Celebrar África

PorEurídice Monteiro,31 mai 2020 7:36

Djunta-mon é não apenas uma prática social de subsistência num meio agreste como é Cabo Verde, é também uma filosofia existencialista. Significa que, sozinha, posso fazer o que quiser; mas, se tiver outras mãos em meu auxílio, poderei ir mais longe. Há nisso a lógica da entre-ajuda e da reciprocidade. Eu estou contigo quando precisas, tu estás comigo quando preciso. Isso faz lembrar a filosofia Ubunto: «eu sou porque tu és».

Mais uma data para celebrar. Em Addis Abeba, Etiópia, a 25 de Maio de 1963, surgia a OUA, Organização da Unidade Africana, cujo propósito emancipatório fundacional foi no sentido de conquistar e sustentar a autodeterminação dos povos africanos. Em 2002, a OUA foi rebaptizada como UA, União Africana, com o objectivo de promover e fortalecer a integração dos países africanos.

A luta pela autodeterminação dos povos africanos e pela reapropriação das riquezas do continente não tem sido tarefa fácil. Alcançada a soberania política em largas parcelas do continente, ficou por conquistar a soberania económica. O mundo de então mudou bastante e a globalização, de finais da década de oitenta e princípios de noventa, veio a ditar outras regras. De tal sorte que, hoje, pensar a liberdade dos povos implica primeiramente pensar o sistema político, que exige cada vez mais a democracia representativa como fonte de legitimidade. Mas implica também pensar o sistema económico que define as rédeas do mundo e as margens de manobra de cada país enquanto parte de um sistema global hierarquizado. Pois, existe um mundo global onde o Norte, por razões várias, domina o Sul. Também por causa, entre outras, da sua incapacidade em efectivar certas rupturas e mudanças, o Sul ocupa uma posição subalterna e de grande dependência. É neste cenário que devemos pensar a África, enquanto parte de um Sul ainda sob dominação do Norte.

Disto, na verdade, todos têm a plena consciência plena. O que de facto é preciso é a coragem para efectivar certas rupturas e mudanças. Arriscar já está no espírito africano. O que falta é uma estratégia comum. É difícil um país africano progredir isoladamente, por mais que tenha aliados externos. Por esta razão, a África deverá ter uma estratégia continental. Não uma estratégia de dominação em que os países economicamente mais fortes e demograficamente mais significativos subjugam os mais pequenos. Isto não. E é por causa da tentação da lei do mais forte que ainda há resistência à união no continente africano. É preciso mudar este modo de pensar e esta prática.

Celebra-se o dia da África este ano no meio de uma pandemia global, pandemia essa que vem mostrar como ainda o continente depende de receitas externas. Basta ver que quase todas as medidas que estão a ser desenvolvidas aqui e acolá vieram de contextos diferentes dos nossos. Salvas raras excepções. Nós os africanos, nomeadamente os nossos decisores públicos e políticos, devemos pensar nos nossos próprios problemas a partir da nossa própria realidade. Muitas medidas são adoptadas de forma acrítica, descontextualizadas. Com efeito, acabam por produzir efeitos inesperados. Estamos num continente em que a maior parte da população é ambulante e depende da rua, ou seja, cujo ganhapão vem do sector informal. Essas pessoas não têm um sistema de segurança social que garanta a subsistência quando deixam de sair à rua. Outro problema é a incapacidade do sistema de saúde dar resposta à crise. A nossa “sorte” é que “Deus” parece ter interferido a nosso favor. Poupou-nos de uma calamidade maior. Só por isso as nossas vulnerabilidades não ficaram ainda mais expostas com esta pandemia.

Ao contrário dos países ocidentais onde o desemprego, os empregos precários e mal pagos, a prostituição, a sobreexploração das mulheres, o trabalho infantil e dos idosos possam ser coisas residuais, em África são realidades vivas, práticas corriqueiras. É essa insegurança social, para além da insegurança política e económica, que caracteriza o continente e exigiria um modo de pensar e actuar distinto. O que é importante pensar é por que razão os governos africanos agem deste modo, de forma tão descontextualizada. A resposta é simples. Os governos africanos não investem ou investem pouco na ciência, não acreditam nos seus cientistas e descartam o conhecimento produzido localmente. Por isso, é que os decisores públicos africanos tendem a importar conhecimentos e práticas políticas de realizadas externas.

Na verdade, num momento em que o mundo exige de nós o distanciamento social, a África deve pensar em soluções próprias. Não devemos voltar as costas uns aos outros. Mais do que nunca, porque esta crise tem implicações sociais e económicas imprevisíveis, devemos juntar as mãos. Só juntos sairemos desta crise com saúde e dignidade e fortaleceremos a nossa humanidade. Há uma expressão cultural muito forte na língua e tradição caboverdiana que simboliza exactamente isso: DJUNTA-MON. Que significa, literalmente, juntar as mãos. Djunta-mon é não apenas uma prática social de subsistência num meio agreste como é Cabo Verde (ilhas do Sahel, perdidas no atlântico, sem chuvas regulares, nem riquezas minerais no subsolo). Djunta-mon é também uma filosofia existencialista. Significa que, sozinha, posso fazer o que quiser; mas, se tiver outras mãos em meu auxílio, poderei ir mais longe. Há nisso a lógica da entre-ajuda e da reciprocidade. Eu estou contigo quando precisas, tu estás comigo quando preciso. Isso faz lembrar muito a filosofia UBUNTU: «eu sou porque tu és».

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 965 de 27 de Maio de 2020. 

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Autoria:Eurídice Monteiro,31 mai 2020 7:36

Editado porFretson Rocha  em  11 mar 2021 23:20

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