Um dos temas, digamos assim, da conferência de Marraquexe foi, “passar de uma visão para uma acção”. Do que precisamos para começar essa acção?
Penso que o que precisamos é de fazer o que já estamos a fazer. Precisamos de continuar a funcionar desta forma integrada. Num segundo nível, precisamos de ter as infra-estruturas e os processos correctos nos lugares certos, para sermos capazes de dar o salto em frente. Se olharmos para a área de comércio livre africana [AfCFTA – The African Continental Free Trade Agreement], como exemplo, vemos que a estamos a construir. Já falávamos dela deste os anos 80, já estava no Plano de Acção de Lagos [assinado em Abril de 1980 pela Organização para a União Africana – entidade que funcionou entre 1963 e 2002 – já na altura defendia a auto-suficiência do continente e o aumento das relações comerciais entre os países africanos], se olharmos para o Tratado de Abuja de 1991, está lá a mesma ideia [assinado em Maio de 1991, estabelecia a Comunidade Económica Africana e desenhava o quadro da integração continental], a intenção de criar um mercado maior, a vontade de promover o comércio inter-regional, mas não fomos capazes de o concretizar. Passaram quase 30 anos, mas agora estamos lá. Voltando à pergunta, do que precisamos, primeiro, construir o quadro certo, termos os países necessários a ratificar a AfCFTA [falta apenas mais uma ratificação para formalizar a Área de Comércio Livre Continental]. A segunda fase será, como operacionalizar a AfCFTA? Como asseguramos que todos ganhem com ela? Como a usamos para criar um melhor ambiente para os nossos investimentos? Como criamos um melhor ambiente para que as nossas empresas possam ir para outros países do continente? É assim que passaremos da acção para a política para a operacionalização total.
Mas como referiu, uma área comum para o comércio não é uma novidade, começou há mais de trinta anos a ser falada. O que será diferente desta vez?
Por que nunca aconteceu na história da União Africana qualquer acordo ou qualquer convenção ser terminada no espaço de um ano [o AfCFTA foi lançado em Março de 2018, em Kigali, Ruanda], nunca aconteceu! O tempo médio é de cinco anos. Agora estamos a consegui-lo em um ano, o que mostra o comprometimento. Temos 21 assinaturas e há outros países a discutir o acordo nos seus parlamentos para o assinar. Antes de Junho é provável que tenhamos 25 ratificações, isso mostra-nos que os líderes africanos perceberam a urgência e sem que alguém esteja a pressioná-los. Ninguém a dizer “se não assinar isto não damos qualquer ajuda”, ou “se não assinar isto não há dinheiro”, ninguém o está a fazer. Isto é um processo que está a ser conduzido por africanos e nota-se que há um comprometimento no que se quer que aconteça. Inclusive, a sociedade civil está empenhada na discussão do AfCFTA, o próprio sector privado está a dizer que é altura de avançarmos, já chega de conversa. O que estamos a fazer, neste momento, dentro da UNECA é apoiar a capacidade dos países para poderem aproveitar o AfCFTA, a ajudá-los nas suas estratégias nacionais para beneficiarem do mercado comum, para que não haja vencedores e perdedores, todos têm de ganhar com o processo.
Acha que existe esse empenho da sociedade civil porque o crescimento do PIB em África não tem significado mais empregos e menos pobreza?
Bem, o crescimento do PIB não conta a história toda. É verdade que há países com grande crescimento do PIB que têm altos níveis de pobreza. A Nigéria é a maior economia africana, por exemplo, e tem um alto nível de pobreza. Mas como disse, não conta a história toda, há outros indicadores para os quais temos de olhar para determinar a qualidade de vida das pessoas. Penso que precisamos de ir além de alguns dos indicadores que analisamos actualmente, mas eu penso que o copo está mais meio cheio do que meio vazio, estamos a progredir e é nisso que nos devemos concentrar. Vejamos onde estava África há 20 anos e onde está hoje. Fizemos progressos consideráveis. O primeiro estádio na promoção de desenvolvimento económico é a estabilidade política, essa é a base e penso que também aí avançamos bastante e os nossos líderes estão a levar isso muito a sério. Até 2020 não haverá mais conflitos neste continente, esse é o princípio. Assim que isso estiver consolidado, podemos construir sobre isso. Temos todos os recursos, temos a capacidade, temos o capital humano para sermos capazes de liderar o processo. E assim que criarmos o ambiente certo, podemos virar-nos para a nossa diáspora e dizer-lhes para voltarem para casa. Veja o que aconteceu na Índia, o seu progresso económico foi alimentado pela diáspora que regressou para transformar a Índia, que hoje domina, por exemplo, na tecnologia digital. Se conseguirmos criar esse ambiente no continente, se conseguirmos ter estabilidade, previsibilidade, teremos o início de uma nova era económica. E é por isso que toda a gente está a correr para África, porque a nova África é a nova fronteira de desenvolvimento. E isso vai acontecer.
