Paulino Dias: “Os benefícios da reconversão da dívida devem ser investidos em políticas que resultem em crescimento económico sustentável a longo prazo”

PorJorge Montezinho,10 jul 2021 13:57

A seguir à crise da pandemia da COVID-19, o mundo será sacudido por uma outra crise – a crise da dívida pública
A seguir à crise da pandemia da COVID-19, o mundo será sacudido por uma outra crise – a crise da dívida pública

Há um ano, o ministro das finanças defendeu uma “reconversão” da dívida de 600 milhões de euros a Portugal em “investimentos estratégicos” no arquipélago, em “condições” que sejam “do interesse” de ambos os países. Quase doze meses depois, em Maio de 2021, o ministro dos negócios estrangeiros, depois de uma visita oficial a Lisboa, anunciou que Portugal mostrou abertura para negociar a dívida do país, com conversão de uma parte em investimentos. A troca de dívida por investimento é um instrumento que foi usado pela primeira vez no século XIX, esteve na ribalta no início da década de 80 do século XX e voltou a ser falado no início do século XXI, com o FMI e o Banco Mundial, recentemente, a encorajar o seu uso. O Expresso das Ilhas falou com o gestor e consultor Paulino Dias, CEO da PD Consult, sobre este mundo complexo da reestruturação das dívidas.

Que opinião tem sobre este tipo de instrumento?

Falando em termos muito gerais, este tipo de operação – troca de dívida por investimentos – é uma operação normal, que pode ser negociado entre uma parte devedora e uma parte credora, podendo revestir-se de modalidades diferentes. No mundo corporativo, por exemplo, não são incomuns as operações de troca de obrigações (dívidas) por acções (investimento). Em Cabo Verde, um caso relativamente recente ocorreu entre a Electra e o INPS, em que dívidas da primeira para com o segundo foram convertidas em acções (investimento), passando o INPS a ser um dos sócios da ELECTRA. O problema – e o risco – está (i) no contexto em que a operação ocorre, (ii) no poder negocial das partes e (iii) nas condições negociadas ou impostas (quando há desequilíbrios acentuados de poder a favor de uma das partes). É pelas lentes destas três dimensões que devemos analisar esta possibilidade de dívida de Cabo Verde a Portugal ser convertida em investimento. Relativamente ao primeiro ponto, o contexto é claramente pouco vantajoso para Cabo Verde: nível elevado de dívida pública, com as pressões inerentes; um leque de empresas públicas (que o Governo já anunciara que seriam privatizadas) em situação financeira difícil, salvo algumas poucas excepções, e, portanto, de valor “de venda” abaixo do que seria desejável; contexto internacional de elevada percepção de risco e retracção do investimento (menor apetite de investidores para privatizações). Este quadro diminui o poder negocial de Cabo Verde, podendo levar a condições menos vantajosas para o país em eventual negociação das condições da conversão. Um dos riscos aqui é, claramente, Cabo Verde ceder activos (investimentos) a preços muito baixos. Apesar de o Governo não ter detalhado que investimentos seriam cedidos a Portugal no quadro de reconversão da dívida, é muito provável que estejamos a falar de privatização de empresas públicas. E repare-se que algumas das empresas públicas que constam da lista a privatizar são empresas que operam em mercados de monopólio natural, o que requer negociações bastante cuidadas, contratos parassociais, de venda ou de concessão robustos e quadros regulatórios eficientes para se proteger de riscos futuros e se defender o interesse público.

Começar as negociações sobre a reconversão da dívida deveria ser uma prioridade para os países em desenvolvimento?

Acredito que sim. A seguir à crise da pandemia da COVID-19, o mundo será sacudido por uma outra crise – a crise da dívida pública. O espaço de negociações será mais limitado (a maior parte dos países – incluindo os credores - está em situação difícil). É importante se salvaguardar, contudo, que os benefícios da reconversão da dívida sejam “investidos” em políticas que resultem em crescimento económico sustentável a longo prazo.

Acha que deve ser esta a próxima relação entre países, no cenário internacional, no sentido de encontrar mecanismos inteligentes e inovadores para o financiamento?

