(II) Amílcar Cabral proeminente teórico marxista e panafricanista: O Cabralismo e suas consequências

PorJosé Fortes Lopes,27 set 2024 17:30

Amílcar Cabral (AC), nascido em 1924 na então Guiné Portuguesa (atualmente Guiné-Bissau), é amplamente reconhecido como uma figura proeminente na luta pela independência da sua terra natal e de Cabo Verde, e também um proeminente teórico marxista e panafricanista, combinando elementos do socialismo com um forte pensamento nacionalista pan-africanista. Sua influência é marcada pelo papel fundamental que desempenhou como líder do partido africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), e pelas suas contribuições teóricas nos campos acima referidos. No entanto, uma análise crítica do cabralismo, como ideologia e práticas, revela uma complexidade que frequentemente é minimizada, sobretudo nestas celebrações contemporâneas do seu legado, que ocorrem em Cabo Verde e Portugal e talvez noutras partes do mundo.

A.C. pode ser considerado um cripto-marxista-leninista. O seu pensamento político e ideológico reflete uma complexa interação entre o socialismo europeu, o leninismo e as suas próprias interpretações adaptadas à realidade africana. Nesse sentido pode-se afirmar que A.C. adotou e adaptou o marxismo-leninismo à sua luta de libertação da Guiné, assim como teoria-base para a construção de uma nova ordem social nesse país, que pretendia extensiva a Cabo Verde e a toda a África. O projeto visava, pois, não somente a independência da Guiné-Bissau, mas também a de Cabo Verde e a libertação de todo o continente africano do colonialismo e do chamado neocolonialismo e imperialismo, promovendo uma visão de unidade africana.

A.C. foi fortemente influenciado desde jovem pelas ideias do marxismo-leninismo, especialmente no que diz respeito à teoria da luta de classes e da luta armada como meio para alcançar a revolução, que no caso concreto da Guiné-Bissau e de Cabo Verde englobava a independência e a construção de uma sociedade socialista. A sua aproximação com o campo soviético e a admiração por figuras como Lenine foram evidentes na aplicação prática da luta de libertação nacional. Os métodos de luta de A.C., incluindo a guerrilha e a mobilização popular, refletiam a influência leninista, especialmente no que diz respeito à criação de uma vanguarda revolucionária e à mobilização das massas para a guerra revolucionária. A abordagem teórica original foi marcada pela utilização do marxismo na compreensão das condições e necessidades específicas africanas, resultando numa reinterpretação e contextualizada do socialismo e do leninismo à realidade africana. A.C. via no socialismo um meio de alcançar a justiça e a igualdade na África pós-colonial. Para ele, a luta pela independência não era apenas uma questão de libertação do domínio colonial, mas também uma oportunidade para construir uma nova ordem social africana baseada em princípios revolucionários socialistas. Acreditava, contudo, que a construção do Estado deveria basear-se na realidade local e nas especificidades culturais e econômicas da África.

A.C. e o seu movimento destacaram-se na luta contra o colonialismo português e o regime do Estado Novo em Portugal. A relevância histórica destes actores decorre não apenas do papel na luta pela independência das ex-colônias portuguesas, mas também na dinâmica política interna de Portugal para a queda do regime de Estado Novo. Manuel Alegre destaca o impacto crucial do PAIGC e da luta armada liderada por A.C. na desestabilização do regime do Estado Novo em Portugal e o fim do Salazarismo. Alegre afirma que a luta armada na Guiné no contexto colonial contribuiu para abrir uma "4a frente" interna em Portugal, que acabou por enfraquecer o regime de Salazar e facilitar a sua queda. Em 2023, o Presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa, homenageou AC e concedeu-lhe a Ordem da Liberdade. Esta homenagem, realizada durante uma cerimônia na Universidade do Mindelo (Cabo Verde), foi descrita pelo presidente como "por tanto tempo adiada" e visa reconhecer A.C. como um líder histórico na luta pelas independências africanas.

