(III) Amílcar Cabral e o processo da Independência de Cabo Verde: Uma Análise Crítica

PorJosé Fortes Lopes,27 set 2024 17:30

As abordagens e métodos de Amílcar Cabral (A.C.) levantam questões importantes sobre a legitimidade e eficácia das suas estratégias. A sua prática e ideologia, denominadas de cabralismo, refletidas na forma como abordou a autodeterminação e a independência, assim como o futuro dos países pós-independentes, merecem uma análise crítica à luz dos princípios de autodeterminação definidos pela comunidade internacional e pelas agendas democráticas actuais.

1. A Prioridade da Guerra e aspiração ao poder total A.C. optou por uma abordagem essencialmente militar para a independência, priorizando a guerra de libertação como o principal meio de alcançar a autonomia ou a independência. Esta estratégia reflete uma crença na guerra como ferramenta revolucionária e "acto de libertação e de cultura", substituindo processos políticos e diplomáticos que poderiam ter permitido uma transição pacífica e negociada à autodeterminação e/ou independência, através de uma escolha autêntica e democrática dos povos envolvidos. Segundo A.C., a violência revolucionária é um meio legítimo, quando está em causa, um fim justo, a ‘libertação’ do povo, e a independência do país. A guerra, enquanto único meio para alcançar os fins pretendidos, desconsiderou a possibilidade de soluções políticas mais dilatadas no tempo, e que pudessem envolver a participação direta das populações.

Tanto mais que no caso específico do arquipélago de Cabo Verde, este não reunia em 1975 condições para aceder à independência total e imediata. Alguns problemas enfrentados por Cabo Verde no que tange a processos económicos e políticos podem, em parte, ser atribuídos a uma estratégia de independência total e imediata, em pouco mais de um ano do 25 de Abril de 1974, logo mal negociada e preparada, que não levou em conta um processo mais cuidadoso, participativo/inclusivo e escalonado no tempo. Apesar de não ter sido do interesse do PAIGC, a população de Cabo Verde teria muito mais a ganhar, entre as diferentes opções que democraticamente e legitimamente lhe poderiam ser colocadas, e considerando a opção independência, se o processo tivesse sido bem negociado (contrariamente a narrativa oficial), de modo a fasear no tempo um verdadeiro processo de transição. Ela não teria sido abrupta e teria sido supervisionada por organismos internacionais como a ONU ou outras instituições internacionais credíveis. Neste aspecto a estratégia de independência total e imediata e de ruptura do PAIGC careceu de uma abordagem moderada e responsável. Cabo Verde, na época, era insustentável como país independente, possuía um nível de desenvolvimento econômico incipiente e uma estrutura política por formar, se se tomar como referência o actual sistema político democrático. A realidade política daquele momento era complexa tanto em Portugal como nas colónias após a Revolução dos Cravos de 1974 em Portugal, e o PAIGC em finais de 1974, já em total controle da situação política do arquipélago, optou pelo poder total, e custe o que custasse. A independência de Cabo Verde ocorreu a uma velocidade estonteante num contexto de descolonização acelerada e indiscriminada dos territórios africanos sob dominação portuguesa. Resultado o monopólio do poder pelo PAIGC e, posteriormente, pelo PAICV, constituiu um presente envenenado para o arquipélago, ao não ter permitido a Cabo Verde instalar instituições políticas democráticas e criar melhores condições económicas e sociais, antes de assumir total responsabilidade sobre seu destino, mitigando, assim, alguns dos desafios enfrentados pelo país nos primeiros anos de soberania, com consequências graves para o seu futuro social político e económico.

No caso da Guiné a dinâmica da cultura da guerra que inicialmente foi definida como um símbolo de “identidade e cultura”, acabou por deixar uma herança ambígua, onde a violência, em vez de estratégia de libertação, consolidou-se como um meio de resolução de conflitos internos. Desde a independência, a Guiné- Bissau testemunhou múltiplos golpes de estado, sendo o exército frequentemente o ator principal na política do país, exacerbando ainda mais a cultura de violência. 

A relação entre a Guiné-Bissau e Cabo Verde, conforme articulada por A.C., levanta questões sobre a adesão dos cabo-verdianos no chamado projeto de libertação. Embora o PAIGC tenha sido formalmente um partido para ambos os países, na prática, a adesão e o apoio dos cabo-verdianos ao partido e à sua luta armada na Guiné-Bissau foram escassos, uma vez que ela mesmo era no mínimo contranatura. A presença pouco significativa de militantes cabo-verdianos no PAIGC antes de 1974, correspondia à realidade da fraca adesão no arquipélago, como foi evidenciada por uma reportagem de setembro de 1974 do jornal francês Le Monde e a entrevista de Vanda Oliveira (1) uma simpatizante ou militante do PAIGC no Mindelo, S Vicente, em 1974. Ambos mencionavam as dificuldades em encontrar assumidos militantes do PAIGC em Cabo Verde nesse período, demonstrando uma discrepância entre a narrativa actual e a realidade concreta no terreno em 1974, o que levanta sérias questões sobre a legitimidade daquele partido em se ter reclamado como o único e legitimo representante do povo de Cabo Verde. A questão de ser um partido binacional e de liderar a luta pela independência em dois territórios distintos, não deixa de ser um problema bicudo. Vários aspectos críticos surgem relativamente a abordagens e métodos cabralista para alcançar a independência conjunta da Guiné-Bissau e de Cabo Verde:

  • Legitimidade de um Partido Binacional: A existência de um partido binacional de libertação, que atua em dois territórios distintos, pode ser questionada quanto à sua legalidade internacional e legitimidade para representar e liderar as eventuais aspirações à independência de ambos os países. A falta de uma base sólida de apoio local em Cabo Verde antes de 1974, demonstra a dificuldade de um partido que se apresenta como único representante legítimo de dois povos com realidades diferentes.
  • Luta Armada em Território Estrangeiro não legítima: O facto doPAIGC ter desenvolvido a sua luta armada exclusivamente naGuiné-Bissau, enquanto Cabo Verde permanecia totalmentedistante do campo de batalha, e sem militância efetiva em relaçãoàquele partido, levanta questões sobre a realidade e alegitimidade da chamada luta armada de libertação de CaboVerde, tal como a narrativa nos é apresentada hoje,demonstrando um processo que não se baseava diretamente nascondições do arquipélago e nas aspirações da população local.
  • Luta por Procuração não legítima: A pretensão do PAIGC emliderar uma luta armada por Cabo Verde na Guiné e em nome doscabo-verdianos, sem seu consentimento, adesão significativa ebase de apoio no território do arquipélago, pode ser vista comouma forma de "luta por procuração", conduzida por uma façãonão legítima. Embora a participação de combatentes cabo-verdianos na luta ao lado dos guineenses seja inegável, a situaçãode serem ou não considerados legítimos "combatentes deliberdade da pátria" de Cabo Verde é, de facto, questionável edebatível:

- A luta em solo realizada em solo guineense levanta a questão de até que ponto a causa de Cabo Verde estava realmente sendo representada.

- Independência das duas nações: Embora o PAIGC tenha inicialmente defendido a independência de Cabo Verde e da Guiné-Bissau como uma única causa, Portugal não aceitou negociar a independência conjunta dos seus dois territórios, que acabaram por ter independências separadas, e seguir caminhos distintos. Este resultado reflete a ausência de um verdadeiro sentido à narrativa da luta de libertação de Cabo Verde levada a cabo por combatentes cabo-verdianos na Guiné. A interpretação de "combatentes de liberdade da pátria" de Cabo Verde depende da perspectiva histórica e política que se adota. Se a luta é vista dentro de um contexto mais amplo de libertação africana, os combatentes podem ser considerados heróis de uma causa comum contra o colonialismo em África. Por outro lado, se se colocar o foco na falta de adesão e participação popular dos cabo- verdianos na luta, pode-se argumentar que a mesma foi conduzida por uma fação não representativa do povo cabo- verdiano, logo no mínimo ilegítima.

  • Exclusividade na Representação do Povo: O PAIGC autoproclamou-se como o único e legítimo representante, a Luz eo Guia dos povos de Guiné-Bissau e Cabo Verde. No entanto, ofato do mesmo não ter conseguido mobilizar um númerosignificativo e representativo de militantes e simpatizantes emCabo Verde antes de 1974, evidencia a fragilidade dessareivindicação. Para além disso esta situação, também, levantaquestões de legitimidade, já que Cabo Verde já tinha umasociedade relativamente estruturada bem antes da formação do PAIGC.
  • Impedimento de Referendos de AutodeterminaçãoA forma como o PAIGC conduziu o processo de independência deCabo Verde, especificamente em relação à ausência de umreferendo de autodeterminação neste território em 1975, é nomínimo criticável. A autodeterminação é um princípiofundamental consagrado na Carta das Nações Unidas, quedefende o direito dos povos a escolherem livremente o seudestino político, um processo com algumas formalidades queinclui a realização de consultas às populações, supervisionadopela mesma organização e órgãos independentes, sobre amodalidade da concretização da autodeterminação. Nestecontexto, o referendo de 1975 teria servido como um mecanismolegítimo para que a população de Cabo Verde expressasselivremente sua vontade em relação à independência, ou mesmoqualquer outro estatuto associado a Portugal. Ambas as opçõesseriam legítimas. O PAIGC que aspirava ao poder total e absolutono arquipélago, ao equacionar a possibilidade de um resultadodesfavorável, optou por inviabilizar a realização da consultareferendária, usando diversos meios de dissuasão, incluindointimidação, violência e assalto a os meios de comunicação.Este partido, com fortes raízes no movimento pan-africanista eanticolonial, por razões óbvias, não lhe convinha um processo deindependência com um referendo que incluísse múltiplas opçõespara o povo cabo-verdiano.