A concessão de empréstimos a Estados (dívida pública) tem vindo a emergir cada vez mais como instrumento de poder e influenciação na geopolítica mundial. Basta ver as estratégias que, por exemplo, países como a China vêm adoptando neste domínio: concessão agressiva de empréstimos concessionários para financiar sobretudo infraestruturas estratégicas em países em desenvolvimento, em que as próprias infraestruturas garantem o financiamento. Ou então, a troca de empréstimos por commodities (como o petróleo, no caso de Angola, por exemplo). A concessão de empréstimo a Estados (dívida pública) vai deixando de ser uma operação meramente financeira – visando ganhar juros -, para passar a ser também uma estratégia de influenciação. Neste contexto, é requerido sobretudo de países em vias de desenvolvimento, abordagens mais cautelosas e instrumentos mais inovadores para financiar os investimentos de que precisam. No caso concreto de Cabo Verde, penso que um dos caminhos que o país poderia explorar deveria ser como envolver a nossa diáspora na estruturação de soluções de financiamento ao Estado – como fez, por exemplo, Israel há muitos anos, com os seus “diáspora bonds”. Precisamos reflectir sobre isto.

Há peritos que falam mesmo em motivos éticos e morais para a reconversão da dívida, tais argumentos podem ser usados nas relações internacionais de credor/devedor?

É uma questão complexa. A dívida resulta de um contrato estabelecido entre partes, assume-se que de livre e espontânea vontade. A haver questões éticas, morais ou de legalidade a considerar ou a acautelar, penso que devem ser tratadas antes da contratualização da dívida, e não depois. Sob pena de se minar relações que devem se basear na confiança, previsibilidade e credibilidade das partes.

Na questão da troca de débito por ambiente, este acordo reduz a dívida de um país em desenvolvimento em troca do compromisso de protecção ambiental por parte do país devedor, ou de usar essa poupança para a adaptação e a resiliência às mudanças climáticas. Pode ser uma das alternativas que Cabo Verde deve pôr em cima da mesa?

A questão da protecção ambiental e da adaptação às mudanças climáticas deve ser uma prioridade absoluta para um país frágil como Cabo Verde, sem estar apenas atrelada a operações de financiamento do seu desenvolvimento ou de reconversão de dívida. Dito isto, efectivamente existem actualmente diversos instrumentos financeiros associados à protecção ambiental que penso Cabo Verde deveria estudar com interesse. Por exemplo, o mercado de créditos de carbono. No entanto, estes instrumentos não reúnem consenso, quer quanto aos princípios que lhes estão subjacentes, quer quanto aos processos e instrumentos da sua efectivação, quer ainda quanto aos seus impactos. Assim, é uma questão de se estudar o que existe, avaliar as vantagens e os riscos, internalizar as decisões (e evitar que no-las sejam impostas de fora para dentro) e ter a disciplina e foco necessário para a materialização das escolhas que se fizer neste domínio.

Defenderia outra solução para resolver a tripla crise da dívida, alterações climáticas e perda da biodiversidade diferente desta reconversão da dívida?

Neste contexto, seria temeroso da minha parte assumir uma posição fechada sobre esta matéria. Por uma razão bem simples: ninguém sabe quanto tempo durará esta crise decorrente da COVID-19 e seus impactos sobre a evolução da dívida pública. Reflectindo, contudo, em termos de cenários, diria que num cenário em que a crise pandémica fosse controlada a curto prazo, a recuperação da economia ocorresse num horizonte curto e de forma acelerada e sustentável (reduzindo assim o rácio de dívida pública em relação ao PIB), uma alternativa seria estruturar, preparar e lançar o programa de privatizações, de forma competitiva e não por negociação directa, quando as condições para o efeito estivessem mais favoráveis (em termos de interesse de investidores), usando então parte do dinheiro arrecadado para reduzir a dívida. Isso permitiria, a meu ver, melhor posição negocial do Governo, maior nível de “internalização” das decisões de política relacionadas com as alterações climáticas e protecção da biodiversidade (“desacoplando-as” das negociações de reconversão da dívida em que a posição negocial do Governo tenderia a ser menor), entre outras vantagens.

