No passado dia 27 de julho participei na apresentação desta magnífica obra, que o autor define como um “trabalho de filosofia prática e de ética aplicada”. As considerações, então por mim proferidas, resultaram da leitura deste livro, profundo e plural, preenchido pelo pensamento filosófico e cívico de Bellino Sacadura e de uma plêiade de “outros autores, sobretudo, contemporâneos, mas também com referências históricas – ainda que sempre referidas a preocupações do presente, evitando, porém, os anacronismos”.
Na Introdução, o autor situa-nos na temática central, “a condição humana e os seus valores – nas áreas da política, do direito, da economia, da gestão, da educação, da comunicação, da literatura, da argumentação, do pensamento crítico, da tecnologia, do ambiente, da inteligência artificial, da cultura humanística e científica”. Reserva para si (como autor), modestamente, a interpretação das ideias dos inúmeros pensadores que percorrem o livro, advertindo, porém, ter observado “os limites que Umberto Eco coloca à interpretação – que seja aberta, mas fundamentada e, portanto, não arbitrária”. Delega em nós, os leitores, “a liberdade de fazer a sua própria interpretação desses autores, debater, avaliar as contribuições que considera mais significativas no panorama apresentado, em suma, desenvolver a sua leitura do mundo”.
O livro encontra-se estruturado em 18 ensaios (são mais do que capítulos, porque cada um tem individualidade própria), assim intitulados: 1 – Homo liberalis: educação e cultura humanística como formação para uma sociedade aberta e democrática; 2 – Homo economicus: a dimensão humana, jurídica e económica num mundo tecno-científico; 3 – Os impactos sociais, culturais e éticos da sociedade de informação e comunicação; 4 – A cidadania comunicacional no espaço cabo-verdiano; 5 – A liberdade em tempos sombrios: da dimensão política e jurídica à ética e cultural; 6 – Narrativas da liberdade; 7 – Liberdade e interculturalidade; 8 – Repensar o espaço filosófico; 9 – Luzes do Oriente: outros olhares culturais e filosóficos; 10 – A liberdade como historicidade e questão última; 11 – O fenómeno totalitário: supressão da liberdade e do pensamento crítico; 12 – As condições da democracia – cultura, cidadania, normas, procedimentos e instituições; 13 – Diasporização, cosmopolitismo e construção do Estado de Direito Democrático em Cabo Verde; 14 – Educação para a Cidadania, Direitos Humanos e Cultura da Constituição; 15 – Estado de Direito Democrático e Direitos Humanos em África: entre fragilidades e potencialidades; 16 – Razão pública e ética do debate na democracia deliberativa; 17 – O retorno do sujeito ético, a arte de viver e a democracia: revisitando a Filosofia Antiga e 18 – Nota final (mas não conclusiva): a justificação moral da democracia.
Alguns tópicos contidos nestes ensaios foram abordados em conversas com o meu colega Bellino. Nos nossos encontros (no café, onde quer que fosse…), depois de falarmos de tudo um pouco, voltávamos sempre aos mesmos assuntos: a educação, a universidade, o persistente atraso do sistema de ensino em Cabo Verde, o ensino atual que é (julga-se) sempre pior do que o do nosso tempo, com uma argumentação veemente, que, por vezes (e cada vez mais) se diluía num desânimo, num quase niilismo. Desânimo à parte, a mente reflexiva de Carlos Bellino Sacadura transformou as dúvidas e incertezas sobre o futuro em ideias, paradigmas e argumentos que, metodicamente, vai anotando, analisando, aperfeiçoando. Tornam-se a matéria-prima das suas aulas, de comunicações, conferências, artigos e livros. Assim o fez nesta obra.
Permitam-me sublinhar uma importante (e julgo que inédita) característica deste livro, que reflete o perfil do seu autor – cidadão e académico dotado de uma enorme sabedoria, competência e generosidade. Trata-se de uma obra de consagração – não de si – mas da comunidade científica nacional. Embora detentor inequívoco de autoridade académica, assume uma postura de colegialidade e de partilha no seu amplo campo de pesquisa: a Filosofia, a Ética e a Educação. Contrariando a ideia-feita da quase ausência de ciência e de investigação entre nós, demonstra que existe um pluralismo de pensamento crítico e de competências hermenêuticas, reflexivas, críticas e argumentativas em Cabo Verde. Documenta esta asserção com referências a personalidades com destaque na ciência, na arte, no direito e na cultura contemporâneas. Limitar-me-ei a enunciar alguns nomes e competências, com um pedido prévio de desculpa pelas omissões (minhas e não do autor).
No campo da cidadania comunicacional destaca Silvino Évora, Alfredo Pereira e Tito Gonçalves que se têm dedicado à problemática da legitimidade democrática do jornalismo, seus valores e incidências éticas. No pressuposto que a liberdade não depende de um destino, mas das nossas escolhas, destaca Irene Cruz e a sua tese centrada no paradigma cosmopolita de maior abertura de fronteiras e Gertrudes Oliveira que foca a problemática da interculturalidade em educação. Fora dos conceitos tradicionais de tipo essencialista e identitário, apresenta a tese de Gabriel Fernandes que defende que a dinâmica crioula e híbrida tem um inegável potencial cosmopolita, e de João Paulo Madeira que assinala a singularidade crioula e a abertura ao Outro. Na ensaística de temática política e cultural, refere as reflexões jusfilosóficas de Casimiro de Pina e a formação estética do povo das ilhas estudada por Elter Carlos. A cultura da ética no contexto africano e mundial está presente em Odair Varela. A formação histórica do espaço cosmopolita cabo-verdiano emerge na obra de António Correia e Silva, enquanto a construção de uma cultura e de um estado de direito democrático em Cabo Verde estão presentes nos ensaios dos juristas Pina Delgado e Leão de Pina. A cultura da Constituição e a Educação para a Cidadania e Direitos Humanos têm sido objeto de uma ação continuada e persistente de Jorge Carlos Fonseca. O fenómeno totalitário, que acontece em regimes que conferem a um partido o monopólio da atividade política (Aron, 1987), é analisado por José Tomás Veiga. Ao longo da obra está presente a renovação estética da literatura com o romance histórico de Germano Almeida e a escrita ficcional de Eurídice Monteiro, Eugénio Inocêncio, Armindo Ferreira, Daniel Medina, Ondina Ferreira, Margarida Fontes, Salif Djallo, Vera Duarte e Susana Duarte, entre outros.
Num tempo em que, em Cabo Verde, se insiste numa visão dicotómica da sociedade e num sentido de história orientado por dogmas e modelos culturais e políticos que caracterizam a “liberdade moderna”, que Isaiah Berlin chamou de liberdade negativa, Carlos Bellino Sacadura apresenta-nos o estado da arte das Ciências Sociais e Políticas no nosso país, regenera a confiança em nós próprios e potencia “uma visão ética e cultural da liberdade, democracia e sociedade aberta na perspectiva global e cabo-verdiana”.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1189 de 11 de Setembro de 2024.