Podiam tecer algumas considerações sobre a génese do livro?
Como sabe, nos últimos anos tenho-me dedicado à investigação no domínio da História da Educação e da Cultura cabo-verdianas. Neste percurso acumulei informações e documentação sobre várias figuras que intervieram, em épocas diferentes, em assuntos da educação, com manifesta competência e notável legado. Dispunha de um acervo que, pensei, valeria a pena continuar a estudar. Assim fiz. Por outro lado, constatei que nos livros e artigos que tinha escrito, os campos de análise foram os factos históricos, as instituições – liceu, seminário, universidade – e as ideologias educativas. Os protagonistas ficaram no silêncio, como sombras. Em conversas com o Ildo achámos que valeria a pena quebrar esse silêncio e trazer as pessoas para a ribalta. E assim começámos.
O que diferencia a presente obra dos seus livros anteriores?
Primeiro e antes de mais é o género literário. Ousámos escrever biografias. A história da educação passou a estar contida nas histórias de vida de professores, gestores, estudiosos da causa educativa, políticos, encarregados de educação. O género biográfico deu, naturalmente, visibilidade às pessoas. Depois, a metodologia fez toda a diferença. Os documentos pessoais ou oficiais saíram do recato dos arquivos e dos acervos institucionais. Entraram em diálogo com os participantes na construção do sistema educativo cabo-verdiano como protagonistas da História que muitas vezes contam em directo. As biografias, por vezes, são narradas na primeira pessoa, outras são mesmo autobiográficas, frequentemente na terceira pessoa.
O livro é da autoria de Maria Adriana Sousa Carvalho e Ildo Augusto Sousa Carvalho. Portanto uma especialista em História da Educação e um médico com Pós-graduação em Saúde Pública e formação em Epidemiologia Tropical, mas com experiência na área da educação, pois foi coordenador de Cursos de Enfermagem e integrou o Conselho Directivo do Centro de Formação Médica Especializada. Como foi escrever o livro a quatro mãos?
Foi um processo que fluiu naturalmente. Com divisão de tarefas, interesses comuns nas áreas da educação e da cultura, tolerância face às diferenças e disciplina, muita disciplina e cumplicidade.
Afirmam que é também um livro colectivo. De que forma?
De facto, tenho dito isto muitas vezes. E não são meras palavras de circunstância. Muitas histórias de vida foram também escritas pelas entidades biografadas, numa partilha de memórias, informações, documentos pessoais, fotografias e mesmo divulgação de fontes inéditas por nós desconhecidas. Noutros casos, as biografias foram enriquecidas com depoimentos, testemunhos e novos dados bibliográficos cedidos por familiares, amigos, colegas e discípulos. Sim, o livro Biografias de 31 Personalidades da Educação é mesmo um trabalho colectivo de investigação.
O co-autor, Ildo Carvalho escreve no Epílogo que o livro era para ser um dicionário. Porque não foi?
Sim. Era para ser um dicionário, um elenco alfabético de personalidades (professores, jornalistas, políticos, escritores, etc.) que se expressaram em prol da educação em Cabo Verde. Com este intuito fomos elaborando sucessivas listas de pessoas que poderiam entrar no dicionário. A abordagem das primeiras personagens, de forma aleatória no tempo, foi revelando uma riqueza de vidas preenchidas por acontecimentos, reflexões e ideias – muitas para nós originais – que exigiam uma maior exposição, incomportável nos espaços concisos que um dicionário faculta aos leitores. Por outro lado, a ordenação alfabética de um dicionário não dava o sentido da História, a perspetiva evolutiva do percurso de cada um e da Educação. Tivemos ainda em conta as nossas limitações pessoais. Mudámos o plano inicial e aventurámo-nos na construção de um livro de biografias de individualidades ordenadas pelo tempo da acção educativa de cada um.
O livro abrange todo o século XX. Então porquê essas trinta e uma personalidades biografadas e não outras?
