Numa região em que o dia que marca um golpe militar é motivo de manifestações por um "Nunca Mais" e enquanto o Brasil se apoia numa Lei de Amnistia para não punir os responsáveis pelo crimes nos "anos de chumbo", os países vizinhos lutam para condenar os seus repressores e por banir qualquer apologia a ditaduras.
"Acredito que, para a Democracia na região, Bolsonaro não é um bom exemplo. Os países precisam de um líder inquestionavelmente democrático no Brasil para empurrar as suas próprias Democracias", indica à Lusa o sociólogo e cientista político chileno, Patricio Navia, professor da chilena Universidade de Diego Portales e da norte-americana New York University.
No domingo, os principais jornais argentinos exibiam dois títulos antagónicos: por um lado, a comemoração do aniversário do golpe militar no Brasil; por outro, as homenagens pelos 10 anos da morte de Raúl Alfonsín, o pioneiro ex-Presidente argentino que, em 1983, criou a Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas (CONADEP), que serviu de base, em 1985, para o processo de julgamento dos máximos responsáveis pelos crimes da ditadura argentina.
Nenhuma democracia na América Latina celebra nem "rememora" uma ditadura. O dia que marca a rotura de Democracia é de manifestações de repúdio ao golpe e de Memória pela Verdade.
Outra diferença com o Brasil de Jair Bolsonaro é que os vizinhos não apenas se manifestam por um "Nunca Mais", mas também pedem por Justiça, algo que no Brasil está vedado pela Lei de Amnistia de 1979. O Tribunal Interamericano de Direitos Humanos já classificou a lei brasileira como incompatível com a normativa internacional.
Mesmo em países que tiveram as suas "leis de impunidade", como Chile e Uruguai, as sociedades pressionam por Justiça, encontrando brechas nas leis ou mesmo pressionando para revogar a impunidade que a lei garante.
Cada país teve a sua própria "Comissão da Verdade" para investigar os crimes cometidos durante o regime militar, mas os resultados dessas comissões, diferentemente do Brasil, foram um guia para um posterior clamor por Justiça.
O Chile e o Uruguai passaram a classificar esses crimes como de lesa-humanidade, um crime imprescritível. Nesse caminho, a Argentina foi a pioneira. O Uruguai também encontrou uma brecha no caso de pessoas desaparecidas, interpretando como crimes ainda vigentes e, por isso, passíveis de julgamento.
No mundo, a Argentina é o país que mais julgou e condenou os seus militares. De todos, os militares argentinos foram os únicos que não conseguiram uma amnistia.
A derrota na Guerra das Malvinas em 1982 apressou a saída dos militares argentinos do poder sem que tivessem força política para negociar uma protecção.
"O governo militar teria terminado do mesmo jeito, assim como 42 países no mundo se democratizaram nos anos 1980, mas as condições teriam sido diferentes sem a guerra", explica à Lusa o historiador Rosendo Fraga, do Centro de Estudos Nova Maioria.
A derrota na guerra teve impacto, então, nas condições particulares da transição argentina.
"O julgamento de militares hoje é consequência da incapacidade dos militares de negociar a transição devido ao enfraquecimento pela guerra", avalia Fraga.
Paraguai
Não há nenhuma comemoração no dia 04 de maio. No Paraguai, 20 pessoas foram condenadas por crimes durante a ditadura de Alfredo Stroessner (1954-1989). A Comissão de Verdade e Justiça, concluiu que houve 19.862 pessoas presas, das quais, 18.772 foram torturadas.
Em Fevereiro, Jair Bolsonaro definiu Stroessner como um "estadista", mas o próprio Presidente paraguaio, Mario Abdo Benítez, aliado de Bolsonaro, rejeita as atrocidades do antigo ditador.
"Bolsonaro é um problema até para os militares. Os militares sul-americanos querem ser modernos, querem deixar para trás o legado de violações aos direitos humanos e pagaram altos custos para limpar a sua imagem nos últimos 30 anos", observa Patricio Navia.
