Agora, o desafio é outro: transformar esta conquista num ponto de viragem para o futebol nacional, com mais investimento em infra-estruturas, formação e igualdade de oportunidades para os jovens atletas. “Temos talento, mas isso não chega. Precisamos de melhores condições, mais campos e selecções de base a competir regularmente, para que os nossos jovens possam sonhar em chegar à selecção A”, sublinha.
A primeira pergunta é óbvia. Cabo Verde qualifica-se pela primeira vez para o Campeonato do Mundo de Futebol. Qual foi o sentimento no momento em que o árbitro do jogo com o Eswatini apitou para o final do jogo?
O sentimento foi de muita emoção. Difícil de descrever. Esta qualificação representa o culminar de muito trabalho, sacrifício e muita fé. Ver Cabo Verde entre as melhores selecções do mundo é motivo de orgulho, não só para nós, mas também para todo o povo cabo-verdiano. Enfim, uma mistura de orgulho e gratidão por tudo o que nós fizemos, não só eu, mas toda a equipa.
Agora que o sonho já é realidade, quais são as expectativas para o Campeonato do Mundo?
Vamos claramente com muito respeito, mas sem medo. Competiremos com a nossa identidade, com coragem e com a ambição de deixar uma marca. Cabo Verde vai estar entre as maiores selecções do mundo. Temos de ter muita confiança e muita coragem para enfrentar as dificuldades que vamos encontrar. Mas também, como disse no início, sem medo, competiremos com a nossa identidade.
Fazendo aqui um pouco de futurologia, qual seria para si o grupo ideal para Cabo Verde jogar neste Campeonato do Mundo? Com que equipas é que gostaria de jogar?
Eu penso que a nossa selecção está com muita expectativa. Tanto os jogadores como o povo estão com muita expectativa sobre o grupo em que poderemos ficar inseridos. Eu pessoalmente não escolheria nenhuma das equipas. De alguma forma preferiria que ficássemos mais perto dos nossos adeptos, também seria um prémio para eles, principalmente os adeptos que temos entre os nossos emigrantes, que são muitos nos Estados Unidos, mas não tenho preferência. Acho que qualquer das selecções que vão estar no Campeonato do Mundo será sempre difícil para nós e é aí que temos que ter a nossa confiança e a nossa identidade e principalmente o desejo de representar o nosso país da melhor forma possível.
Cabo Verde fez uma qualificação para o Campeonato do Mundo brilhante e venceu selecções tradicionalmente vistas como mais fortes. O que é que motivou Cabo Verde a conseguir esta qualificação? Já é um projecto que vem de trás, não é?
Claramente é um projecto que vem de trás. Eu disse também anteriormente que nós culminamos, digamos assim, a nossa qualificação, mas há um trabalho e uma visão que vêm já de há muito tempo. Todos trabalharam nisso. Digamos que a nossa vantagem agora é a nossa união. A nossa equipa é muito unida. Temos muito respeito pelas nossas regras, os nossos princípios. Temos muita humildade dentro da nossa equipa. Digo sempre aos jogadores: é ter a confiança individual e confiar no resto do grupo. Ter coragem e acreditar no nosso sucesso. Acreditámos sempre no nosso processo, acreditámos que era possível, trabalhámos com muita fé, porque sabemos que a vitória começa na mente, na cabeça. Tivemos sempre isso no nosso pensamento e tivemos coragem também nos momentos difíceis de ultrapassar as dificuldades com bastante humildade e conseguir a união da nossa equipa para fazer toda a diferença.
O primeiro passo está dado. Cabo Verde qualificou-se para o Campeonato do Mundo. O que é que é preciso agora para que estas qualificações se tornem cada vez mais regulares?
