Porquê o título A Correspondência de Fidalgo Preto?
Fidalgo é, etimologicamente, filho de algo. Quando concorri ao prémio Sonangol de Literatura [em 2006] vi-me confrontado com a necessidade de criar dois pseudônimos, um para cada uma das minhas obras concorrentes. E saíram Fidalgo Preto, para a obra vencedora – Baban, o ladino e Negro Gentil, para a segunda obra – Viúva Virgem). Ambos os pseudônimos têm a ver com a maneira como me sinto, me vejo e me relaciono com o próximo – cortês, gentil, atencioso, sem deixar de ser defensor convicto do que é certo e relevante.
Podia falar-nos da génese do seu novo livro? Que espaço temporal abrange?
As 81 cartas, distribuídas por 10 blocos, foram uma resposta a um desafio lançado por uma pessoa muito especial e que tinha uma enorme confiança nas minhas aptidões. E também porque sempre acreditei que ficar calado lá onde se deve tomar posição e que o silêncio dos bons é mais preocupante que o vociferar dos prevaricadores. E as cartas foram o veículo escolhido para a intervenção cívica que se impunha no dealbar deste milênio.
Afirma no livro que A Correspondência de Fidalgo Preto é um apelo à forte intervenção cívica dos cidadãos. Como assim?
A Correspondência de Fidalgo Preto é uma partilha do pensamento e das opções do autor no que à participação cívica diz respeito. Não tem a pretensão de ser nenhuma receita nem, muito menos, um catecismo ou um catálogo de procedimentos. Mas se a juventude reagir, assumir a irreverência que deles esperamos, e optar por conclamar os concidadãos à participação cívica… beleza.
A obra, ou pelo menos o título, é inspirado no livro A Correspondência de Fradique Mendes, de Eça de Queiroz. Há mais paralelismos entre os dois livros?
Eça de Queiroz é o meu escritor favorito e, apesar de A Correspondência de Fradique Mendes ser um livro de leitura bastante agradável, essa obra apenas me sugeriu a opção pelo estilo epistolar, o qual servia, às mil maravilhas, ao que Fidalgo Preto pretendia. Mas, modéstia à parte, Fidalgo Preto é muito mais comprometido com o seu tempo, a sua cidade, o seu país e os seus contemporâneos.
O livro está recheado de citações de estadistas, pensadores, escritores e até de actores de cinema. Abre com esta citação do poeta, naturalista, pesquisador, historiador e filósofo Henry David Thoreau – As coisas não mudam; nós mudamos. O que é que mudou em Cabo Verde desde então?
Em Cabo Verde continuamos a apostar em deixar tudo como está para ver como fica. E continuamos a esperar que cada novo ano que começa seja melhor do que o que findou, mas ninguém se compromete a ser, a agir, a se comportar melhor para que tal desiderato seja conseguido. E assim fica difícil. E o desafio de Fidalgo Preto é claro: ou nos assumimos como parte da solução ou continuamos parte dos problemas. E há um abismo entre um posicionamento e outro.
E na Praia o que mudou, com base no diagnostico que faz no seu livro com vista à satisfação das necessidades das comunidades?
Antes de mais, precisamos rever nosso conceito de comunidade. No dia em que conseguirmos agir como partes de um todo com afinidades bem identificadas e cultivadas, gerirmos as sinergias, perseguirmos o bem comum e deixarmos de estar focados no nosso umbigo, resolveremos a maior parte dos nossos problemas. Cumpriremos com as nossas obrigações e exigiremos o respeito pelos nossos direitos e o pagamento das promessas que nos fazem por ocasião das eleições. Chegaremos lá um dia. Nada como um dia depois de outro.
Relativamente ao perfil que traça dos ex-autarcas Felisberto Vieira e Ulisses Correia e Silva, mantém a mesma percepção?
Eles já são passado. E quem vive de passado é museu. Bola para a frente.
O livro termina com a frase: “Para desespero daqueles que nos impedem a caminhada, (como diria O.M.) e de quantos gostariam que houvesse mais carneirada e menos cidadania”. O rebanho cresceu, ou já temos hoje mais cidadania?
Hoje há menos fanatismo, indubitavelmente. Mas há ainda muito investimento a ser feito no que à cidadania diz respeito. Vamos fazer pressão para que as nossas escolas passem a formar, mais do que letrados, CIDADÃOS: gente ciosa dos seus direitos e cumpridora de suas obrigações; que respeita a diferença e convive, de forma saudável, com o diferente; e solidária em relação aos desfavorecidos da sua comunidade. Chegaremos lá.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1208 de 22 de Janeiro de 2025.