“Neste momento, o armador está apenas a tentar sobreviver”

PorJorge Montezinho,12 fev 2023 16:07

João Lima, presidente da APESC
João Lima, presidente da APESC

O sector das pescas constitui um pilar estratégico para o desenvolvimento económico e social de Cabo Verde. Tem contribuído para a segurança alimentar da população, sendo considerado a principal fonte de proteína animal do país. Assegura um número considerável de postos de trabalho directos e indirectos. O sector é ainda responsável por uma fileira de negócios que representa mais de 80% das exportações de bens de Cabo Verde. Mas é também, nas palavras do presidente da Associação dos Armadores de Pesca de Cabo Verde (APESC), um sector ao qual os políticos não dão a devida atenção. Na semana em que o ministro da tutela vai ao Parlamento, o Expresso das Ilhas falou com João Lima, líder da APESC.

Que retrato podemos fazer, actualmente, do sector das pescas?

O retrato do sector das pescas, neste momento, diria que é suficiente. Porque ainda temos muito por fazer. Estamos numa fase de transição do sistema de formação dos actores das pescas, e refiro-me à implementação, na sua plenitude, da Escola do Mar, que precisa de formar mestres, marinheiros, novos pescadores. Temos de dar o salto de criação de mais complexos de pesca [Em termos de infraestruturas portuárias, há em Cabo Verde 5 cais de pesca, 9 desembarcadouros, 9 arrastadouros e 12 estruturas cacifo (*)]. Temos de dar o salto da semi-industrialização para as embarcações industriais, porque temos uma vasta Zona Económica Exclusiva e é por isso que dou a nota suficiente. Estou no sector das pescas desde 2011, assumi a APESC em 2015, e temos discutido e debatido as mesmas coisas com os governos que passaram nos últimos 10 a 15 anos. Penso que já é hora de resolvermos os problemas do sector – e falo do meu, o semi-industrial – se não, não vamos conseguir chegar lá. Ainda temos muito trabalho pela frente para chegarmos ao bom, porque chegar à excelência leva ainda muitos anos.

Disse-me que já falaram com governos diferentes e mesmo assim não conseguem resolver os problemas. Acha que o sector responsável por 80% das exportações cabo-verdianas não tem a atenção que merece?

Exactamente. Temos tido governos que falam muito do sector, hoje todos sabem que Cabo Verde é um Estado oceânico, que é 99% mar, mas precisamos de tirar benefícios da captura e tornar Cabo Verde num Estado que vive do seu oceano, que vive da sua Zona Económica Exclusiva. Com dois governos diferentes nunca conseguimos nada. Se tivéssemos uma política, uma visão, como temos para o turismo, garantíamos a sustentabilidade e o desenvolvimento do país. Mas o que temos reparado é que se investe muito na agricultura, investe-se muito no turismo, mas o sector das pescas fica sempre no nível da subsistência. Não aparece um governo que diga: vamos modernizar a frota nacional, vamos investir em conhecimento – e não apenas formações de pequena escala e botes de pesca artesanal – e depois temos esta situação, entra governo, sai governo e nós continuamos a fazer estudos e mais estudos, somos o sector com mais estudos engavetados por metro quadrado, e continuamos sem conseguir dar o salto para um sector industrializado e dinâmico. A bitola tem de ser alta. Veja, temos duas conserveiras em 46 anos de independência e somos responsáveis por 80% das exportações. Se tivéssemos quatro, cinco, seis conserveiras, criavam-se postos de trabalho, o nosso PIB aumentava, aumentaríamos a contribuição da indústria do mar no PIB e criávamos a verdadeira economia marítima de que todos os governos falam, mas que ninguém consegue concretizar na prática. Já não tenho paciência para discursos sem acção.

O que está a dizer é que falta uma estratégia para o sector das pescas. Enquanto investidor, e do que fala com outros investidores do sector, como conseguem programar o que vão fazer, quanto vão investir, se não sabem para onde vai o sector?

