Começamos pelo tema que tem estado a preocupar os empresários de São Vicente, os transportes aéreos. Eu sei que tem chamado a atenção para o problema várias vezes, mas qual é o retrato real? Qual é o impacto real em São Vicente?
Isso acontece a diversos níveis. Desde logo, temos o problema que temos vindo a apontar desde há algum tempo que se prende com a carga aérea. Há um problema grave, neste momento, de carga aérea. O escoamento dos produtos em direcção ao exterior é outro problema, produtos que antes faziam esse percurso por carga aérea estão agora bloqueados porque a TACV, que fazia a maior parte desse escoamento e com maior capacidade em comparação com a TAP e a preço mais baixo, deixou de voar de São Vicente para fora do país.
Portanto, a TAP não é solução.
Os aviões da TAP não conseguem preencher esse espaço porque não têm as mesmas condições. Além disso, como têm uma taxa de ocupação muito grande o espaço disponível para carga é menor, além que as próprias características dos porões não permitem o mesmo volume de carga. No mercado interno, a Binter não consegue dar resposta porque não tem capacidade de carga e com isso ficamos com este bebé nas mãos. As empresas têm tentado desencascar-se, o transporte marítimo tem servido de paliativo em algumas situações, mas não serve para todos os casos. Por outro lado, temos o problema do próprio escoamento de passageiros. A TAP está neste momento a fazer cinco voos de Lisboa para São Vicente, ocupados na sua esmagadora maioria por turistas, as tarifas são significativamente mais elevadas e com isso a operação da TACV em hub na ilha do Sal não está a servir os interesses dos passageiros desta região que têm necessidade de viajar para o exterior. Se o quiserem fazer na TACV têm de deslocar-se para o Sal, o que implica utilizar a Binter nesse percurso. Não há qualquer concertação de horários de voos entre a Binter e a TACV. Se quiser ir a Lisboa pela TACV tenho de ir na véspera para o Sal, pernoitar no Sal, para poder apanhar o voo para Portugal às 9h. Desse ponto de vista houve um retrocesso de décadas em termos das condições do transporte aéreo nesta região. Por outro lado ainda, é uma região com um grande peso económico. Se pensarmos nas alturas de pico – Carnaval, final de ano, etc. – em que há uma muito maior procura pelas ilhas de São Vicente, Santo Antão e São Nicolau, se as pessoas quiserem voar na TACV têm esse mesmo problema. Vamos ter agora o Baia das Gatas, por exemplo, que tem cabeças de cartaz fortes, se alguém quiser vir passar esses dias a São Vicente tem de ir até ao Sal e depois começam os problemas para a distribuição dos passageiros para as outras ilhas. E passa-se a mesma coisa no sentido inverso.
Mas nunca condenaram o modelo do hub, pelo contrário.
O que acontece neste momento, e temo-lo dito com toda a frontalidade, é que o negócio da TACV no hub do Sal faz todo o sentido do ponto de vista do modelo que se pretende implementar, mas não serve desta maneira ao passageiro com destino e origem no país que não seja o Sal. Não serve os passageiros de São Vicente, não serve os passageiros de Santo Antão, nem de São Nicolau. Como também não servia os passageiros de Santiago, mas para esses há agora uma certa inflexão nessa política, ainda que temporariamente, vai haver voos Praia Lisboa ou Praia Estados Unidos da América. Em relação a esta região isto não serve. Necessariamente, para além daquilo que é o hub, tem de se prever a existência de voos point to point da TACV, principalmente para os destinos mais importantes para os passageiros com origem e destino em Cabo Verde. A existência de um voo directo para Lisboa, ainda que temporariamente como para a Praia, desde São Vicente é absolutamente imperioso. Até porque com esta situação está a criar-se uma situação de desequilíbrio na concorrência das regiões. Porque quem é servido pela TACV beneficia com o acesso directo e quem não é servido fica numa situação de desvantagem do ponto de vista da concorrência. Acho muito bem que haja voos directos Praia-Lisboa da TACV, mas isso também tem de acontecer relativamente a São Vicente. De outra forma, não faz sentido. E depois é difícil que as pessoas não se sintam marginalizadas quando se diz que em relação à Praia há concertação de horários entre a Binter e a TACV e que em relação a São Vicente ainda não se sabe muito bem, que se está a tratar, etc. Mas porque não se faz a nível nacional essa coordenação, se todos os cabo-verdianos têm o direito e a necessidade de se movimentarem. O direito à mobilidade das pessoas é igual em todas as ilhas. Quando falamos de São Vicente, estamos a falar de um aeroporto que serve toda esta região, não é só São Vicente. É preciso repensar urgentemente esta questão dos transportes aéreos, repito, manter a política do hub, explorar isso, mas tem de haver soluções também point to point, nomeadamente para a Praia e São Vicente. Tem de haver necessariamente voo directo da TACV entre São Vicente e, pelo menos, Lisboa, que acaba por funcionar como porta de entrada para o resto da Europa. Isto é algo para nós absolutamente incontornável.