Temos de procurar mais apoio, ter mais formação para jovens atletas, construir mais infra-estruturas desportivas. Eu penso que esta qualificação é uma inspiração para as novas gerações de jogadores cabo-verdianos. Nós valorizamos os talentos locais, mas vamos passar a ser vistos como uma potência a emergir no futebol. Cabo Verde estará entre as melhores selecções do desporto e isto aumenta o respeito global pelo nosso país. Mas temos de fazer de tudo para que esta qualificação seja uma viragem para tudo o que o nosso futebol merece. Vai ser muito bom para o nosso país, mas temos que tirar vantagens disso e continuar a trabalhar para que as nossas qualificações possam vir de seguida e não ficarmos sentados em cima desta qualificação. Só temos vantagens se trabalharmos com mais esforço para continuarmos a estar nas competições a nível mundial, a nível do nosso continente, para que o país tenha uma visão muito mais abrangente e noção do que isso traz para todo o país, porque isso vai atrair investidores. Acho que o nosso turismo vai ter melhor visibilidade internacional, daí que temos de aproveitar tudo isso.
A profissionalização do futebol nacional também é uma das soluções?
É sempre uma solução, mas temos que ter, primeiramente, infra-estruturas. Penso que temos que ter mais infra-estruturas de qualidade para que os nossos jovens jogadores tenham condições de trabalhar e competir. Temos muitas dificuldades com as nossas selecções jovens. Não temos uma selecção olímpica, não temos uma selecção sub-20 ou sub-19, daí que é muito difícil para um jovem jogador, que está dentro do nosso território, conseguir chegar à selecção nacional. É quase impossível por causa de tudo isso que acabei de mencionar. Também temos que ter regras claras em relação ao futebol nacional para que todos os jovens residentes possam ter igualdade e possam almejar chegar à selecção A. Dificilmente um jovem que está dentro do território nacional terá condições de chegar à selecção A se não houver uma selecção sub-19 e uma selecção olímpica a competir regularmente. Temos a selecção de sub-17 a competir, mais ou menos de 2 em 2 anos, mas isso não serve. Temos de ter condições de ter os nossos jovens a competir ao mais alto nível e, quando digo isso, falo pelo menos dentro do nosso continente para que todos tenham essa possibilidade. Acho que temos talento, mas isso não chega. Daí que essa é responsabilidade do país, com essa qualificação, de poder dar possibilidades e condições de igualdade a todos.
A selecção nacional tem sido alimentada, por assim dizer, maioritariamente por jogadores da diáspora. Acha que Cabo Verde se está a tornar cada vez mais atractivo para esses jogadores?
Sim, está a mudar claramente. Já tivemos jogadores que optaram pela nossa selecção e com essa qualificação ainda mais. Mas penso que é um trabalho que tem de se fazer cada vez com mais intensidade, porque nós também entendemos os atletas. Os jogadores que são profissionais, a maioria deles neste caso, nasceram fora do país, e entendo perfeitamente quando optam por outra selecção. Agora, Cabo Verde tem que fazer a sua parte, e não é só desportivamente, é fazer com que o jogador que nasceu fora do país, que também é cabo-verdiano, tenha gosto pelo país, tenha incentivo para vir jogar pelo país dos seus pais, dos avós, mas que tenha condições de trabalho. Quando digo isto não falo só das infra-estruturas desportivas, falo também das condições de viagem. Vou dar um exemplo: temos jogadores que jogam com colegas que são de outras selecções africanas. E os nossos jogadores até são titulares, os outros, às vezes, nem são. Mas quando viajam para vir representar as selecções, os jogadores dos outros países da África viajam em Executiva e os nossos jogadores viajam normalmente. Não digo que não possamos fazer isso, mas sabemos qual é a dificuldade de um jogador que vai ter um jogo e tem de fazer horas e horas de viagens sem conforto. Temos de ter essas situações regularizadas de forma a que os nossos jogadores não tenham desvantagens, porque há sempre desvantagens quando regressam para a sua equipa no meio da semana depois de fazer dois jogos com a selecção. Regressas e na maioria das vezes perdes o lugar na tua equipa por causa do cansaço das viagens.

