Nessa manhã de quinta-feira de 3 de Julho de 1975, contando apenas 23 anos, cheio de ideal e de projectos, acordei cedo, melhor, não dormi direito a noite toda, tal era a ansiedade que raiasse o dia. Fui enviado de São Vicente, em missão evangélica, para Santa Catarina de Santiago, a vanguarda política do PAIGC em Cabo Verde, mas isso só descobriria depois de ali estar.
Os acontecimentos tinham ocorrido tão depressa que não tinha tido tempo para pensar nas responsabilidades e nas implicações de uma tal missão, num contexto político de exaltação nacionalista e nas vésperas da independência nacional.
O 25 de Abril de 1974 apanhara-me em São Vicente frequentando o Seminário Nazareno, juntamente com Jorge Maia e Manuel Sança, tendo os missionários americanos Wood, Henck e Stroud como professores das principais matérias. Às pressas, porque o momento político deixava no ar algumas dúvidas e temores quanto ao futuro, decidiu-se antecipar a conclusão do curso, fixando o mês de Março como a data para o seu término.
Estava tudo acertado com o camião que havia de chegar cedo para transportar as nossas coisas, guardadas em grandes caixotes na garagem da Casa da Missão, na Praia, enquanto nós seguiríamos no velho jeepão Land Rover, cedido por empréstimo para esse efeito. Ia montar casa e começar uma nova vida e nova família, cujo primeiro rebento já se anunciava.
À entrada do Portãozinho, na Assomada, surpreendentemente, não havia ninguém à nossa espera, pelo que a ajuda e o apoio do jovem músico Feliz Piedade nesse nosso primeiro fim-de-semana foi simplesmente providencial.
O resto do dia foi passado a abrir caixas e montar móveis. À noitinha, descobri que o jovem Tatá, que conhecera meses antes em Mindelo, onde se encontrava a fazer o serviço militar, era nosso vizinho e vivia na casa mesmo em frente!
Foi assim que, na manhã seguinte, de bermudas, t-shirt e sandálias nos pés, em contraste com o meu antecessor, homem dos seus setenta anos, que se apresentava sempre de gravata, fui bater à porta dos novos vizinhos da frente.
– E pai di Nhô qui ‘góssi bem fica li (É o seu pai que veio ficar cá agora)? – perguntou-me o Sr. João Café, um homem alto, de boina montegóma (do estilo da do General inglês Montegomery, da 2.ª Guerra Mundial) preta na cabeça e sorriso franco, depois de me cumprimentar e mandar entrar.
– Não, sou eu mesmo! Eu é que vim cá ficar a substituir o Sr. Luciano de Barros! – respondi, rindo com gosto ao ver o seu embaraço.
A Vila de Assomada, situada a 600 metros acima do nível do mar, era aprazível, com as suas casas de estilo colonial e duas feiras semanais de produtos agrícolas, às quartas e sábados, para onde convergiam as pessoas das redondezas e dos concelhos vizinhos, o que lhe dava algum movimento. Nos meses de Novembro a Fevereiro, um friozinho húmido afectava-nos sobremaneira, em particular o nosso filho, que desenvolveu até problemas de brônquios.
Em 1975, quando ali cheguei, o Concelho de Santa Catarina, com uma superfície de 243 km², teria uma população de cerca de 41.000 almas, superior à da minha ilha de São Vicente. A vila contava com uma estrutura de saúde de apenas um enfermeiro residente, o Sr. Pedro Spínola, que voltei a encontrar 30 anos depois no mesmo local. Contava ainda com consultas médicas semanais, às quartas-feiras, do Dr. Santa Rita Vieira, um filho da terra, hoje nome atribuído ao Hospital Regional de Santiago Norte. A Escola Grande e o Ciclo Preparatório, onde viria a leccionar, eram os principais estabelecimentos de ensino.
A situação social e política era tensa, ainda na sequência da exaltação e dos excessos do pós-25 de Abril de 1974, da libertação dos presos políticos do Tarrafal, com agressões, arbitrariedades e prisões dos acusados colaboradores da PIDE. Houve mesmo a morte, com arma de fogo, de um responsável local do PAIGC, com explicações pouco convincentes sobre as razões do ocorrido.
Apesar do clima político, a Igreja Católica continuava a ter um peso e uma importância grandes sobre aquela população, sendo os nazarenos uma minoria receosa quanto ao porvir, sobretudo depois de um grupo de jovens politicamente identificado, empunhando armas, ter ido ao Portãozinho procurar o Pastor cessante para o prender. Este, que se deslocara à Praia, manteve-se ali por longo tempo, receoso, à espera que se acalmassem os ânimos.
O dia 5 de Julho, da proclamação da Independência Nacional, passou-me despercebido, por ter estado envolvido nos trabalhos de organização da casa e da preparação das actividades religiosas do domingo, o meu primeiro, daí a três dias.
Nesse domingo da minha apresentação à comunidade, já no salão da Igreja do Nazareno e depois de um longo tempo de espera pelo meu antecessor, que deveria vir apresentar-me não compareceu, decidi avançar eu próprio junto às poucas pessoas ali presentes e começar a Escola Dominical, seguindo-se o culto. A meio da tarde, chegou finalmente o casal pastoral, justificando-se não poder ficar para o serviço da noite! Este acabou por não acontecer, simplesmente porque não houve assistência. Éramos apenas seis pessoas, e uma delas era, ainda por cima, uma mulher fusco, que se sentou no último banco a chorar!
Nessa noite, enfiei-me na cama cedo, muito antes do Nhô César da Central Eléctrica desligar a luz, virei a cara para a parede e chorei desalentado!
Meses depois, um colega santacatarinense a viver no Brasil, J. Sérgio Fortes, numa sua visita à terra, conhecendo essa realidade difícil, comentou comigo:
– Brito, tens duas hipóteses: ou sais daqui herói ou sais com canela quebrada!
A verdade é que permaneci em Santa Catarina por cinco anos, tendo procurado inverter a situação, envolvendo-me intensamente e integrando-me na vida social e cultural da comunidade. Esta terá sido a fase mais importante da minha vida, porque de preparação para outros voos…
Entre as letras, um porto de abrigo
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“O mar vagueia onduloso sob os meus pensamentos
A memória bravia lança o leme:
Recordar é preciso.
O movimento vaivém nas águas-lembranças
dos meus marejados olhos transborda-me a vida,
salgando-me o rosto e o gosto”
– Conceição Evaristo, escritora e poeta brasileira,
in Cadernos Negros, vol. 15
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 970 de 1 de Julho de 2020.