Em relação aos voos internos, já disse que a situação devia ser melhor afinada e que o Estado devia poder influenciar a gestão da Binter. Mas quando o governo anuncia que não está interessado em ser accionista da companhia, quando sabemos que o conselho de administração da Binter é todo preenchido por nomes escolhidos pelo accionista único, acha que isto é um revés a essa possibilidade que o Estado teria de pressionar a empresa na defesa dos interesses nacionais?
Seguramente. Isto é preocupante se não se acautelou essa possibilidade de influenciação por outra via. Não é imperioso que haja maioria de capital numa sociedade para que os accionistas tenham capacidade de influenciar as decisões das sociedades, nomeadamente há a figura clássica da Golden Share, que apesar de ser uma participação minoritária tem atrelada a si um conjunto de direitos especiais que faz com que esse accionista, em determinadas matérias estratégicas, possa influenciar as decisões da sociedade no sentido de não se poderem tomar deliberações sem o voto favorável desse accionista. De alguma forma teria, ou terá, de ficar estabelecido um mecanismo jurídico para o Estado cabo-verdiano poder influenciar, de facto, as acções da Binter. Porque se é verdade que o mercado dos transportes aéreos não está fechado a outros players, a realidade é que neste momento temos um monopólio de facto e esse monopólio consolidou-se com a retirada da TACV das operações inter-ilhas. Quer dizer que o negócio da Binter, naturalmente, teve benefícios, e de que maneira, dessa retirada da TACV. Isso quer dizer que o Estado teria de ter nas suas mãos uma forma de influenciar, no sentido de fazer valer melhor esta circunstância da Binter ter passado a operar em monopólio.
E disseram isso ao governo?
Desde o início. Quando nos abordaram a explicar esta situação e o que se pretendia fazer, nós compreendemos que fazia sentido. A TACV como estava, o sorvedouro de dinheiros públicos em que se tinha tornado, se continuasse assim iria arrastar o país atrás. Era necessário estancar essa situação. E não sendo a solução óptima, era aquela que no imediato dava garantias de, por um lado, continuar a ter as ligações entre ilhas e, por outro, de estancar a hemorragia financeira da TACV. No entanto, duas coisas têm de funcionar, e nós dissemos isso: primeiro, essa capacidade de influenciar as decisões da Binter – o acordo que teria de ser assinado entre o Estado e a companhia aérea – e, em segundo, a regulação, que é outro aspecto absolutamente essencial. E regulação não só no aspecto puramente técnico, mas regulação do negócio em si, do ponto de vista da protecção dos interesses do consumidor. Isto também é regulação.
Mas a regulação já veio dizer que não pensa ter qualquer intervenção.
Era exactamente isso que ia dizer a seguir. Temos agora a regulação a vir dizer que não pretende intervir, que não quer alterar o que está regulamentado em termos de tarifas máximas, etc., só que uma coisa é um regulamento feito em situação de concorrência, em que tendencialmente os preços são pressionados para baixo. Quem está sozinho não precisa de fazer isso, e tendencialmente estará a apontar para os preços máximos, não é? Algo tem de ser feito. Quais são as justificações? Dizem-nos que se fizermos a reserva com antecedência de um mês, ou dois, conseguimos comprar viagens mais baratas, mas em que circunstância é que se consegue fazer um planeamento de viagens a 30 ou a 60 dias? Eu, que viajo constantemente inter-ilhas, não consigo pensar numa reserva com todo esse tempo, há reuniões que aparecem na Praia, ou no Sal, tenho de deslocar-me e é claro que já não consigo tarifas mais vantajosas e tenho de viajar a 20 contos entre São Vicente e Praia. Alguma coisa tem de ser feita neste sentido porque os consumidores estão a ser prejudicados. Noutros mercados onde a Binter opera há subsidiação, e em grande. Algo tem de ser feito para que a mobilidade dos cabo-verdianos, internamente e internacionalmente, seja preservada. Ainda vamos a tempo, mas temos de ter sinais. E neste momento, a questão que se coloca é que não se sabe muito bem como é que as coisas estão a ser encaminhadas. E somos um país arquipelágico.