Crédito da Foto: Bruno da Moura / FCF
Cabo Verde jogou com os Camarões que têm jogadores que jogam em grandes clubes europeus. O que é que falta para que os jogadores cabo-verdianos consigam também chegar a esses palcos, a esses clubes?
A maioria desses jogadores fez a formação fora do país. Eu acho que não tem nada a ver com talento, porque os nossos jogadores têm demonstrado que o têm. Individualmente, têm que ter muito mais confiança. Um jogador camaronês, antigamente, tinha sempre vantagem sobre um cabo-verdiano. É um país que é mais conhecido no mundo futebolístico. Mas vamos chegar lá de certeza, temos jogadores com muito talento. Se continuarem a trabalhar com afinco chegaremos. Assim como conseguimos chegar agora ao Campeonato do Mundo, chegaremos às melhores equipas do mundo também.
Voltando à qualificação quando é que sentiu que era possível chegar ao Campeonato do Mundo?
Bom, eu sempre tive isso claro na minha mente. Mas, depois do jogo contra os Camarões, em que perdemos, o jogo em casa contra a Líbia foi importantíssimo. Depois de termos perdido nos Camarões, naquela semana, houve muita desconfiança, mas o grupo demonstrou claramente que tinha coração, tinha humildade e coragem para acreditar e dar a volta ao resultado menos bom que tínhamos tido nos Camarões. Para mim, o jogo contra a Líbia, em casa, foi o jogo em que a equipa demonstrou claramente que queria mesmo esta qualificação. Depois, foi aguentar os momentos mais difíceis, mas o grupo estava já com muita confiança, com muita união e, principalmente, todos estavam a remar na mesma direcção. Foi nesse momento que eu senti que a nossa qualificação seria real.
Em contraste, a qualificação para a CAN não correu bem. Cabo Verde não se qualificou. O que é que aconteceu?
Eu costumo dizer que depois do grande CAN que fizemos, perdemos, se calhar, um bocadinho de humildade. Mas também houve situações a que não estávamos acostumados. Tivemos duas competições ao mesmo tempo. A qualificação para a CAN teve seis jogos em três meses, com a qualificação para o Mundial também, mais ou menos, nesse espaço de tempo e o nosso país, a nossa estrutura, não estava acostumada, nem tinha condições para suportar três jogos fora do país em três meses, mais dois jogos em casa. Tivemos muitas dificuldades no planeamento, com viagens a cada mês. Não é desculpa, mas não estávamos preparados para aguentar, na altura, todo aquele movimento. Mas também devo dizer que a equipa que se qualificou [para a CAN] foi a que dizíamos que era a equipa menos cotada do grupo: o Botsuana. Temos de dar os parabéns ao Botsuana. Perdemos os dois jogos com eles, foi muito duro também para o grupo, mas acabamos também por aprender muito com aquelas derrotas. A equipa ressentiu-se, mas pôs os pés no chão e, a partir daí, fizemos a nossa qualificação para o Mundial com mais respeito pelos adversários. Foi uma derrota que fez com que a equipa despertasse para o resto do apuramento para o Mundial. Se calhar ainda bem que perdemos aquela qualificação, porque nos concentrámos melhor no apuramento para o Mundial. Se nos tivéssemos qualificado para a CAN, dificilmente conseguiríamos essa qualificação para o Mundial.
Foi jogador de futebol durante muitos anos e foi dos primeiros cabo-verdianos a jogar futebol no estrangeiro. Que diferenças vê no futebol cabo-verdiano desde a sua altura para agora?