"Os militares querem ter influência, mas não querem ser associados às violações dos direitos humanos. Que venha um Bolsonaro que fale bem dos governos militares é um custo para as Força Armadas da América Latina", afirma.
Uruguai
Existem apenas manifestações de memória pelas vítimas do regime. No dia 20 de maio, por exemplo, acontece a chamada "Marcha do Silêncio" com as fotos das vítimas. Milhares de pessoas fazem uma homenagem na qual são citados os nomes de cada vítima.
O Uruguai teve quase 6 mil presos políticos e 320 vítimas entre mortos e desaparecidos e, assim, como o Brasil, teve uma amnistia denominada Lei de Caducidade, mas, diferentemente do Brasil, existe uma luta por Justiça.
Em 2011, o Congresso considerou que não havia prazos para julgar delitos durante o terrorismo de Estado. Em 2017, o Tribunal Supremo considerou a Lei inconstitucional. Entre essa tensão entre os poderes, há 20 pessoas condenadas no Uruguai.
Chile
Em 21 de Março passado, ao aterrar no Chile, Jair Bolsonaro voltou a elogiar o ex-ditador chileno Augusto Pinochet (1973-1990). O próprio Presidente Sebastián Piñera, também um aliado do brasileiro, classificou como "infelizes" as declarações de Bolsonaro em matéria de Direitos Humanos.
"Piñera nunca apoiou Pinochet. Para Piñera é inaceitável que militares defendam os violadores de direitos humanos. O objectivo de Piñera é fazer com que a direita chilena abandone o legado de Pinochet", aponta Patricio Navia,
Em 2003, a Comissão Nacional sobre Prisão Política e Tortura, também chamada de Comissão Valech, concluiu que, em 17 anos de ditadura, Pinochet deixou um pouco mais de 3.065 mortos e desaparecidos, num total de 40.018 mil presos e torturados.
No dia 11 de Setembro, acontecem maciças manifestações contra o golpe e contra o bombardeamento ao Palácio La Moneda, sede do Governo, em que foi morto o então Presidente Salvador Allende.
Militantes de esquerda e movimentos sociais manifestam-se em todo o país. Anualmente, o Chile apresenta-se menos dividido e mais anti-Pinochet. O país também tem o seu Museu da Memória e dos Direitos Humanos.
No caso chileno, a amnistia foi trocada pela Lei de Protecção de Vítimas da Tortura que tornou os crimes imprescritíveis.
Pinochet morreu sem ser julgado, mas cerca de 250 ex-repressores já foram condenados e mais mil processos estão abertos.
Argentina
Na Argentina, desde 2006, o dia 24 de Março é feriado nacional. É o denominado Dia da Memória pela Verdade e pela Justiça. Uma emblemática marcha com Mães e Avós da Praça de Maio juntamente com militantes, organizações sociais e netos recuperados relembra as vítimas da ditadura e repudia o golpe, mantendo viva a pressão pelas condenações.
Em apenas sete anos, entre 1976 e 1983, a mais sanguinária ditadura da região fez 30 mil vítimas entre mortos e desaparecidos. A cifra, na verdade, é mais um emblema do que uma lista. Comprovados oficialmente, são 8.368 mortos e desaparecidos.
Já foram condenadas 862 pessoas, incluindo os ex-ditadores Jorge Videla e Reynaldo Bignone. Cerca de 3 mil pessoas já foram indiciadas.
A Argentina é o único país em que os crimes dos militares não ficaram impunes. O desafio da Justiça agora é julgar os responsáveis civis, empresários e grupos económicos, ideólogos ou cúmplices dos militares.
"Os crescentes níveis de violência na América Latina tem levado os líderes políticos a dizerem que, para controlar a criminalidade, é preciso de colocar os militares nas ruas. Isso gera uma oportunidade para que os militares voltem a envolver-se com a política", alerta Patricio Navia.