É possível contabilizar os prejuízos?
Contabilizar prejuízos é difícil, temos as impressões que nos são transmitidas pelos empresários, mas quantificar é difícil.
Mas pode afirmar-se que foi um golpe duro para os empresários de São Vicente?
Para aqueles que têm grande dependência do transporte de carga aérea foi difícil. Se formos ver as empresas que estão no Parque de Lazareto grande parte delas fazia as suas exportações por via aérea e estão a passar por grandes dificuldades.
Até porque têm prazos muito apertados.
Exactamente, e há penalizações que sofrem dos clientes quando não cumprem. Às vezes o cliente pura e simplesmente desiste da encomenda e quando é assim o prejuízo é enorme.
Como é que a Câmara reage às recentes declarações dos deputados do MpD eleitos por São Vicente quando estes disseram, no fundo, que os empresários têm de aguentar por mais algum tempo e que se está a trabalhar nas soluções? Ou seja, basta pedir paciência? Os empresários continuam a poder esperar por decisões?
Os brasileiros costumam dizer que pimenta no olho do vizinho é colírio. E é um pouco isso, não basta pedir paciência, porque os empresários, pelo menos nesta região, já estão a ser pacientes há muitos anos. E só uma enorme capacidade de resiliência e de resistência é que tem levado a que eles ainda continuem. Nós temos ainda plena confiança nas boas intenções, nos esforços que este governo tem estado a fazer no sentido de se criarem as condições, na melhoria do ambiente de negócios, assinou-se há pouco tempo o protocolo para o financiamento ao sector privado, tem havido todo um esforço de mobilização de financiamentos, uma outra postura mais business friendly, inclusive uma outra postura em termos fiscais, mas os resultados concretos de tudo isto é que precisam de acontecer de forma mais acelerada. Veja a questão do financiamento, o protocolo foi assinado, mas agora…
Mas agora, como já disse, os bancos continuam a ser conservadores.
Pois. Uma das razões que me levou recentemente à Praia foi exactamente uma reunião com a PRO EMPRESA para estudarmos a melhor forma de dinamizar este processo, ou seja, as pessoas têm de poder chegar aos bancos, mostrar um projecto, pedir um financiamento ao abrigo das verbas disponibilizadas ao sector privado através desse protocolo, com a bonificação de juros, com as garantias da PRO GARANTE, etc., e ter um processo que seja standard, que se possa controlar, enfim, é preciso operacionalizar tudo o que se está a procurar pôr de pé. E aí, só pedir paciência, não chega.
O que é preciso então?
Acções rápidas. Precisamos de vitórias rápidas. As pessoas têm de sentir, têm de ver as coisas a acontecer no dia a dia. Já tínhamos de ter mecanismos para que os empresários já estivessem a aceder a esse financiamento. Criou-se o quadro, assinou-se o protocolo, mas agora falta essa pró-actividade.
Aliás, as duas câmaras de comércio, Barlavento e Sotavento, estão a pensar criar uma unidade com esse objectivo.
Sim, será uma unidade de mobilização de recursos financeiros, um projecto inicialmente da Câmara do Comércio do Barlavento, mas que foi assumido pelas duas câmaras, com o apoio do Banco Mundial, e o objectivo é precisamente ter uma unidade com meios humanos e técnicos que se dedique a identificar, nacional e internacionalmente, fontes de financiamento da mais diversa índole e a partir daí ajudar as próprias câmaras do comércio e os empresários a formatarem os seus projectos para irem ao encontro dessas fontes de financiamento. O que vamos fazer é apoiar os empresários para que os seus projectos obedeçam aos parâmetros exigidos por essa fonte de financiamento e ir seguindo o processo até conseguir chegar a esse mesmo financiamento. Eventualmente, dotar também as câmaras de comércio para que estas possam ir à procura de financiamento para determinados projectos dessa mesma câmara – por exemplo, um programa de apoio a determinada fileira de negócio – e a partir daí ser a câmara a gerir, disponibilizar, o financiamento para aqueles que sejam elegíveis no quadro desse programa. Porquê? Porque temos de encontrar alternativas. Só o sistema bancário não é suficiente para o tipo de tecido empresarial que temos no país, muitas micro empresas, muitas pequenas empresas, estamos a falar de 90 por cento do nosso tecido empresarial. As grandes empresas, geralmente, não têm grandes problemas de acesso ao financiamento, mas o médio, o pequeno, o micro empresário, necessitam. E são eles que dão emprego, que geram rendimento. Temos de trabalhar a pensar neles.
