Que questões aborda neste novo livro e que espaço temporal abrange?
Este romance contemporâneo encerra uma trilogia iniciada em Coimbra, em 2007. Ao regressar a Cabo Verde, em 2013, a escrita entrou num estado de latência, um hibernar necessário que, porém, não interrompeu o seu desígnio. Ao recuar o olhar sobre este processo criativo, revejo-me como testemunha de um movimento de volta ao âmago, espelhando aquela viagem que Proust descreveu como sendo não tanto uma descoberta de novas terras, mas um novo olhar sobre as já conhecidas. Recordo, com nitidez, que só a memória afectiva concede as experiências da minha infância como menina numa aldeia do interior da ilha de Santiago, onde os contos femininos da tradição oral giravam em torno da lida doméstica: cozinhar, limpar, cuidar. Eram narrativas de resistência silenciosa, de amor prático e estoicismo quotidiano. Mas era nas histórias de aventura, com protagonistas masculinos, heróis livres, errantes e sonhadores, que a minha imaginação ganhava asas. Ali, na tensão entre essas duas formas de narrar, a do lar e a da estrada, fui intuindo a construção de uma dicotomia que atravessa culturas e tempos: o espaço reservado ao feminino como privado, contido, enquanto ao masculino se concedia o vasto campo da acção e da fantasia. Simone de Beauvoir já alertava para essa cisão no modo como a sociedade molda os destinos a partir do género. E Virginia Woolf, na sua A Room of One’s Own, fez eco do mesmo anseio de libertação, ao reivindicar para a mulher um espaço — físico e simbólico — onde pudesse escrever, pensar, ser. É neste contexto que Em Algum Lugar se inscreve como ponto de chegada e de partida. Ao entrelaçar memórias e ficção, procura desmontar as narrativas herdadas e propor outras possibilidades de olhar o mundo. Continuo a acreditar, como Paulo Freire, que a narração tem um poder transformador. E, como Italo Calvino, sei que a leveza e a imaginação são ferramentas contra a opressão. Assim, permaneço fiel ao meu amor pelas histórias que expandem o possível.
Que abordagens são comuns nos três livros de ficção e que novas temáticas encontramos neste seu novo livro?
O fio condutor é o Tempo — esse artífice silencioso da condição humana, simultaneamente invisível e omnipresente, que molda memórias, reformula identidades e dissolve fronteiras. Como nos ensinou Walter Benjamin, a memória não é uma simples sucessão de factos, mas um campo de tensões onde o passado pulsa no presente, reclamando leitura crítica. Neste terceiro volume, continuam presentes os grandes temas que percorrem os volumes anteriores — a migração, a busca por pertença, a luta pela dignidade —, mas com um novo fôlego e em roupagens atualizadas. A migração, por exemplo, não se apresenta apenas como deslocação voluntária ou sonho transatlântico, mas como êxodo forçado, muitas vezes clandestino, envolvendo desastres humanitários e dilemas éticos profundos. Mas é no tratamento dos temas contemporâneos — como a proliferação das tecnologias digitais, a ascensão da inteligência artificial, a democratização do ensino superior e a intensificação da mobilidade interinsular — que este romance se inscreve de forma ousada no horizonte do século XXI. A inteligência artificial, enquanto potência emergente, surge aqui não apenas como ferramenta, mas como metáfora da própria condição pós-humana, onde os limites entre o orgânico e o artificial, o vivido e o simulado, se esbatem perigosamente.
Este último volume da trilogia acompanha uma jornalista cabo-verdiana desde os anos 1990 até hoje. Por que escolheu esse perfil profissional para a protagonista?
A escolha desta protagonista — mulher, formada, atenta ao mundo — não é acidental: simboliza uma geração em trânsito, entre o legado da tradição e os desafios da modernidade. O jornalismo, enquanto prática de escuta e de testemunho, permite explorar a tensão entre o real e o narrado, entre o que se vive e o que se dá a conhecer. O romance tem início com o insólito “achamento de um passaporte português” numa modesta casa no interior de Santiago: um artefacto que, tal como a maçã de Newton ou a carta de Rousseau, desencadeia um despertar. Em serviço na ilha da Boa Vista, a jovem estagiária do Semanário Ilhéu vê-se confrontada com algo que transcende o seu quotidiano: um vestígio da história que interroga o presente. A partir desse momento, desenrola-se um enredo que espelha o dilema — ou, quem sabe, a liberdade — de uma nova geração que se move entre pertenças múltiplas, oportunidades incertas e horizontes em permanente redefinição.
Como se lê na nota de imprensa, Em Algum Lugar é um importante contributo para revigorar o jornalismo literário em Cabo Verde. Como assim?
Fá-lo não apenas pelo tema que o atravessa, mas pela forma como a escrita se entrelaça com a observação crítica da realidade. Fascina-me o universo do jornalismo, esse espaço de escuta, denúncia e revelação. E, como bem sabemos, os escritores têm o privilégio — e a responsabilidade — de transitar entre mundos, de cruzar linguagens, de iluminar zonas de sombra. O jornalismo literário, na tradição de Ryszard Kapuściński, Truman Capote ou Gay Talese, permite isso: narrar o real com o rigor da observação e a sensibilidade da literatura.
Que lugar ocupa as suas obras de ficção no contexto dos seus livros académicos, infantojuvenis e crónicas?
Este é o meu sétimo livro, e com ele o equilíbrio da minha produção literária inclina-se decididamente para a ficção. Com três romances publicados, tenho hoje mais obras ficcionais do que de qualquer outro género — ultrapassando os dois livros académicos, o conto infantojuvenil e o volume de crónicas. Esta trajetória revela uma inclinação cada vez mais nítida para o território vasto e libertador da narrativa, onde posso entrelaçar memória, imaginação e crítica social com a liberdade que só a ficção permite.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1224 de 14 de Maio de 2025.