É uma boa pergunta. A resposta? Nós não programamos grandes investimentos. A maior parte dos armadores nacionais tem embarcações semi-industriais relativamente pequenas, sem autonomia para poder passar 40 dias no mar, por exemplo [Em Cabo Verde há 127 embarcações semi-industriais/industriais – 42% dessas embarcações estão inactivas (*)]. As nossas fainas, no máximo, são de 7 dias e não conseguimos programar investimentos porque não temos o apoio necessário, que devia ser a política dos governos, para termos uma frota como acontece em Angola, Nigéria, Marrocos, Mauritânia, Senegal, em que os governos foram ter com as associações e juntos procuraram financiamento. Os navios industriais são caros, mas temos capacidade para nos organizarmos e pagar esses investimentos. Sem garantias, não podemos investir centenas de milhares de contos numa embarcação, sem sabermos se vai haver mais fábricas em Cabo Verde, mais unidades transformadoras para agregar valor ao pescado e dar a possibilidade ao investidor/armador de ter retorno para pagar o investimento que está a fazer. Toda essa neblina que temos em Cabo Verde faz com que os armadores não consigam decidir o que fazer, porque não têm o apoio sério, não têm a alavanca que seria o governo dizer aos armadores: nós vamos convosco procurar o investimento para renovar a frota e criar uma dinâmica séria de negócio.

Ou seja, há a necessidade de modernizar o sector, mas falta o dinheiro para o conseguir.

Exactamente. Falta uma política de renovação da frota e de definirmos o que queremos para o sector. Só para ter uma ideia, qualquer navio de 18 metros custa 170 mil contos. Nenhum armador tem capacidade de o pagar sozinho, tem de haver uma política do governo. Mas neste momento, o armador está apenas a tentar sobreviver, enquanto o governo tem políticas de pequena escala a nível nacional. Assim não damos o salto.

O que está a dizer é que não chega distribuir botes e motores, porque não é isso que vai desenvolver o sector.

Exactamente. Deve-se mudar o chip. Já em 2016, a Associação de Armadores de Pesca entregou ao governo estudos que definiam a tecnologia de construção naval em Cabo Verde, para darmos o salto de captura de média escala para semi-industrial e industrial. Iríamos eliminar os botes da pesca artesanal e criaríamos barcos com convés, com todas as condições de segurança, capazes de passar os canais para as outras ilhas e diminuir os acidentes mortais que temos. Isso ia criar uma dinâmica para irmos deixando de lado a pesca artesanal, mudando para uma pesca artesanal melhorada. O estudo está no ministério, mas é mais um que ninguém consegue tirar da gaveta e implementar.

Cabo Verde tem um investimento directo estrangeiro direcionado principalmente para o turismo. E em relação às pescas? Há procura por parte dos investidores externos?

Nós recebemos vários contactos, de outros colegas armadores que têm interesse em entrar em Cabo Verde, mas a toda a burocracia que existe dentro do sector, para que um parceiro internacional venha cá pescar, desmotiva qualquer investidor que queira fazer uma joint venture [empreendimento conjunto] ou que queira trazer um barco para pescar cá. Parece que alguém anda a resguardar a zona económica exclusiva para alguém pescar, só que não sei quem é.

Em termos de pescadores registados, os números têm-se mantido? Têm entrado novos pescadores? Têm diminuído?

Neste momento, temos em Cabo Verde 5.097 pescadores que operam em navios semi-industriais e botes de pesca artesanal [4.062 são pescadores artesanais, 1.022 são operadores na pesca semi-industrial/industrial, os restantes trabalham na pesca desportiva (*)]. Mas há outras questões mais importantes. Por exemplo, a quantidade de botes inactivos. Se isso acontece, porque continuamos a emitir licenças? [Cabo Verde tem 1.463 embarcações artesanais – botes. 28,4% dessas embarcações estão inactivas (*)].

