EDITORIAL: Pandemia desafia a Nação

PorHumberto Cardoso, Director,3 ago 2020 7:15

O estado da Nação vai estar em discussão na Assembleia Nacional esta sexta-feira, dia 31 de Julho. O debate anual é sempre um momento muito especial na vida nacional na medida em que marca o fim do ano político e põe o governo em jeito de balanço da sua governação face aos deputados de todos os partidos.

Este ano vai ser ainda mais especial considerando o momento que se vive da pandemia da covid-19 e as consequências económicas e sociais que se vêm acumulando desde da quebra brusca no ritmo de crescimento da economia e do aumento rápido do desemprego. Ninguém consegue perspectivar quão profunda será a crise e o tempo que durará. Não há data certa para se ter disponível vacinas que cheguem a toda a gente e nem se sabe como a retoma económica irá processar-se no novo quadro das relações comerciais e também políticas entre as nações no pós covid-19. Até lá incertezas várias, muita ansiedade pelo caminho e alguma angústia poderão condicionar o comportamento das pessoas. Assim será se da parte de quem governa e de toda a classe política não vier um esforço para criar confiança, incentivar o espírito de cooperação e reforçar a ideia de um destino comum compartilhado por todos, sem a qual a vitória sobre o coronavírus não será possível.

O debate da próxima sexta-feira poderá ser crucial para se alcançar um nível de concórdia indispensável com vista a enfrentar as dificuldades futuras. De antemão sabe-se que inevitavelmente vão surgir à medida que a crise se agravar e as medidas do Estado para amortecer a quebra da economia perderem eficácia e quando as pessoas começarem a sentir sentirem a perda de rendimentos derivado do desemprego e da fraca actividade económica. Confrontá-las com alguma medida de sucesso vai requerer uma frente comum que, para ser construída, exigirá que se faça uma reflexão nacional sobre tendências divisivas e sobre os porquês da persistência de vulnerabilidade e precariedade das populações após tantos anos de injecção de recursos no país. Também dever-se-á debruçar sobre as razões por que se torna tão difícil construir um ambiente onde as pessoas sintam que o mérito e o esforço pessoal, enquanto critérios para o sucesso, prevalecem sobre a cor partidária, o acesso a redes de influência e a tolerância para com jogadas obscuras que resultam em fortunas súbitas. Se motivação suficiente não existisse para isso, a previsão do VPM e Ministro das Finanças de que 150.000 postos de trabalho poderão estar em perigo se medidas robustas do governo não forem tomadas deveria ser o sinal esperado para pôr todos em alerta máxima e procurar fazer diferente e não se repetir as insuficiências tornadas tão óbvias em poucos meses pela pandemia.

No dia comemorativo dos 102 anos de Nelson Mandela, António Guterres na sua qualidade de secretário-geral da ONU fez um apelo para um Novo Contrato Social e acordo global para combater as desigualdades. Segundo Guterres, a pandemia veio fazer uma radiografia da realidade deixando a descoberto “sistemas de saúde inadequados, lacunas na protecção social, desigualdades estruturais, degradação ambiental e crise climática”. Acrescentou ainda que o mundo enfrenta o risco iminente de “haver fome de proporções históricas” e de “cem milhões de pessoas serem empurradas para a pobreza extrema”. Acabou por aconselhar que governos, sociedade civil, empresas e comunidades se juntassem na discussão do que poderá ser esse novo contrato social e o acordo global. A dinâmica da pandemia e as respostas contra os seus efeitos têm demonstrado que para se ter sucesso no combate à doença e no controlo da transmissão do vírus um novo engajamento com a população deverá existir em que competência e honestidade na comunicação surjam como cruciais para se conseguir confiança das populações e assegurar que seguirão com naturalidade as instruções e orientações das autoridades.

Com as fragilidades de Cabo Verde já conhecidas e recentemente relembradas pelos três anos de seca e tornadas mais do que óbvias pela covid-19, o mais natural é que houvesse um esforço vindo de todos os quadrantes para se fortalecer o que une a nação. Tendo como base o consenso criado no processo, o pluralismo de ideias devia permitir encontrar as melhores propostas, pressionar no sentido da gestão competente dos recursos e serviços públicos e impedir aproveitamentos indevidos de recursos públicos. Infelizmente não é esse o sentimento prevalecente nos actores políticos e sociais. Reina a polarização social, uma competição desenfreada pelos recursos sem preocupação com a racionalidade e a razoabilidade e cresce todos os dias um espírito de rivalidade entre as ilhas que torna difícil pensar o país como um todo, agravando os custos da insularidade e limitando os ganhos para o país que poderiam advir da exploração flexível e estratégica do potencial e dos recursos de cada ilha. Com a pandemia da covid-19 em vez do recuo nas divisões, nas rivalidades e na corrida aos recursos verificou-se o recrudescer das suas manifestações com os protagonistas a justificarem como legítimas as suas pretensões.

É aparentemente ignorado o facto inescapável de que o futuro próximo será de muito menos recursos disponíveis, porque já há quebra na economia nacional, o resto do mundo vive uma recessão só vista nos anos 30 do século passado e que a expectativa para os países mais desenvolvidos de regresso aos níveis do ano 2019 é de três a quatro anos. Só assim é que se explica que o discurso político – desde que se convencionou que depois do período de confinamento já se podia regressar às tricas políticas – siga por linhas de fractura que levam a seleccionar entre uns e outros quem tem estatuto especial e quem deve ser merecedor de discriminação positiva. Só assim se explica também que o discurso se centre em propor corte nos impostos, já de por si em queda livre por causa do estado da economia, sem preocupação com a boa gestão das despesas quando interferem com interesses corporativos e outros. Confrontado com os inevitáveis défices orçamentais e o aumento da dívida pública e a necessidade de os financiar a tentação é de se entreter com fórmulas que mais parecem “wishful thinking” do tipo de propor aos credores de Cabo Verde que transformem o crédito em investimento.

O óbvio devia ser que se promovesse um maior rigor na utilização dos recursos públicos, que as forças políticas demonstrassem maior contenção nas reivindicações e houvesse um maior esforço de adequação das expectativas das pessoas às possibilidades reais do país. O problema é que já se está em cima do ciclo eleitoral e o eleitoralismo nos discursos e nas promessas tende a sobrepor-se a quaisquer outras considerações. Entre ir num ou noutro sentido nos embates políticos há que se ter em devida atenção que os eleitores, face à crise pandémica, querem competência na condução dos assuntos do Estado e confiança em quem governa e não serem seduzidos por promessas ilusórias. De Angela Merkel diz-se, por exemplo, que o respeito por ela enquanto estadista deriva do facto de se dirigir a todos com honestidade, franqueza e realismo e que sob a sua liderança ninguém cria falsas expectativas nem engendra ilusões. Essa é uma referência que bem podia ajudar a elevar a qualidade do debate parlamentar da próxima sexta-feira, neste ano da pandemia da covid-19, e a ganhar um tom mais construtivo. A Nação agradeceria. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 974 de 29 de Julho de 2020. 

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Autoria:Humberto Cardoso, Director,3 ago 2020 7:15

Editado porSara Almeida  em  17 mai 2021 23:21

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