Aliás, o ministro das finanças tem dito várias vezes que são as pessoas que criam o desenvolvimento e o crescimento, não o Estado. Faltam então as partes das políticas?
Sim, políticas concertadas. Ainda estamos numa fase de, entre aspas, alguma instabilidade institucional. Há instituições que foram reformuladas, outras foram criadas de novo visando políticas muito concretas, mas que ainda estão em fase de consolidação, de estruturação, de estabilização, antes de poderem começar a dar aquilo que é suposto darem, a cumprirem o seu papel. Urge também estabilizar todo o quadro institucional ligado à promoção das actividades económicas.
Mas entretanto já se passaram dois anos.
Pois. Essa é uma questão que é também muito importante, porque é preciso estabilidade, é preciso que as instituições saibam o que devem fazer, quais são os seus poderes, as suas competências, que meios têm para poderem trabalhar, para poderem delinear estratégias e, a partir dessas estratégias, terem projectos concretos, que façam as coisas funcionar.
São Vicente sempre se debateu com um problema de desemprego, e sabemos que o desemprego só se resolve com mais investimento. Tem havido mais investimento na ilha nos últimos tempos? Nota-se alguma diferença?
Tem havido alguns pequenos investimentos, e quando digo ‘tem havido’ é no sentido da concretização. Por exemplo, ao nível da hotelaria vão-se construindo pequenas unidades, alguns já entraram em funcionamento, outros estão em construção. Nota-se alguma coisa ao nível da imobiliária em geral, que tem dado alguns sinais de retoma, ainda que tímidos. Mas o que há mais neste momento são projectos. São credíveis, acreditamos que vão concretizar-se, alguns já estão na fase final da engenharia financeira, e outros, por causa da confiança que se criou e que, em grande parte, ainda se mantém, estão em fase de preparação. Nós esperamos que concretizando-se todos os instrumentos que se querem pôr de pé, poderão estar criadas as condições para um efectivo levantar da ilha. Mas não se pode dizer que tenha havido uma alteração substancial da realidade quando comparado com dois anos atrás.
E ainda por cima a ilha está menos competitiva, voltando à questão do transporte.
Desse ponto de vista, estamos piores. Desse ponto de vista, a competitividade da ilha diminuiu. Temos sempre dito que essa questão dos transportes, para o país no seu todo, e principalmente para esta região em particular é absolutamente incontornável. É uma região com muito potencial, mesmo em termos de produção agrícola, avícola, e que pode fornecer ao resto do país e aos destinos turísticos. Temos empresas a fazer um esforço grande em matéria de certificação, mas se não tivermos essa capacidade instalada em termos de transportes é um estrangulamento e o potencial da ilha fica por realizar. Esperamos que o concurso dos transportes marítimos tenha um desfecho rápido e feliz e que o operador que eventualmente venha a ser escolhido possa, rapidamente, pôr de pé todos os meios que lhe são exigidos nos termos de caderno de encargos e podermos começar a dispor de transporte marítimo confiável, regular, de qualidade e com custos justos, que levem em consideração a nossa realidade. O mar equivale às nossas auto-estradas e temos de criar as condições para que o mar nos una. E sem se resolver esse problema, a competitividade desta ilha e desta região está sempre posta em causa.
Aliás, uma das questões que mais penaliza São Vicente é o mercado exíguo e sem transportes multiplica-se essa dificul-dade.
Com certeza. Vamos ficando cada vez mais confinados aos estreitos limites da região. Neste momento nem se pode contar com o mercado de São Nicolau porque as ligações ainda são tão precárias que acaba por ser quase irrelevante. Além disso, e infelizmente, São Nicolau é uma ilha que vem pendendo população continuamente e é preciso medidas que revertam essa tendência, até porque é uma ilha com um potencial extraordinário, do ponto de vista agrícola, como também das pescas e do turismo, é uma ilha belíssima, que pode oferecer mar, montanha, cultura e com as dificuldades de acesso por via aérea e marítima é uma ilha que não tem como realizar o seu potencial. Por isso, transporte, transporte, transporte.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 866 de 4 de Julho de 2018.