(III) O regime político de Cabo Verde pós-Independência: A presumível herdança do Cabralismo

PorJosé Fortes Lopes,27 set 2024 17:30

1. O Cabralismo e a questão da “pequena burguesia colonial”

Amílcar Cabral (A.C.) e seus seguidores acreditavam que a verdadeira revolução só poderia ser alcançada se as antigas classes privilegiadas fossem afastadas do poder e as estruturas coloniais desmanteladas, permitindo assim a criação de uma nova ordem social baseada na “igualdade e justiça”. Embora essa visão tenha um apelo poderoso, por prometer uma ruptura com as injustiças do passado, ela enfrenta um problema fundamental: a tendência à intolerância e ao autoritarismo. Na prática, o processo de “descolonização de Cabo Verde” redundaria no afastamento da administração colonial autóctone, na fuga das elites socioeconômicas para o estrangeiro, principalmente para Portugal, enquanto ocorreria uma emigração em massa da população mais desfavorecida.

A tese do "suicídio político" da burguesia colonial e da criação do “Homem Novo” é apresentada como o ápice da teoria cabralista, mas é uma noção que ecoa as teses revolucionárias de Lenin. Esse conceito defende que, para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária, ou seja, socialista, seria necessário não apenas abolir as estruturas existentes, mas também transformar radicalmente os indivíduos. A.C. acreditava que as classes sociais privilegiadas, que haviam colaborado com o regime colonial e se beneficiado dele, deveriam renunciar ao poder e aos seus privilégios para permitir o surgimento de uma nova ordem revolucionária. O "suicídio" não era apenas simbólico ou superficial, mas uma renúncia real e total a tudo o que a burguesia colonial havia acumulado ao longo dos 500 anos de colonialismo em Cabo Verde.

Vista 50 anos depois, essa abordagem é, portanto, incompatível com os princípios atuais da democracia pluralista, que valoriza o diálogo, a inclusão, o respeito pelas diferenças e pela propriedade privada. Uma revolução que exclui determinadas classes sociais ou opiniões contrárias, e que é confiscatória, degenera invariavelmente em uma ditadura, onde a busca por justiça e igualdade acaba por justificar a repressão, a intolerância e os abusos de poder. Assim, o ideal cabralista, apesar de suas intenções de justiça social, é potencialmente autoritário.

2. O Regime de Partido Único Centralizado: Luz e Guia

A.C. tinha uma visão clara e específica para o regime político a ser estabelecido após a independência de Cabo Verde, com implicações profundas para a estrutura de governança dos novos Estados. Pretendia-se criar um regime cuja liderança não se baseava em um estado democrático pluralista, como entendemos nos séculos XX e XXI, mas em um modelo em que o PAIGC seria a “Luz e o Guia” do povo e do país na “senda radiante” do progresso. A.C. e outros líderes do movimento de independência, influenciados pelo marxismo-leninismo, viam no socialismo o caminho mais curto para a emancipação e a construção de uma sociedade supostamente mais justa. Defendiam que apenas um Estado com controle centralizado e liderança forte garantiria a transição revolucionária e a implementação das reformas sociais e econômicas de acordo com o programa pré-definido pelo partido.

O caminho para atingir esse objetivo seria a implantação de um regime de partido único centralizado, priorizando a centralização do poder e a implementação de uma economia planificada. Para A.C. e seus seguidores, o modelo idealizado não era o das sociais- democracias europeias, mas o das “democracias populares” da Europa Oriental, cujas principais características são:

  • Autocracia: A liderança do PAIGC consolidou-se em um grupo restrito de membros do partido, considerados os “melhores filhos”, ou seja, os mais comprometidos com o projeto revolucionário. Isso criou uma forma de governo restrita, onde o poder era exercido por uma elite política, sem a participação democrática de outros partidos. O regime de partido único significa que o PAIGC era o único partido legal e no controle, caracterizado pela ausência de pluralismo político e pela concentração de poder em uma única organização. 
  • Seleção e Exclusividade da Liderança: Acreditava-se que a centralização e exclusividade na liderança eram necessárias para alcançar e manter os objetivos revolucionários, excluindo qualquer oposição. Apenas os membros mais proeminentes do PAIGC, aqueles que haviam aderido ao projeto revolucionário desde o início, eram considerados aptos a liderar. Isso garantia que a liderança fosse composta por indivíduos com forte ligação à ideologia e aos objetivos do PAIGC.

Essa visão contrasta fortemente com o modelo democrático pluralista, hoje amplamente valorizado em Cabo Verde e no mundo: 

  • Democracia: Implica um sistema não monolítico, com governos flexíveis, participativos e abertos às necessidades da sociedade. 
  • Pluralismo Político: A democracia moderna pressupõe a existência de múltiplos partidos e uma oposição real, representando as diferentes vozes e interesses presentes na sociedade. Esse pluralismo é essencial para garantir que as decisões políticas resultem de debates inclusivos e equilibrados.

3. Centralização Administrativa: Uma Consequência do Centralismo Democrático

A centralização do poder em Cabo Verde, implementada pelo PAIGC e posteriormente pelo PAICV, teve implicações significativamente negativas para a administração e o desenvolvimento do arquipélago. Antes do 25 de abril de 1974, houve uma tentativa de descentralização administrativa de Cabo Verde, proposta pelo regime de Marcelo Caetano, resultado da pressão de meios influentes mindelenses. A proposta consistia na divisão do arquipélago em duas regiões administrativas: Barlavento e Sotavento, com o objetivo de promover um desenvolvimento mais equilibrado.

No entanto, a centralização imposta pelo PAIGC a partir de 1975 interrompeu essa tentativa, eliminando qualquer iniciativa privada local ou nacional. A centralização resultou em um desenvolvimento desigual, com a capital concentrando a maior parte dos recursos, enquanto outras ilhas enfrentaram estagnação econômica e desertificação populacional.

A ilha-capital tornou-se o centro político e econômico, beneficiando-se de infraestrutura e empregos governamentais, enquanto outras ilhas, como São Vicente, perderam importância. A falta de investimentos em descentralização contribuiu para o declínio de São Vicente, que anteriormente desempenhava um papel vital no arquipélago. A centralização também resultou na fragmentação social e cultural, minando a coesão nacional.

O desafio atual de Cabo Verde é encontrar um caminho para romper com o modelo centralizador, promovendo maior justiça social e territorial. A descentralização, se aplicada de forma equilibrada, pode permitir um crescimento mais inclusivo e harmonioso para o país, projetando-o para o século XXI. 

Portugal, 15 de setembro de 2024 

José Fortes Lopes

Parte IV

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Autoria:José Fortes Lopes,27 set 2024 17:30

Editado porAndre Amaral  em  27 set 2024 20:20

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