Quantas crianças ficam de fora?

PorEurídice Monteiro,19 set 2019 6:00

Dulce Almada foi uma figura proeminente do seu tempo. Afirmou-se como uma intelectual exemplar, numa circunstância histórica em que muito raras eram as mulheres em Cabo Verde com acesso à educação e menos ainda a uma formação superior.

Cabo Verde é um pequeno país, mas com uma natureza arquipelágica, tendo algumas regiões montanhosas de difícil acesso. Estando prestes a começar mais um ano lectivo, permitam-me relatar aqui duas situações (há muitas outras, em todas as ilhas, sendo numas mais gritantes do que noutras) que observei este ano em zonas onde as condições geográficas, económicas, sociais e culturais do meio dificultam o acesso a esse direito básico que é a educação. É certo que isto já foi pior do que é hoje em dia, mas, ainda assim, existem dramas e dificuldades que persistem e, por isso, merecem a devida atenção das autoridades e da sociedade. 

Uma das experiências que vi foi na ilha de São Nicolau, numa pacata aldeia piscatória (Aldeia X), e a outra foi na ilha de Santiago, numa aldeia montanhosa de difícil acesso (Aldeia Y). São situações que evidenciam a forma como a desigualdade que atinge certas regiões do país provoca impacto directo na vida das pessoas, principalmente no acesso que deveriam ter a direitos básicos constitucionalmente garantidos e universalmente proclamados. 

Talvez a acessibilidade seja o espelho mais nítido para se verificar o estado de abandono em que é votado uma comunidade. No caso da Aldeia X, é servida por uma íngreme e estreita estrada de terra batida com troços de pedra bruta de tempos remotos. A longa via serpenteia o agreste sudoeste da ilha de Chiquinho, donde se vê vastas extensões de terras, sem pasto, nem arvoredo, mas de peito aberto para o mar largo. Os picos e precipícios que acompanham a estrada são percorridos com precaução por condutores com prova dada e conhecimento local. 

A pacata aldeia de pescadores é banhada por uma baía de baleias, tartarugas e outros animais marinhos. Tem uma vista atlântica e um costado agreste. Vivem do mar e do campo. Os problemas que enfrentam são comuns às zonas portuárias de pequena dimensão. De particular relevância, é a situação das crianças que a partir da 5ª classe do ensino básico têm que se deslocar para o centro do município e lá permanecerem durante a semana inteira em regime de internato numa residência escolar. Neste caso, a comunidade queixa-se por causa da distância percorrida pelas crianças, do regime de internato para crianças com 9 a 12 anos e da permanência dessas crianças fora do agregado familiar e sem os cuidados e protecção da família. 

A Aldeia Y fica no alto de uma colina rochosa cujo acesso só se realiza à pé por dois caminhos na íngreme encosta: num caminho, pode-se calcorrear com menor risco, mas sempre a saltar pedras que, quando enlodadas, provocam quedas, pois é frequente o lodo nas pedras e nas folhas secas por causa das águas cristalinas que correm na ribeira verdejante durante todo o ano; noutro caminho, o acesso é mais tenebroso, na medida em que, num troço da via pedestre, é preciso atravessar um pedregosa ladeira com a mão no chão, sustendo em pedras para não se tombar pelo precipício abaixo. São frequentes as quedas. 

Não existe jardim-de-infância na Aldeia Y. Para ter acesso à pré-primária, uma ou outra criança vai à aldeia mais próxima do outro lado da ribeira. A escola primária que existe na Aldeia Y foi desactivado por falta de alunos para formar as diferentes turmas, pelo que as crianças têm de assistir às aulas na aldeia do outro lado da ribeira. Andam durante cerca de mais de três horas para ir e voltar. Muitas crianças não vão à escola todos os dias. Há dias que vão e outros em que ficam de repouso. 

As meninas e os rapazes da Aldeia Y ficam pelo caminho muito cedo. Poucos passam da primária para o secundário e muitos ficam pelo 8º ano de escolaridade, sobretudo por causa das dificuldades tanto de deslocação como de alojamento nas imediações do liceu (quase ninguém quer receber estudantes em casa, nem mesmo quando são parentes). Só um ou outro estudante liceal conseguiu completar o 12º ano. Nenhum habitante daquela aldeia alguma vez teve acesso à universidade. 

A vida na Aldeia Y depende das remessas de emigrantes e do campo que lá é fértil e banhado por águas cristalinas, que contudo têm vindo a diminuir devido às sucessivas secas. O que lá existe em abundância é a cana. Produz-se o conhecido líquido derivado da cana (grogue), que aí tem uma marca própria. 

Os especialistas certificam a qualidade do grogue canacana, mas advertem para os malefícios dessa bebida, particularmente junto dos jovens que estão a se definhar cada vez mais cedo. Para além do grogue e de outras substâncias de bom vibe, há uma variedade de outras bebidas que estão a acabar com os jovens, de onde se destacam algumas bebidas importadas, como o tal de Oranjeboom (a que chamam oranjebom) e Wuld (mais conhecido por chapa verde).

Neste meio agreste e de consumo desenfreado de álcool, a vida das crianças não é fácil. O pé de Lily foi lascado por uma pedra da via pedestre. Lily é linda como todas as crianças. É uma menina esperta. Sabe de tudo o que se passa dentro de casa, dá conta do que acontece lá longe na paisagem circundante e tem novas do pai emigrante em Lisboa. 

Lily vai ser baptizada um dia desses na igreja principal do município. Vai ter festa rija, com uma madrinha vinda de Portugal e um padrinho emigrante francês. Já se sabe que haverá champanhe francês. O bolo de baptizado será confeccionado na capital do país e as mulheres terão que fazer o jogo de equilíbrio para subirem com o bolo à cabeça até ao cimo do cutelo onde fica a Aldeia Y. 

Quanto aos homens, cabelhes garantir a bebida para o dia inteiro. Vão subir com caixas de cerveja e vinho ao ombro. Espera-se muitos convidados, sobretudo emigrantes. Salto alto das senhoras e sapato italiano dos emigrantes terão que ficar no fundo da ribeira, pois a encosta exige outro tipo de calçado. A festa tem de acabar antes das bebidas começarem a surtir efeito.

Está certo que, depois da festa de baptizado, os emigrantes vão regressar à Europa e o resto da família permanecerá no mesmo lugar. São seis pessoas que vivem na casa da Lily: duas mulheres na onda dos cinquenta, a jovem mãe da Lily, uma outra jovem que ficou pelo 8º ano, uma menina de 17 anos que deixou de estudar desde quando andava na 6ª classe e Lily que gosta de frequentar o jardim do outro lado da ribeira e vai dia sim, dia não. Na Aldeia Y, existem cerca de 15 crianças entre a 1ª classe e a 6ª, cujos percursos têm tido altos e baixos. 

Essas situações eram comuns no passado. O que custa é acreditar que ainda existem casos desses em Cabo Verde. A universalização do préescolar está longe de ser uma realidade, existindo concelhos em que a taxa de cobertura fica abaixo dos 60%. A acessibilidade aos estabelecimentos de ensino é outro condicionante, que se junta ao problema das residências escolares. Criar regimes de internato, pensar em turmas compostas, criar jardins-de-infância junto das famílias, desobstruir as vias de acesso às localidades... são tantas as soluções que poderiam favorecer o acesso à educação, que, como dizia Nelson Mandela, é a arma mais poderosa que se pode usar para mudar o mundo.

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Autoria:Eurídice Monteiro,19 set 2019 6:00

Editado porNuno Andrade Ferreira  em  7 jun 2020 23:21

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