Outro tema recorrente desta 52ª sessão de ministros das finanças de Marraquexe é que terão de ser os países africanos a financiar o seu próprio desenvolvimento. É esse o único caminho?
Absolutamente. Se olharmos para o relatório escrito por Paul Kagamé [Presidente da República do Ruanda] para a reforma da União Africana esse é o tópico central. Se não financiarmos o nosso desenvolvimento não nos poderemos unir e o mínimo que podemos fazer é financiar as nossas instituições regionais. Houve alguma tensão, houve alguma aspereza entre os líderes, mas finalmente chegaram a um princípio de acordo que 2 por cento das importações servirá para financiar a União Africana (UA). Se a colecta de impostos for bem feita, a projecção é que a UA conseguirá financiar todas as suas actividades por si só, sem precisar de qualquer financiamento externo. Se o conseguir, estará em condições para ser um líder da agenda de desenvolvimento do continente.
Outro tópico é que África precisa de crescer três vezes mais para conseguir alcançar todos os seus objectivos de desenvolvimento, mas só tem 11 anos para o conseguir. Será possível?
Penso que é possível, mas temos de pôr esta questão no contexto global. A economia global está a desacelerar. A economia europeia está a crescer muito devagar. A economia americana está igualmente lenta. Por isso, temos desafios, mas também oportunidades. Entre os desafios está o facto de não podermos ser os únicos a crescer a dois dígitos. Por outro lado, temos aqui uma janela. Muitos dos países estão a avançar para a era pós-industrial, como a China, e nós podemos ocupar esse lugar da indústria, porque o mundo vai precisar sempre de indústria, vai precisar sempre de produção e alguém vai ter de fazer esse trabalho.
Mas em África estamos a assistir à passagem da agricultura directamente para os serviços.
É por isso que muitas entidades regionais estão a manter a tónica da industrialização. A SADC [Southern Africa Development Community – Comunidade de Desenvolvimento da África Austral] tem uma política industrial. A COMESA [Common Market for Eastern and Southern Africa – Mercado Comum da África Oriental e Austral] tem uma política industrial. Nós, na UNECA, temos uma agenda para a industrialização, por isso, toda a gente fala disso e os líderes começam a consciencializar-se sobre o tema. O que precisamos de definir é como é que vamos apoiar os nossos empresários nacionais, fazê-los crescer, por que serão eles que criarão os postos de trabalho e a sustentabilidade do nosso desenvolvimento futuro. Os investidores externos, quando as coisas começam a correr mal, vão-se embora. Fecham as fábricas, fecham as lojas e apanham o avião para o próximo destino mais lucrativo. Mas quando temos empreendedores nacionais eles ficam. E mesmo que mudem continuam a trazer os lucros para casa. É o que acontece hoje com a empresa sul-africana MTN [companhia multinacional de comunicações, sedeada em Joanesburgo e a 11ª maior operadora do mundo], está espalhada por todo o continente e fora do continente, mas a sua base continua na África do Sul. Todo o lucro regressa à África do Sul. Tem de ser esta a lógica.
Quer dizer que o sector privado africano também tem de fazer a sua parte, porque há ainda muitos privados que sobrevivem à sombra do sector público.
