Fotografias e vídeos difundidos, na semana passada, em redes sociais, mostravam jovens e famílias africanos a dormirem na rua em Cantão, no sul da China, após terem sido forçados a deixar casas e hotéis pelas autoridades, e proibidos de entrarem em lojas e em restaurantes, no contexto da aplicação de medidas contra a propagação da COVID-19.
As imagens foram sobretudo registadas em Xiaobei, o bairro de Cantão conhecido como "Pequena África", e que concentra a maior diáspora africana na China. Nas últimas décadas, milhares de comerciantes oriundos de todos os pontos de África desembarcam na cidade chinesa, face ao 'boom' no comércio entre a China e o continente africano.
"A reacção de África foi imediata e furiosa", sublinhou Eric Olander, jornalista especializado nas relações entre China e África e fundador do portal The China Africa Project, mas a reacção chinesa mostrou-se demasiado "técnica e oficial", sem "qualquer admissão de que algo correu mal".
"Para os africanos, ver jovens a serem forçados a ficar nas ruas causa uma reacção emocional e, portanto, qualquer solução significativa dessa crise exigirá algum tipo de arrependimento do lado chinês, a fim de dar aos líderes políticos africanos espaço para avançar", apontou.
Vários governos africanos convocaram os embaixadores chineses nos respectivos países para manifestar preocupação, ao mesmo tempo que os embaixadores africanos na China escreveram uma carta conjunta ao ministro dos Negócios Estrangeiros chinês, Wang Yi, e ao Conselho de Direitos Humanos da ONU, a denunciar a "discriminação e estigmatização" dos africanos em Cantão.
"Normalmente, este tipo de trocas diplomáticas é realizado longe do olhar do público", indicou Eric Olander. "Mas não desta vez: ministros dos Negócios Estrangeiros e líderes africanos expressaram indignação publicamente", salientou.
Na carta conjunta enviada ao ministro dos Negócios Estrangeiros chinês, os embaixadores dos países africanos condenaram o "persistente assédio e humilhação de cidadãos africanos". Famílias com crianças pequenas foram forçadas a dormir nas ruas e os passaportes foram confiscados, denunciaram.
"A selecção de africanos para testes e quarentena obrigatórios, na nossa opinião, não tem base científica ou lógica e equivale a racismo", disseram na carta, sinalizando a possibilidade de uma reação contra a diáspora chinesa em África. Estima-se que cerca de um milhão de chineses viva no continente africano.
Vários africanos afirmaram não terem saído do país nos últimos meses ou anos, pelo que não deviam ser abrangidos pelas medidas de quarentena aplicadas a recém-chegados à China.
O Gabinete de Relações Internacionais e Cooperação da África do Sul considerou os episódios ocorridos em Cantão "inconsistentes com as excelentes relações que existem entre China e África", e que "remontam ao apoio da China durante a luta de descolonização em África".
A ministra dos Negócios Estrangeiros do Gana, Shirly Ayorkor Botchwey, escreveu na rede social Twitter ter sido "informada sobre o tratamento desumano dado a ganenses e outros africanos na RPC [República Popular da China]" e lamentou e condenou "veementemente o ato de maus-tratos e discriminação racial".
A epidemia do novo coronavírus começou em Wuhan, no centro da China, em Dezembro passado.
Após a cidade ter sido colocada sob quarentena, a diplomacia chinesa apelou aos governos de todo o mundo, incluindo os africanos, para que não repatriassem cidadãos estrangeiros da cidade e que não fossem suspensas ligações aéreas com a China.
"A verdadeira amizade vê-se em períodos de adversidade", afirmou, então, uma porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros chinês Hua Chunying.
Desta vez, a crise diplomática suscitada pelas imagens de discriminação em Cantão "parece ter apanhado de surpresa" o Governo chinês, considerou Olander.
A primeira reacção, na quinta-feira passada, surgiu pelo porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros chinês, numa resposta a uma pergunta de um repórter da televisão chinesa CCTV sobre alegações de discriminação contra emigrantes africanos em Cantão.
"Gostaria de enfatizar que tratamos todos os estrangeiros de forma igual na China", respondeu Zhao Lijian. "Rejeitamos o tratamento diferenciado e temos tolerância zero para a discriminação", assegurou.
No entanto, no domingo, o jornal oficial Global Times descreveu a situação como "rumores" e culpou os órgãos de comunicação estrangeiros de espalharem "falsas alegações".
Olander lembrou que "sem desculpas ou alguma outra expressão de pesar das autoridades chinesas, os Presidentes e primeiros-ministros africanos terão muita dificuldade em simplesmente passar para outras questões".