Apesar da sua ligação com países do campo socialista soviético, nomeadamente a URSS, Checoslováquia, Argélia, Cuba etc., A.C. mantinha também boas relações com líderes e personalidades social-democratas e socialistas europeus e ocidentais, tais como Olof Palme, o Primeiro-Ministro da Suécia. A Suécia, sob Palme, apoiou politicamente e financeiramente o PAIGC.

Após a independência, a Guiné-Bissau enfrentou sérios desafios, muitos dos quais são atribuídos às sequelas da guerra de libertação e às políticas centralizadas do regime do PAIGC, que muitos associam à aplicação do modelo cabralista. Este país vê-se hoje lutando com instabilidades e dificuldades em implementar um sistema democrático eficaz.

Em contraste, Cabo Verde, passou incólume, aquilo que alguns definem como guerra libertação não aconteceu no seu solo. No arquipélago, o modelo autocrático e socialista do PAIGC/PAICV, não se manteve por muito tempo, graças à vários factores específicos: oposição organizada, enfraquecimento do regime do PAIGC/PAICV, e a queda do Muro de Berlim.

A partir dos anos 1990, com o fim do regime de partido único do PAICV, e após a realização de eleições livre em 1992, o país passou por uma transição bem-sucedida, e para um sistema de democracia liberal. O processo incluiu a realização de eleições livres multipartidárias, a institucionalização de um sistema democrático, a promoção dos direitos humanos, a adotação de um modelo de democracia liberal e um desenvolvimento económico mais alinhado com o Ocidente.

Cabo Verde conseguiu alcançar um maior sucesso na estabilização e crescimento. O país vem sendo amplamente elogiado pelos seus parceiros ocidentais, pelo seu progresso na construção de instituições democráticas e no fortalecimento da governança.

Todavia, Cabo Verde herdou dos regimes anteriores, um modelo centralista anacrónico (apesar de haver pessoas que defendem que Cabral não era centralista, o que aparenta contraditório com a sua ideologia leninista). Esse modelo de centralização do poder cujo objectivo é gerar dependência, logo antidemocrático de raiz, é perverso, para além de inadequado para realidades arquipelágicas, pois intensifica as disparidades regionais e sociais, criando um desenvolvimento desigual entre as ilhas.

A solução proposta por muitos, logo após a independência, foi a descentralização e a regionalização do arquipélago, ideias que já vinham do período colonial, e que tiveram apoio tanto da sociedade civil quanto da diáspora. Essas reformas visariam mitigar os efeitos nefasto do poder central concentrado na ilha-capital, enquanto flexibilizaria e criaria maiores sinergias entre a administração central e local, redistribuiria o poder e os recursos de maneira mais equitativa, permitindo que cada ilha pudesse ter mais autonomia para promover o seu próprio desenvolvimento.

Um bom modelo de regionalização poderia permitir mitigar as desigualdades crescentes criadas pela centralização, favorecendo uma governança mais inclusiva e equilibrada para um país-arquipélago com características tão diversas.

No entanto, em 2019, um projeto de regionalização foi suspenso no parlamento cabo-verdiano, não devido a uma discordância substancial sobre o projecto, mas por disputas partidárias. Esse bloqueio revelou um conflito de interesses entre grupos que se beneficiam do centralismo vigente e resistem a qualquer reforma democrática que possa comprometer seus privilégios e influências, e o medo dos grupos constituídos em perder controle político e econômico no arquipélago, perpetuando as desigualdades em detrimento do bem-estar das populações dispersas pelo mesmo. A resistência a essas mudanças está, em grande parte, enraizada nos primórdios da fundação do estado de Cabo Verde sob a batuta do PAIGC, em 1975, o que pode ser imputado ao pecado original do modelo cabralista, que detalharei nas partes seguintes, proximamente publicadas.

Portugal, 13 de setembro de 2024 José Fortes Lopes

Parte IIIParte IV

Concorda? Discorda? Dê-nos a sua opinião. Comente ou partilhe este artigo.

Autoria:José Fortes Lopes,27 set 2024 17:30

Editado porAndre Amaral  em  27 set 2024 20:20

pub.

pub
pub.

Últimas no site

    Últimas na secção

      Populares na secção

        Populares no site

          pub.