A vida é feita de memórias. Lembro-me, ainda que vagamente, de ouvir falar de 10 Rodas. Bastava alguém pronunciar este nome que as pessoas compreendiam a mensagem e o sentimento de pesar. Foi algo que aconteceu quando eu era ainda uma criança muito pequenininha, mas não raras vezes ouvi falar deste assunto ao longo da minha infância. Não me recordo bem dos detalhes, até porque era um assunto que causava dor e se falava em poucas palavras. É assim algo que ecoa na minha mente, ainda que vagamente.
Um caminhão de desportistas e a respectiva claque tinha saído da minha aldeia, apanhando um troço da estrada principal. O caminhão de carroçaria aberta estava abarrotado de gente. Se mais não foram, certamente não foi por falta de vontade de ver e vibrar com a equipa de futebol local. Houve gente que ficou em casa a lamentar muito o quanto gostariam de seguir viagem.
Naquele tempo, havia poucos carros no interior da ilha de Santiago. Dava para contar nos dedos das mãos. Então, para resolver aquele problema de falta de transporte público de passageiros, decidiram ir ao futebol usando como transporte um pesado de mercadorias. Era conhecido por 10 Rodas. Tinha duas filas de rodas duplas de cada lado na parte traseira e duas rodas solitárias de cada lado da cabine do motorista. Era o famoso 10 Rodas, caminhão basculante, comummente usado no transporte de pedras, areia, cascalho, outros inertes e demais carga pesada.
O velho caminhão partiu da Calheta com destino a Pedra Badejo. A meio do percurso, perto da zona de Achada Laje, as pessoas balançaram-se todos de um lado para outro. Com o desequilíbrio de pesos a pender num dos lados, o caminhão inclinou. Algumas pessoas começaram a cair e depois o caminhão desabou por cima dessas pessoas, sendo as outras arremessadas desde o cimo da aberta carroçaria conta a calçada ou contra as pedras das barricadas. Estava ali uma equipa de futebol e a respectiva claque. Morreram dezena e meia de pessoas e, dos sobreviventes, alguns carregaram marcas físicas e traumas para a vida.
Foi a pior sinistralidade rodoviária ocorrida no interior nos idos anos oitenta. Em verdade, coisa como essa nunca dantes tinha sido vista em toda a ilha. Corria o ano de 1984. Eu já era nascida e era ainda muito pequenina. Mas, como já disse, ouvi falar desse assunto com alguma recorrência a medida que fui crescendo. É certo que ninguém da minha família mais próxima estava presente. Em todo o caso, por se tratar de uma equipa de futebol e da respectiva claque, foi como se todos nós tivéssemos sido atingidos. Calheta inteira estava de luto pela morte desses jovens futebolistas e amantes do desporto rei. Durante dias e semanas inteiras, um luto comunitário tombou sobre a aldeia, como um manto de neve. Não se ouvia nem as aves, nem o bater das ondas na rocha húmida.
O meu pai e o meu tio já viviam na Praia. E eu vivia na época com o meu pai e a minha tia mais nova que tinha vindo fazer o ciclo preparatório, a fim de, pelo menos ela de entre as fêmeas, seguir para o liceu sem interrupção desnecessária e com o aproveitamento desejável. Na Calheta, havia apenas a escola de Nhu Padre, uma escola católica onde o meu pai, a minha mãe, os meus tios e as minhas tias mais velhas estudaram. O meu pai, filho primogénito, e o meu tio, dois anos mais novo, tinham literalmente fugido do trabalho da enxada e da lei do patriarca. Foi o meu pai, que trabalhava na então EMPA, quem soube primeiro do acidente de 10 Rodas. Como bom badio de fora, ele foi a correr para o Hospital Agostinho Neto para onde tinham sido enviados os feridos, todos conhecidos e amigos de peito.
O meu pai chegou a tempo de ajudar a descarregar os conhecidos e amigos da aldeia. Juntamente com ele havia também um moço na casa dos vinte que era um dos passageiros do caminhão acidentado, mas aparentava sem lesões e ele quis igualmente ajudar a descarregar os companheiros. Pouco tempo depois, o moço caiu debruço no chão. Morreu espetado por um dos ossos do seu próprio corpo que tinha partido sem que ele soubesse. O meu pai viu esse amigo morrer assim à vista de todos. Coisa triste de se ouvir e de se contar. Esse moço era irmão da mãe de um primo meu que veio a nascer uns anos depois. Naquele tempo, ainda não tínhamos família juntada. O moço morreu a ajudar os companheiros. Dizem que a morte dele foi ainda muito mais magoada, porque ele ajudou a salvar muita gente e morreu assim heroicamente.
Quem teve a sorte foi um outro amigo do meu pai. Não tendo encontrado vaga no caminhão para ir ver o jogo, o vizinho ficou muito chateado. Indignado. Decidiu ir à pesca. Não disse nada a ninguém e foi para o mais longe que conseguiu. Quando a sua família tomou conhecimento do acidente, andaram à procura dele entre mortos e feridos. Nada. Nenhuma notícia dele. Choro e luto fechado na casa de seus pais. Neste caso, não houve um final trágico. Depois da pesca, ele regressou à casa com um balde de peixe miúdo, sinal de que não tinha jeito para a pescaria, a tal ponto que ninguém nunca cogitou sequer a hipótese de que ele poderia estar na pedra do mar a pescar. Foi uma tristeza a menos no meio desse drama que marcou as nossas vidas e a nossa pacata aldeia à beira-mar.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 973 de 22 de Julho de 2020.