Estamos a valorizar suficientemente o produto da pesca?

Não. Não estamos a valorizar. Devíamos ter mais unidades de transformação para valorizar o nosso produto. Temos só duas conserveiras. Uma em São Vicente. A outra, tradicional, em São Nicolau. E temos pedido mais investimento. Que se chamem mais investidores internacionais, porque temos capacidade de explorar outros peixes, de outras profundidades, para criar outra dinâmica, não só de exportação como também de novos produtos. Por exemplo, estivemos a estudar o camarão-soldado, na zona norte de Cabo Verde. É um produto de excelência e temos capacidade de produzir 30 mil toneladas/ano. Isto para mostrar que temos produto com alguma capacidade de exploração e que pode agregar valor ao produto peixe, mas temos de juntar todos os actores e de ter a garantia do governo que temos capacidade de fazer negócios com o mar.

Já abordámos a questão da formação que é precisa, mas a que está a ser dada é a que vocês necessitam?

Não. Nós temos pedido formação profissional direcionada para as necessidades que temos. Chamei a atenção, desde 2015, que íamos entrar num pico de pessoas que iam para a reforma e não só, avisei que os navios internacionais estavam a importar mão-de-obra de Cabo Verde e neste momento chegámos ao ponto de não termos mão-de-obra para as embarcações nacionais. Temos navios parados nos portos porque não há mestres, nem motoristas, nem pescadores com formação adequada [17,3% dos botes artesanais e 9,4% das embarcações semi-industriais/industriais apresentam como razão para a inactividade a falta de tripulação (*)]. Estamos à espera que a Escola do Mar dê o salto para criarmos uma dinâmica entre escola – formação – estágio – trabalho. É um défice enorme que temos neste momento.

E têm a capacidade de manter os melhores em Cabo Verde?

Por isso é que tem de se manter uma dinâmica constante. Porque a indústria quer mão-de-obra cabo-verdiana. E se exportamos os pescadores que estamos a formar, temos de ter uma formação contínua.

Indo para outra questão sempre referida: não se conhece a totalidade dos recursos que existem nas águas cabo-verdianas. Não são dados que vos fazem falta?

Claro. Por isso temos pedido ao governo que o IMar [Instituto do Mar] tenha condições e apoio para fazer investigação haliêutica nos mares de Cabo Verde. Dei o exemplo do camarão-soldado, precisamos de dados de outras espécies para poder ter uma política de licenciamento dos armadores nacionais, para apoiar outra pesca de profundidade, mas precisamos de informação. Não vou investir em aparelhos para pescar a 200 metros ou 500 metros de profundidade se não tenho noção do que lá está e em que quantidades. Temos chamado a atenção, porque tem de se dotar o IMar de condições financeiras para que os biólogos do instituto possam fazer investigação. É inadmissível termos um navio da Islândia, que veio para apoiar a investigação, que há mais de 10 anos não sai do porto.

Até porque não se consegue fazer pesca sustentável se não se souber qual a capacidade de pesca que existe. Ou seja, não se sabe se pescam de mais ou de menos.

Exactamente. Temos de fazer investigação, não só sobre o que andamos a pescar como o que não conhecemos. Por exemplo, eu ando a pedir, há mais de 10 anos, um estudo aprofundado sobre a cavala, que praticamente desapareceu das nossas águas. Mas navios internacionais, que passaram por aqui, disseram que a cavala está agora a 150 metros de profundidade. O que era impensável. Porque está lá? Por causa do clima? Por causa da sobre-exploração do tubarão? Que assim já não está a atacar os cardumes? São perguntas que só têm respostas com estudos credíveis.

Há pouco perguntei pela valorização do produto. Pergunto agora pela valorização da profissão. Existe essa valorização do pescador?

