“Cabo Verde precisa de olhar para África numa perspectiva pragmática”

PorJorge Montezinho,22 mai 2023 7:48

Desde o início do ano que o economista Paulino Dias vive no Gana, depois de ter sido seleccionado pela Universidade de Cape Coast para um programa de Doutoramento em “Blue Economy, Governance and Social Resilience” [Economia Azul, Governança e Resiliência Social]. Quando se aproxima a comemoração do Dia da África – 25 de Maio, data que marca também o aniversário da fundação da Organização da Unidade Africana, actual União Africana – o Expresso das Ilhas falou com o gestor sobre a visão que Cabo Verde tem do continente e que o continente tem do arquipélago.

Está agora a viver a maior parte do tempo no continente, o que é diferente de ir lá e voltar, começava por perguntar, houve algo que o surpreendesse?

Eu já tinha alguma ligação com o continente, através de outras redes em que participo, fui um dos seleccionados em 2009 para o programa Desmond Tutu Leadership, portanto já acompanhava mais de perto o que se passa no continente, não houve, digamos assim, grandes surpresas. Mas alguns aspectos surpreenderam-me, sim. Primeiro, a nível académico, a dimensão da universidade e o nível em que está em termos da qualidade e da internacionalização. Por exemplo, tenho colegas desde o Paquistão, até à Alemanha, Suíça, França, Inglaterra, Estados Unidos, sem contar de quase todos os países africanos. Esse ambiente multicultural é extremamente enriquecedor e surpreendeu-me dentro desta perspectiva. Outra agradável surpresa é o foco que a universidade tem ao nível da investigação e apoio à formulação de políticas públicas. Há uma cultura muito forte de investigação, de pesquisa, os alunos são submetidos a projectos de investigação concretos e isso, para quem sai de um pequeno país que está ainda a dar os primeiros passos ao nível do ensino superior, foi uma muito boa surpresa, encontrar no Gana esta cultura de investigação. Outro aspecto que me surpreendeu pela positiva é o nível de desenvolvimento de cidades como Accra, que segue as tendências de outras cidades do continente, que se estão a modernizar rapidamente. Claro que ainda há alguns desafios, mas o ritmo de crescimento e de modernização é o que chama a atenção e como os países estão a posicionar-se, numa perspectiva que foge um pouco da imagem e do discurso que normalmente se tem do continente.

Em relação a Cabo Verde, há ainda um desconhecimento grande em relação ao que se passa no continente?

Absolutamente. Outra coisa que me surpreendeu, mas agora pela negativa, é o desconhecimento que Cabo Verde tem de África, mas também o desconhecimento que África tem de Cabo Verde. Porque funciona nos dois sentidos e é um aspecto que, penso eu, merece a atenção de Cabo Verde, pelo menos no sentido de rediscutir a sua relação com o continente. Nós não conhecemos, ou conhecemos muito pouco, e o pouco que conhecemos do continente muitas vezes é extremamente distorcido. Baseia-se ou em determinados preconceitos ou numa ligação mais emotiva, mais ideológica. Precisamos de olhar para África numa perspectiva pragmática. No sentido de conhecer o continente, de compreender como Cabo Verde pode inserir-se no grande espaço pan-africano e dar o seu contributo, mas acima de tudo tirar proveito de toda essa dinâmica que está a acontecer em África.

E isso passa pelo quê?

Isso passa, primeiro, por informação, nos dois sentidos. Segundo, por uma visão muito clara de qual deverá ser o posicionamento de Cabo Verde no espaço pan-africano e nos grandes blocos de interesse globais em que África está a posicionar-se muitas vezes como bloco. E depois, definir uma política muito clara de como quer fazer esta caminhada: quais são os interesses de Cabo Verde; quais são os objectivos; como pode almejar alcançar esses objectivos; que políticas, que acções, que iniciativas, que recursos deve alocar em relação a esta matéria. Percebemos que há uma lacuna muito grande e, estando no continente, é que nos deparamos com outra surpresa que é a irrelevância de Cabo Verde no espaço africano. Cabo Verde é tido em muitos fóruns como o país que não participa, não responde, não se engaja, não interage com o continente e é por isso que, não poucas vezes, me perguntam se Cabo Verde fica na África Ocidental ou na África Oriental.

O que afasta o país do continente e vice-versa?