Uma diferença abismal. Antigamente os jogadores, individualmente, trabalhavam de forma muito diferente. Agora temos jogadores de muita qualidade. Tínhamos mais dificuldades também em sair do país para jogar fora. Tínhamos só um campo relvado. Jogávamos [em campos de] na terra e para jogar fora do país, na relva, tínhamos mais dificuldades de adaptação. Eu, sinceramente, vejo nos jogadores que temos agora aquela mesma garra de tentar ultrapassar as dificuldades que nós tínhamos, mas com muitas diferenças em termos de condições, principalmente quando jogávamos em Cabo Verde. Tínhamos muita dificuldade em nos adaptar quando chegávamos à Europa. Agora os jogadores começam com relva mais cedo. Os treinadores também estão mais adaptados à realidade europeia, ou do mundo em si, que antigamente era mais fechado. Mas temos orgulho dos treinadores que tivemos no passado no nosso futebol. Obviamente, estamos satisfeitos também com a evolução. Queremos mais. Mas penso que com essa qualificação tudo vai mudar para melhor.
Há pouco falava-me da questão das infra-estruturas. Acha que o Estádio Nacional devia ser um campo de relva natural?
Eu gosto de relva natural, sinceramente. Mas eu sei as dificuldades que temos em relação a isso. Já tivemos aqui. Eu fiz parte da equipa que ganhou a Taça Amílcar Cabral e jogámos em relva natural, tanto na Praia como aqui em São Vicente. Fizemos as meias finais da Taça Amílcar Cabral em São Vicente na relva natural, e conquistamos a Taça na relva natural na Praia. Mas também sei que há dificuldade em relação a isso. Eu preferia, sinceramente, que o campo do Estádio Nacional fosse de relva natural, mas é algo que está acima de mim. Agora, penso que Cabo Verde, para estar, futuramente, em grandes competições internacionais terá que ter melhores condições nos estádios. Temos jogadores que são rápidos, que precisam de campos rápidos. Se tivermos um campo com melhores condições teremos muito mais condições de ganhar a qualquer selecção aqui em Cabo Verde. Dizem sempre que nós jogamos melhor quando estamos fora do país e é claramente por causa da relva. Não há outra justificação que possamos dar. Há muitas coisas que devemos melhorar, e umas dessas coisas devem ser os estádios. Não estou a falar só no Estádio Nacional. Mais estádios devem ter condições para receber os jogos. No caso do Estádio Nacional, em particular, não temos um sistema para regar a relva. Para um país que já se conseguiu apurar para o Mundial, acho que essas situações têm que ser resolvidas. Não sei como, mas teremos que resolver isso para darmos também um passo em relação a melhores infraestruturas, a tudo aquilo que engloba, digamos assim, o desporto.
O público cabo-verdiano tem mostrado alguma volatilidade. A selecção ganha, o estádio está cheio, a selecção não ganha, o público desaparece. Como é que se fideliza os adeptos? Como é que se consegue manter os níveis de público no Estádio Nacional para os jogos da selecção?
Primeiro tenho que agradecer. Sempre tivemos público, pouco, às vezes, mas tivemos sempre e em cada momento difícil. Agora, também temos que ter a consciência de que a maioria dos jogos que fazemos é no meio da semana, segunda ou terça-feira, porque a jornada dupla faz com que sempre se jogue, pelo menos um jogo, no meio da semana. E temos essa dificuldade. Sabemos que o estádio é relativamente longe. As pessoas trabalham, não é fácil. Mas, de qualquer forma, a selecção tem feito tudo para que as pessoas possam estar no estádio. Fizemos uma qualificação em que não sofremos nenhum golo em casa. Em relação à equipa, não há motivo para que as pessoas não vão ao estádio, mas entendemos essa dificuldade de, no meio da semana, ir ao estádio. Agora, nesses últimos jogos houve tolerância de ponto e vê-se que as pessoas querem ir ao estádio se houver condições para ir. Penso que a equipa tem feito tudo e mais alguma coisa para que as pessoas vão. A selecção tem que ser motivo de orgulho de todos os cabo-verdianos. Nós não fizemos isto para nós, fizemos isso para o nosso povo.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1248 de 29 de Outubro de 2025.
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