Esta pergunta é-nos feita por quase todas as pessoas com quem já falámos sobre o livro. Tem razão, ao longo de um século é pouco compreensível termos tão poucas Personalidades da Educação. Poderíamos ter duplicado ou triplicado este número. 31 foi o número possível, ajustado ao tempo programado para a publicação e à disponibilidade das fontes. O resultado – este livro – é selectivo, controverso. A escolha final dos biografados baseou-se no critério da produção escrita. Explico melhor: nos termos de referência para cada biografia, um dos critérios de seleção foi a obrigatoriedade da ligação da reflexão teórica à prática educativa, em textos escritos pelos próprios ou por outras individualidades conceituadas. Ora esta exigência foi reduzindo a lista de nomes. Onde descobri estes nomes? Nos Arquivos e no Ministério da Educação em sentido amplo. Nos Arquivos encontrei fontes que desvendaram notáveis educadores, alguns escritores, poetas e jornalistas, funcionários, mas também professores, que analisaram o sistema escolar do seu tempo. Por outro lado, no Ministério da Educação, onde trabalhei desde 1978, convivi e trabalhei com professores, gestores, técnicos e dirigentes. Este conhecimento privilegiado permitiu-me identificar, quase intuitivamente, um conjunto de pessoas que se dedicaram de corpo, inteligência e alma à Educação. Foi tarefa fácil, porém com uma margem inevitável de subjetividade.
Optaram por estruturar a obra em segmentos e não em capítulos tradicionais. Que critérios estiveram na base dessa escolha?
Cada história de vida tem autonomia própria, porém estão ordenadas pelo período de intervenção educativa de cada um, indicado numa linha cronológica que inicia a biografia. No entanto, podemos identificar três segmentos de tempo bem definidos política e socialmente. O primeiro segmento começa no início do século XX e prolonga-se até aos anos 30. É uma época historicamente marcada pela instauração da República em Portugal e sua evolução para o Estado Novo. A história da educação no Arquipélago – na encruzilhada de dois modelos de ensino, o rural-religioso (Seminário-Liceu de S. Nicolau) e o urbano-laico (Liceu do Mindelo) – perpassa nas biografias de José Maria Cabral de Azevedo, Monsenhor António José de Oliveira Bouças, José Lopes da Silva, Cónego António Manuel da Costa Teixeira, Eugénio de Paula Tavares, Augusto Manuel Miranda, José dos Reis Borges, Pedro Monteiro Cardoso, Augusto Pereira Vera Cruz e Adriano Duarte Silva. São professores, jornalistas, escritores, poetas, um reitor e dois deputados à Assembleia Nacional. O segundo segmento decorre dos anos 30 ao final da década de 50 do século passado. Vivia-se um tempo de asfixia política, decorrente do fortalecimento do regime de ditadura de Salazar. A escrita em jornais e livros “visados pela censura” passa a requerer coragem, cuidados e subterfúgios. São desta época as histórias de vida de Baltasar Lopes da Silva, Inácia Cândida Bettencourt Santos, António Aurélio da Silva Gonçalves, Celeste Nascimento Pereira, Henrique Teixeira de Sousa, Guilherme Dias Chantre, Antero João de Barros, Arnaldo Carlos de Vasconcelos França, Maria Helena Spencer, Padre Caetano Francisco Pimenta e Maria Luísa Blanqui. São escritores das revistas Certeza e Claridade, professores, dois reitores, um médico escolar e uma mãe preocupada com o futuro do ensino. O terceiro segmento decorre dos anos 60 ao fim do século XX. É uma época marcada pelo reconhecimento do direito dos povos à autodeterminação, pela afirmação dos nacionalismos africanos, pela proclamação da independência de Cabo Verde e os primeiros 25 anos de vida da nova República. Para documentar esse tempo escolhemos as histórias de vida de Maria Luísa Ferro Ribeiro, Carlos Nunes Fernandes dos Reis, José Eduardo Figueiredo Araújo, André Corsino Tolentino, Manuel da Paixão dos Santos Faustino, Ondina Maria Fonseca Rodrigues Ferreira, José Luís do Livramento, Henrique Teixeira Oliveira, Ana Maria de Almeida Santos Cordeiro e João Cidade Alpiarça. São professores, cooperantes, reformadores e dirigentes. Representam a construção de um sistema que se pretendia novo e a cooperação para o desenvolvimento.
A obra traz um ciclo dedicado a seis ministros da Educação de Cabo Verde. Porquê a sua inclusão no livro?
Julgo que não podemos falar num “ciclo de ministros”. As suas biografias inscrevem-se na linha evolutiva da educação em Cabo Verde após a independência. Contêm informações detalhadas e reflexões importantes para a história institucional da educação na actualidade, que, aliás, se complementam com as biografias dos professores, técnicos e cooperantes que com eles trabalharam.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1242 de 17 de Setembro de 2025.