Não. Ainda no domingo comemoramos mais um Dia do Pescador nacional e dos 5.097 pescadores que temos, quantos estão ancorados à segurança social? [Só 12,5% dos pescadores artesanais estão inscritos no INPS. Nas restantes profissões ligadas ao sector, 14,4% dos vendedores de pescado e 11,1% dos tratadores de pescado estão inscritos no INPS (*)] Este é um dos problemas que temos chamado a atenção, porque é de todos nós, não é só do governo. Para que nós, os armadores, possamos apoiar o pescador nesta matéria, temos de criar lotas, como existem em qualquer parte do mundo. Sistematicamente, entra governo sai governo, e não se consegue criar a legislação das lotas quanto mais a sua implementação. E nós sabemos que as lotas são a referência ideal não só para agregar valor ao pescado como também para criar condições de descontos para a segurança social. O pescador, a título individual, pode fazer a sua inscrição no INPS, mas nós sabemos qual é a capacidade escolar de um pescador [12,4% dos pescadores artesanais são analfabetos e 59,1% têm o ensino primário. Entre os operadores da pesca semi-industrial/industrial, 4% são analfabetos e 34% têm o ensino primário (*)] e que não está interessado em tirar dinheiro do próprio bolso. Depois, chega à idade da reforma e temos um homem que trabalhou 30 ou 40 anos no mar, mas que vai representar mais um custo para o governo, porque vai receber uma pensão social. Esta questão de valorizar o pescador tem de passar pela criação das lotas. Mas parece que há pessoas que não estão interessadas em criar lotas, porque isso mexia com o preço do peixe. E andamos todos com problemas, a fazer contas, porque andamos a vender a tonelada de melva – que na Europa custa mil euros – por 600 euros. Essa é que é a realidade.

Em resumo, quando se fala das limitações à capacidade do sector, fala-se de tudo: tecnologia, financiamento, organização da produção, conservação, transportes e comercialização. Há aqui muito trabalho a ser feito.

Exacto. Por exemplo, ao nível da comercialização já ganhamos algum porque hoje o governo já apoia associações de pesca artesanal com máquinas de gelo e transporte, mas na valorização do nosso produto temos um problema porque não temos nenhuma entidade que regule o preço do pescado. Só para ter uma ideia, a maior conserveira do país, em cada início de ano, chama-nos para entregar uma proposta de preço para o nosso pescado. Isto é grave. Se não se cria a lota, então que a agência reguladora entre ao barulho. Outro problema é que temos um défice enorme de conservação de pescado em Cabo Verde. Este país não tem um terminal de frio para congelar pescado. É quase capturar e entregar diariamente. E o cardume não fica lá a dormir à nossa espera, vai à sua vida e nós é que perdemos. Os problemas que se têm resolvido é com máquinas de gelo nas comunidades piscatórias artesanais, mas para o semi-industrial não há solução.

O ministro da tutela vai estar no Parlamento, na primeira sessão deste mês. Que questões gostaria de colocar ao ministro, se tivesse oportunidade?

Gostava de perguntar ao senhor ministro como é que Cabo Verde tem navios dos Estados Unidos, do Japão, da China, da zona oeste-africana a pescar na zona económica exclusiva de Cabo Verde sem assinarem nenhum contrato? Segunda pergunta: há quantos anos estão estes navios a operar na nossa ZEE sem contratos com o Estado de Cabo Verde? Terceira pergunta: porque é que a nossa guarda costeira não agiu em conformidade com essas embarcações? E a quarta questão: se o país, os armadores e o povo de Cabo Verde vão ser ressarcidos pelos prejuízos provocados pelas embarcações dessas nações que o senhor ministro referiu à comunicação social? Era sobre isso que gostava de ser esclarecido.

(*) Todos os dados avançados pelo Expresso das Ilhas foram retirados do V Recenseamento Geral das Pescas 2021

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1106 de 8 de Fevereiro de 2023.  

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Autoria:Jorge Montezinho,12 fev 2023 16:07

Editado porEdisangela ST  em  13 fev 2023 10:59

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