Acredito que haja questões identitárias, questões históricas, questões até de posicionamento ideológico que estejam a contribuir para isso. A questão identitária, muitas vezes, é uma falsa questão, na minha opinião. Porque costumamos olhar para o continente como se fosse um bloco, com um perfil cultural e isso acaba por enviesar a forma como vemos a nossa própria identidade e distorcermos o debate se somos ou não africanos como se, repito, fosse nós e ele, no singular, como se África fosse uma identidade. Quando reequacionarmos que África não é uma identidade, mas uma colcha de retalhos de identidades, em que Cabo Verde pode preservar a sua identidade própria, sem negar a sua condição africana. Não defendo que devamos diluir a nossa identidade em nome duma, suposta, identidade africana, mas podemos preservar as nossas especificidades e, ao mesmo tempo, inserir-nos de forma mais activa dentro do espaço do continente. Eu não vejo ou/ou – ou Europa ou África – eu vejo e/e.

E como devem ser as iniciativas de aproximação?

Deixa-me partilhar uma coisa. Começámos um projecto há cerca de um mês, de uma forma muito informal – foi mais uma iniciativa minha para facilitar a comunicação com outros cabo-verdianos no continente. Criei um grupo no whatsapp, denominado: ‘profissionais de Cabo Verde que estão no continente’. A extraordinária surpresa foi em uma semana o grupo já ter cem membros e neste momento somos 110, espalhados em 25 países do continente. O resultado está a ser extraordinário, porque não tinha ideia da presença de cabo-verdianos no continente desta forma tão dispersa. Temos cabo-verdianos no Sudão do Sul, Botswana, Malawi, Uganda, Ruanda, Togo, Tunísia, Egipto. Portanto, os cabo-verdianos estão a fazer esse percurso e a procurar a título individual – esta é uma nota que convém realçar – estão a fazer isto apesar de não haver nenhuma política do país para uma maior participação de cabo-verdianos nas estruturas internacionais e empresas privadas do continente. Os cabo-verdianos que estão a fazer este percurso, fazem-no por carolice, por iniciativa própria, e, por vezes, contando com uma certa resistência das autoridades cabo-verdianas. Trocamos muitas ideias dentro do grupo e há muitas experiências dessas, de pessoas a partilhar que conseguiram entrar nas instituições internacionais, apesar das chatices que lhes foram criadas por instituições cabo-verdianas. Neste momento, o grupo está a passar para outra dimensão, que é o de partilha de informação útil, de promoção de debates e isso tem gerado ideias extraordinárias. Repito, é totalmente informal, mas poderia servir de inspiração a uma abordagem mais institucional por parte de Cabo Verde para tirar mais proveito dessas redes que estão a construir-se no continente. Hoje a tecnologia permite tirar proveito disso.

Falando de economia. Sei que não está no Gana há muito tempo, mas tem tido conversas com os colegas, com os professores. Ora, nós vimos décadas de crescimento acelerado em África – que agora teve uma pausa por causa da pandemia – mas as desigualdades regionais persistem. O que falta para que este crescimento económico de alguns países seja partilhado pelas outras regiões?

Uma das primeiras tendências que temos é de olhar para os grandes desafios do continente numa perspectiva de problema. Os problemas existem, não vamos negá-los, mas prefiro olhar como oportunidades. E há oportunidades extraordinárias no continente, que podem resultar em crescimento económico mais acelerado, mais equitativo e mais distribuído, quer entre regiões, quer entre países da mesma região, quer entre cidadãos.

Quais são essas oportunidades?

De longe, a primeira, é o acordo de livre comércio africano. Esse acordo que já foi assinado por 54 países e retificado por 46, quando implementado, poderá gerar mais de 30 milhões de empregos e o impacto ao nível das receitas para o continente ultrapassa os 450 mil milhões de dólares. É uma oportunidade que já está a materializar-se e sentimos que Cabo Verde, mais uma vez, não está a acompanhar esta dinâmica. Mas temos também o aumento de investimento nas infraestruturas no continente, os grandes corredores que combinam rodoviário, ferroviário, hidroviário, mas também ligado a transporte marítimo e aéreo – de carga e passageiros. É ainda um grande desafio, transportar mercadorias e pessoas é muito difícil, é caro e essa é uma das razões para as diferenças de crescimento entre regiões e países, de que falámos há pouco.

Outro desafio, que não é novo, mas que voltou em força é a dificuldade de acesso a financiamento.

Já era um problema, com o aumento das taxas de juros e da inflação foi agravado e está a dificultar o acesso do continente a recursos financeiros, quer ao nível do financiamento público para o investimento público, quer o financiamento de empresas. O aumento das taxas de juro, a valorização do dólar, a subida da inflação está a ter este outro impacto desastroso em África. O dólar valorizou-se, em média, 20% nos últimos seis meses. O FMI lançou uma iniciativa de aumentar o fluxo financeiro, o BAD também aumentou a sua carteira para África, mas ainda é um grande desafio.

Desviámo-nos da nossa conversa, porque estávamos a falar de oportunidades.