Sim, eles têm de mudar, mas nós também temos de os ajudar a crescer. O governo tem de desenvolver estratégias que os ajudem a crescer. Dou o exemplo da Coreia do Sul. Muitas das empresas sul-coreanas que hoje celebramos: Samsung, Hyundai, são negócios familiares. Mas se analisarmos a situação de perto, percebemos melhor, são companhias glorificadas pelo governo e incentivadas. Quando o vice-presidente da Samsung foi acusado de corrupção deram-lhe uma sentença, mas não o prenderam, porque se ele fosse para a cadeia haveria consequências para a economia. Claro que não estou a dizer que devemos permitir a corrupção, mas sim a explicar que tipo de política é posto em prática para apoiar estas empresas. Em África já provamos que temos a capacidade de ter também grandes empresas. Veja-se o caso da nigeriana Dangote [empresa de cimento] que já tem fábricas em dezasseis países do continente. Dezasseis! Mostra que podemos fazer. Do que precisamos é de quinze Dangote neste continente, é só isso que precisamos. Vamos ter políticas que permitam criar essas grandes empresas. E o que muita gente não sabe é que a Dangote teve apoio do Estado. Houve uma política direccionada para criar multinacionais na Nigéria. Deliberadamente, o governo vendeu bens do Estado aos empreendedores nacionais. Vendeu bens do Estado! Para que eles gerissem. E o Aliko Dangote foi um dos beneficiados [Aliko Dangote é o presidente e director-geral do grupo empresarial]. Na verdade, quem geria a indústria do cimento na Nigéria era o Estado e as coisas não estavam a correr bem, por isso o Presidente da Nigéria falou com o Aliko Dangote e perguntou-lhe se podia gerir essa indústria e ele disse que sim. E então venderam-lhe a fábrica, foi assim que tudo começou. O que o ALiko Dangote percebeu é que era um negócio de muito dinheiro, porque África, essencialmente, importava o cimento que precisava. E foi isso que ele pensou, por que razão tinham os países africanos de importar cimento fora do continente? E viu a imensidão do mercado que podia fornecer. E começou a ganhar dinheiro, muito dinheiro. Por isso é que eu digo que as oportunidades são ilimitadas neste continente. Precisamos de ser capazes de encontrar essas oportunidades e precisamos de políticas que apoiem quem procura essas oportunidades. Deixa-me dar outro exemplo da Coreia do Sul. Quando lá estive, ao falar com os decisores políticos sul-coreanos, o que eles me disseram foi, se apoiamos as nossas star-ups, com muito financiamento, e se em cinquenta vinte vingarem isso para nós é um caso de sucesso. Porque essas vinte vão crescer e criar um efeito multiplicador. Por isso, se depois apoiarmos o crescimento dessas vinte, todos os anos, em cinco anos temos cem empresas e cada uma delas criou empregos.
O que me está a dizer é que em África precisamos de aprender a falhar?
Sim. Sim. Porque em África, se apoiarmos cinquenta e vinte tiverem sucesso dizem-nos que falhámos. Mas o mundo empresarial não é aritmética. E o que acontece em África se vinte em cinquenta tiverem sucesso? OS decisores políticos vêm logo dizer para pararmos essa agenda porque foi um fracasso. É por isso que precisamos de orientações estratégicas que nos digam para onde queremos ir e o que queremos fazer. Assim, se alguém nos disser que falhámos, podemos contra-argumentar que não é esse o nosso termo de comparação, que não é cinquenta em cinquenta, mas vinte em cinquenta ou quinze em cinquenta. Mas nós não, apoiamos cinquenta e queremos que no dia seguinte quarenta e nove tenham sucesso (risos). Não é assim que as coisas acontecem. Porque os negócios vivem num ambiente de risco, de muito risco, e esse ambiente é extremamente duro. E também temos de competir com as firmas a nível global. Por isso, temos de ter estratégias. Veja-se o caso das Maurícias, que é um óptimo exemplo de ter estratégias.
Nas Maurícias planeiam com uma década de antecedência.
Exactamente. E hoje são um hub financeiro global. Estão agora a apostar no digital. E a próxima fase é a estratégia para África, ter negócios das Maurícias a operarem através do continente. Não só a operarem como a colaborarem com os outros países africanos para acelerarem o seu desenvolvimento. Portanto, tudo depende da visão dos decisores políticos. Eles é que devem saber para onde querem ir.
Acha que os decisores políticos têm de ter a consciência que têm aqui a oportunidade de uma vida?
Sim, têm de ser eles a liderar e a ter as melhores decisões. Têm de saber construir laços profundos com o sector privado. Ouvi-los antes de tomar qualquer decisão. Temos de derrubar as barreiras entre o público e o privado. Tem de haver interacção e trabalho em conjunto.
Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 905 de 03 de Abril de 2019.