A oposição a este partido questionou a legitimidade da sua actuação antidemocrática, que impedia o livre debate, a expressão das ideias e, por fim, a realização de qualquer consulta popular livre e aberta, mas estava a remar contra a maré, pois o MFA já tinham acordado reconhecer o PAIGC como legítimo representante dos cabo-verdianos. O processo formal de independência de Cabo Verde ficou, pois, manchado por questões de legitimidade e autenticidade. Convém, todavia, realçar que com a realização de um referendo em Cabo Verde, a população poderia ter tido a oportunidade de discutir de forma democrática e participativa o seu destino, e as diferentes opções que se lhe apresentavam em 1974/75, tais como como a autonomia parcial de Portugal, a independência conjunta com a Guiné-Bissau, ou a possibilidade de um processo lento ou acelerado de transição à independência. De facto, no caso da opção independentista, uma estratégia de transição mais gradual, escalonado em 5 ou 10 anos, seria mais vantajoso para Cabo Verde e os cabo-verdianos, pois poderia ter oferecido mais tempo para preparar o país em várias frentes, como a construção de uma infraestrutura administrativa sólida, um sistema econômico viável, uma democracia pluralista e uma participação mais ampla e informada das populações, e para que ela se preparasse melhor para as responsabilidades da independência. A sua falta resultou em sacrifícios desnecessários para a população do arquipélago, em desafios para o desenvolvimento, como a dependência de ajudas externas, a migração em massa devido à falta de oportunidades económicas e uma série de ajustes políticos internos que influenciaram a estabilidade e o crescimento do país, tanto a nível de governança como de desenvolvimento socioeconómico.

2. A Utopia da Unidade e Integração de Cabo Verde e da Guiné Apesar da Guiné-Bissau ser um território continental composto por várias etnias, e Cabo Verde ser um arquipélago crioulo, resultado de cinco séculos de miscigenação humana e cultural entre povos oriundos essencialmente da Europa e da África, A.C., ficcionou um mesmo povo e território, separados não pelo oceano, mas pelo colonialismo. Justificava, pois, a criação do PAIGC para reunir novamente esses dois povos sob uma única nação. A.C. via a integração de Guiné-Bissau e de Cabo Verde como uma solução para superar as imaginárias divisões impostas pelo colonialismo. Acreditava que a união dos dois países e povos sob uma única orientação política e ideológica era única maneira de fortalecer os recém-independentes estados no limiar da inviabilidade, e poderia compensar as fraquezas e maximizar as forças de cada estado. A Guiné-Bissau, era rica em recursos naturais e com um significativo potencial agrícola, contrastava com Cabo Verde, que, embora mais avançado em termos de desenvolvimento humano e quadros qualificados, era economicamente inviável, limitado pela sua aridez e a falta de recursos naturais. A tentativa de unir Guiné-Bissau e Cabo Verde também estava alinhada com a visão mais ampla do pan- africanismo, que procurava a unidade dos povos africanos depois das independências. Na prática, a integração Guiné-Bissau e Cabo Verde revelou-se insustentável, inviável e por fim utópica. O distanciamento geográfico, aliados à diversidade cultural, social e econômica entre os dois países era significativa. Extrapolada para toda a África o desafio era ainda maior. A Guiné-Bissau e Cabo Verde não eram apenas diferentes geograficamente, mas também em termos de desenvolvimento econômico e estrutura social. A Guiné-Bissau, com sua diversidade étnica e recursos naturais, e Cabo Verde, com seu desenvolvimento humano e qualificação técnica, tinham realidades distintas que impediam uma efetiva integração. A fragilidade do projeto, principalmente devido à falta de um consenso prático era patente, e porque ele mesmo estava desgarrado da realidade das duas futuras nações. A integração idealizada por A.C. não conseguiu resistir às realidades políticas e sociais, levando a uma separação rápida e o reconhecimento da necessidade de que cada país devia seguir seu próprio caminho. Por conseguinte, embora a visão de A.C. fosse inovadora, ela era utópica, a diversidade e os desafios reais enfrentados revelaram a impossibilidade prática de realizar projetos de integração de nações africanas.

1-https://expressodasilhas.cv/exclusivo/2014/04/28/o-25-de- abril-em-cabo-verde-vanda-oliveira/41961.

Portugal, 14 de setembro de 2024 

José Fortes Lopes

As restantes partes do artigo podem ser lidas aqui Parte IV, Parte V

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Autoria:José Fortes Lopes,27 set 2024 17:30

Editado porAndre Amaral  em  20 nov 2024 23:25

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