Outra possibilidade é a troca da dívida por desenvolvimento, por exemplo, usar a poupança da dívida na educação. Será importante dar a ver as vantagens para os credores? Por exemplo, desta maneira Cabo Verde conseguiria resolver um dos problemas apontados pelos investidores estrangeiros, a falta de formação.

É também uma possibilidade que, em outros contextos, no passado, foi amplamente usado em processos de reconversão e/ou perdão de dívida dos países menos desenvolvidos. Tem as suas vantagens evidentes, que é libertar recursos para investimentos em sectores estruturantes. O risco associado a esta abordagem é a “externalização” das decisões de prioridades de investimento. Isto é, o risco de serem os credores a definirem ou a imporem quais devem ser as prioridades de investimento público. O que, no limite, pode levantar preocupações relacionadas com questões de soberania e legitimidade de Programas de Governo influenciadas por outros centros de decisão (externos, dos credores), que não a vontade popular expressa nas urnas.

Estas trocas podem ser atractivas para o país credor porque, desta forma, pode abrir novas parcerias de colaboração? (principalmente se esse credor perceber que muito dificilmente terá o dinheiro de volta).

Evidentemente. Mas volto ao que referi na minha primeira resposta: a chave (ou o risco) está na negociação das condições da reconversão. É aqui que o Estado devedor deve dotar-se de competências a nível de diplomacia e capacidade negocial, a nível de avaliação do valor de activos, a nível de estruturação de engenharias financeiras, entre outros. Porque os países credores tendem a estar melhores preparados para este tipo de negociações, o que pode resultar em assimetrias de capacidade negocial potencialmente desfavoráveis aos interesses dos países devedores.

Concorda que esta não é a altura para as nações se verem forçadas a trocar os seus cidadãos e o seu futuro pelo pagamento de dívida externa?

A resposta mais simplista seria concordar que, efectivamente, esta não é altura. O que nos levaria, por imperativo de lógica, a defender, consequentemente, que os países devedores deveriam então suspender unilateralmente o pagamento das suas obrigações para com os credores (isto é, entrar em “default”). Ora, a questão é muito mais complexa e deve ser vista numa perspectiva mais abrangente. Um país que decide unilateralmente deixar de cumprir as suas obrigações financeiras para com os seus credores perde credibilidade no plano internacional. As implicações podem ser profundamente negativas: dificuldades de aceder no futuro a mercados financeiros (empréstimos) para financiar o seu desenvolvimento, risco de penalidades contratuais ou outras, etc. Pelo que a minha opinião é que este não é um caminho para o qual se deve enveredar de ânimo leve.

É importante, por outro lado, ser transparente com os cidadãos nacionais e dizer-lhes que nada disto é automático, mas sim que são negociações complexas, que muitas vezes se prolongam entre 2 a 4 anos?

Aqui, absolutamente de acordo. Exige-se dos Governos o máximo de transparência para com os seus cidadãos. Por imperativo de dever, mas também por imperativo de ética. Salvaguardando-se, naturalmente, excepções ditadas pela própria natureza dos processos negociais, em determinados momentos ou etapas.

Uma última questão. Segundo os peritos, é fundamental ter negociadores experimentados para conseguir estas reconversões. Isso pode ser um problema para os países em desenvolvimento e para Cabo Verde em particular?

Com certeza. Referi a este ponto numa das respostas anteriores: é absolutamente vital que os países devedores detenham (ou contratem) competências sólidas nos diversos domínios requeridos pela complexidade de tais processos. E, o que é mais importante ainda, que os actores e decisores no plano político, tenham a responsabilidade de escutar os níveis técnicos. Em Cabo Verde temos, infelizmente, assistido a muitas situações em que claramente o discurso e os compromissos no plano político acabam por sobrepor-se (ou ignorar) as recomendações no plano técnico, o que tende a resultar em decisões deficientes ou soluções mal-estruturadas. Esperamos que lições sejam aprendidas do passado.

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Autoria:Jorge Montezinho,10 jul 2021 13:57

Editado porJorge Montezinho  em  24 abr 2022 23:20

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