se pode escapar…


Pode fazer escola em Cabo Verde?

Sim, praticamente não se consegue escapar a isso, que são sonhos de líderes providenciais, a resolver tudo e fazer explodir o sistema, neste caso o sistema democrático, para dispensar, lá está, as pessoas de pensarem e terem um sentido crítico. Isso também é alimentado por esses nichos que tendem a excluir em vez de incluir. E essas soluções fáceis são atraentes para alguns, porque ficaram desiludidos como a situação vivida actualmente. E há sempre uma tentação de sair das propostas e do horizonte oferecido pelo Estado de Direito Democrático. A democracia não propõe utopias, mas abre as possibilidades. Paul Ricoeurchamou os mundos possíveis. É essa a diferença entre o aberto e o fechado. O livre pensamento patente nas sociedades abertas que já se revelava desde a oposição entre a Atenas do Péricles (democracia) e Esparta com um sistema de tipo militarista aberto e fechado, até à sociedade aberta e os seus inimigos, referida por Karl Popper como afirmação da autonomia individual, mas também a obrigação e os deveres para com os outros e com a comunidade. São vectores para pensar e agir em função de um horizonte de liberdade, actualmente.

Tem alguma mensagem para a classe política e para a sociedade em geral a propósito do Dia Mundial da Liberdade de Pensamento?

Nós temos um sistema que, para além dos governos, digamos, serem circunstanciais, ainda é muito assente no Estado. Um horizonte para desenvolver esse horizonte de liberdade é o da afirmação da sociedade civil, a que se chegou a falar por muito tempo, dando-lhe uma voz maior do que aquela que só se exprime pelas instâncias formais e pelo espectro partidário. O meio académico, por exemplo, seria um deles, mas não só; todas as instâncias da sociedade civil. E para poder conduzir esse objectivo que não é a sociedade que está ao serviço do Estado ou do indivíduo, mas o inverso.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1181 de 17 de Julho de 2024.  

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Autoria:António Monteiro,21 jul 2024 8:29

Editado porAndre Amaral  em  7 set 2024 22:20

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