Para mim, há dois outros potenciais que vale a pena sublinhar. Um, é o stock de jovens do continente. Às vezes tendemos a avaliar isso como um problema, quando nos chegam as notícias desses jovens em botes a atravessar o Mediterrâneo, mas quando olhamos friamente e com um certo distanciamento, vemos que é um potencial gigantesco de crescimento económico para África. Há um outro potencial, que é a contribuição do potencial de África para as mudanças climáticas, quer para mitigar as mudanças climáticas, quer para reduzir o ritmo do crescimento das ameaças.

É como escreveu, quando foi convidado para integrar a rede de embaixadores da Acção Climática ACAAI (Africa Climate Action Advocacy Initiative), não se quer uma África apenas vítima dos efeitos das mudanças climáticas – que é um facto – mas também como parte importante das soluções.

Exactamente. Aliás, um dos principais objectivos desta rede é também passar essa mensagem positiva, África é uma das vítimas, não queremos esconder, mas queremos também este outro discurso: que há oportunidades, que África pode jogar um papel importante, que África tem recursos naturais e humanos que podem ser fundamentais para contribuir para a mitigação dos efeitos das alterações climáticas, de desenvolvimento de soluções.

Como o mercado de captura de carbono.

Em África é gigantesco. Só para dar um exemplo, Cabo Verde, que é tão pequeno, tem um potencial de captura de carbono estimado em 600 mil toneladas, por ano. Neste momento, o preço médio do certificado de captura de carbono anda entre 70 a 8 dólares por tonelada. Mesmo que recebêssemos 50 dólares por tonelada, pelo menos 200 mil toneladas/ano poderiam ser exploradas comercialmente, o que poderia gerar cerca de 10 milhões de dólares de receitas anuais para o país e criar mais de 12.500 empregos dentro do sector de actividades. Agora, extrapolemos estes números para todo o continente, são dezenas de milhares de milhões de dólares por ano.

Por falar em receitas, há outra questão com que se debate no continente, que é a informalidade – em alguns países chega a ser superior a 90% da sua economia – com toda esta necessidade de investimento: infraestruturas de transportes, saneamento, comunicações, etc., como é que os estados vão conseguir as receitas necessárias?

É uma questão que está a ser alvo de debates por todo o continente. Primeiro, deixa-me recentrar os conceitos de informalidade e formalidade, porque por vezes esquecemos que a informalidade vem primeiro. Os países e os mercados começaram a estruturar-se de forma informal, isso significa que qualquer esforço de formalização tem de considerar esse percurso histórico, as suas especificidades e o papel que desempenha em várias dimensões. Há estudos que mostram que a informalidade é negativa, mas a informalidade tem aspectos – e vou usar a palavra com muito cuidado – positivos. E um desses aspectos positivos é permitir uma maior resiliência das comunidades. Dito isso, o que se precisa fazer é identificar qual é o tipo de formalidade mais adequado a cada circunstância, a cada país, a cada região e, às vezes, a cada unidade geográfica dentro de um país. O grande desafio é como desenhar modelos de formalização que se adaptem a cada um dos contextos e a cada objectivo. E há vários objectivos, há o que apontaste, de aumento das receitas fiscais, mas também a segurança social, a redução das distorções competitivas do mercado, a criação de condições para um crescimento mais acelerado e sustentável, a inserção nas unidades de compra do Estado, portanto, há vários objectivos a que cada Estado pode dar prioridade e é dentro dessa prioridade que se deve desenhar o melhor modelo de formalização.

Mas desenhar esse melhor modelo é um desafio e tanto.

Gigantesco. Quando olhamos para África, quando olhamos para a informalidade, nem precisamos de ir aos números, um mero passeio pelos mercados populares mostra a dimensão do desafio que se tem. Mas a boa notícia é que já há experimentos que combinam o uso da tecnologia e que estão a permitir uma melhor organização e estruturação dessa informalidade. Um primeiro passo para a formalização completa.

Referimos há pouco a zona de comércio livre, mas outro dos problemas é o pouco comércio que se faz dentro de África, entre os países. Há agora uma maior motivação para comercializarem uns com os outros dentro do continente?

Acredito que sim. O secretariado deste acordo está a fazer um esforço muito acentuado de comunicação, para mostrar que há vantagens. Um dos receios tem a ver com a perda de receitas fiscais, outro tem a ver com diferentes quadros regulatórios e de certificação de qualidade, outro tem a ver com a logística. Portanto, o comércio dentro de África representa uma percentagem muito baixa em comparação com o comércio entre África e os outros continentes, mas o importante é que o potencial está lá e as vantagens ultrapassam, de longe, as desvantagens, para cada país.

Como tem percepcionado o ambiente de inovação e empreendedorismo do continente?

Há uma dinâmica muito grande, combinando inovação e empreendedorismo, o fluxo de capitais direccionados ao empreendedorismo, o fluxo de capital de risco para África tem aumentado nos últimos anos – ainda não é quem mais recebe, naturalmente, mas a tendência é de crescimento. Os países estão a alinhar os seus quadros legais e institucionais – uns mais rápidos do que outros – para ecossistemas facilitadores do processo. Há também investimentos em infraestruturas físicas, semelhante ao que temos na Praia, há muitos países a investir em parques tecnológicos. Esta nova geração é o recurso de todo este processo, jovens que já nasceram digitais e isso não é uma questão de pormenor, significa o surgimento de soluções para os problemas específicos de África. Agora, precisamos de rediscutir o conceito de empreendedorismo – no continente e em Cabo Verde. Em Cabo Verde, ainda temos um conceito de empreendedorismo um bocado distorcido, que ora estatiza o conceito e temos a política a apropriar-se do conceito para fins que não têm nada a ver com o crescimento económico, ora se utiliza o conceito como maná que vai resolver todos os problemas da sociedade e empurra a responsabilidade para os jovens. Quando não é bem assim, é preciso fazer um trabalho de fundo, arar o solo, preparar as condições, disponibilizar as ferramentas, para que o empreendedor possa plantar a sua semente e gerar fruto. Acredito que na próxima década possamos assistir a essa transformação.

E agora à distância, como olha para Cabo Verde?

Primeiro, ajudou-me a reposicionar Cabo Verde no espaço africano e ganhar um pouco de humildade. Se pudesse resumir a minha resposta seria essa: viver no continente, fez de mim um cabo-verdiano um pouco mais humilde. No sentido de precisamos mais de aprender com o continente, interagir com o continente, olhar para os seus problemas e pensar como podemos contribuir, mas também ver como o continente está a resolver os seus problemas e até que ponto nos podemos inspirar nas suas soluções. Além disso, estar no continente permite-nos ver outros desafios, como a insuficiência de uma diplomacia económica como o privado precisa. Olhamos para as oportunidades do continente, mas quem as explora são empresas, não são estados. Por isso, se Cabo Verde tiver realmente interesse em olhar para o continente numa perspectiva de mercado, um dos pilares da sua intervenção tem de ser a diplomacia económica que promova e apoie as empresas cabo-verdianas na exploração dessas oportunidades. E não temos isso. Absolutamente zero. Outro aspecto que percebemos quando estamos longe, e ainda falando da internacionalização das empresas, é a questão dos transportes, as ligações de Cabo Verde com o continente são extremamente deficitárias e caras. Ou a previdência social, Cabo Verde tem vindo a negociar acordos com vários países, mas com os países africanos acho que só com Senegal e Angola. Os certificados de origem, é outra barreira que cria dificuldades às empresas cabo-verdianas que queiram vir para o continente. Há um conjunto de factores sobre os quais o país tem de se debruçar para resolver, para que o sector privado possa tirar proveito do que está a acontecer em África e do potencial que o continente tem.

E as oportunidades que África pode ter ou dar a Cabo Verde.

Ainda em Outubro fiz uma apresentação sobre o potencial do mercado turístico da CEDEAO para Cabo Verde e é extraordinário. Se conseguirmos capturar apenas 1% deste mercado, para passar férias em Cabo Verde, estamos a falar de 400 mil turistas por ano, com um grande impacto económico. Cabo Verde tem uma oportunidade de ouro para abordar este mercado: transformar o Sal numa duty free zone, porque o turista africano, ao contrário do turista europeu, não viaja só para sol e praia, viaja para fazer compras. Viaja para o Dubai, para Paris, para Londres, para fazer compras. Mas esses destinos estão a impor cada vez mais dificuldades com os vistos, Cabo Verde estando a meio do caminho e já com o regime da CEDEAO de isenção de vistos, pode facilmente atrair o interesse das grandes marcas para abrirem lojas no Sal. Mas também na educação, as parcerias com as universidades cabo-verdianas são de encorajar. Temos de olhar para o continente com a humildade de saber que as nossas universidades estão muito longe das universidades africanas nos rankings globais. Estamos a falar de universidades que pesquisam a sério, que estão inseridas em redes globais onde Cabo Verde nem ainda sonha vir a estar, por isso faz todo o sentido uma aproximação entre as universidades e instituições de pesquisa de Cabo Verde com as universidades e instituições de pesquisa do continente. Em África, precisamos de ser nós a escrever a nossa agenda, mas esta nova geração está a chegar lá.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1120 de 17 de Maio de 2023. 

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Autoria:Jorge Montezinho,22 mai 2023 7:48

Editado porAndre Amaral  em  4 set 2023 23:28

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