Das potenciais dificuldades de solução política na formação do Governo (até agora não fomos confrontados com isso, felizmente), apontam-se aquelas que, nesse caso, poderão derivar de discrepâncias entre o que diz a Constituição da República de Cabo Verde (CRCV) e o que diz o Regimento da Assembleia Nacional (A.N.) o que é relevante porque Presidente da República (PR) e Assembleia Nacional intervêem ambos na formação do Governo, mas, para isso, o PR tem um único guia que é a CRCV, ao passo que, para além desta, a A.N ainda poderá querer aplicar o seu próprio Regimento. Mas a A.N. é palco de interesses partidários, muitos deles contraditórios, e...“interesse ta sega rezon”, o que é um caminho para dificuldades.
É então necessário prevenir, encontrando uma solução política, com uma primeira fundamentação na trave mestra do sistema que é a CRCV.
I. Uma Constituição da República (CRCV) aberta a todas as soluções
1. No final do nº 4 do artigo 119º, diz a CRCV que “... a competência e o funcionamento dos órgãos de soberania são definidos nos termos da Constituição”; no que respeita ao funcionamento da A.N. vale salientar em primeiro lugar que, de acordo com a CRCV(artigos 153º, 172º, 260º, entre outros)é no seu Regimento que estão indicadas as respectivas normas, pelo que estas têm de estar nos termos da CRCV;em segundo lugar, e quanto às deliberações em particular, o artigo 121º diz no nº 2 que «as deliberações dos órgãos colegiais são tomadas à pluralidade de votos, excepto nos casos em que a Constituição, a lei ou os respectivos regimentos disponham de forma diferente» e, esclarece no nº 3 que «Para efeitos de apuramento da maioria exigida nas deliberações, não são contados os votos nulos ou em branco nem as abstenções».
Para haver coerência entre aquela indicação da parte final do nº 4 do artigo 119 º, com o nº 3 do artigo 121º onde a CRCV se “abre” para “... casos [em que ] a lei e ou os respectivos regimentos disponham de forma diferente”, haverá que aceitar a doutrina do esclarecimento que Jorge Miranda dá sobre norma similar da Constituição portuguesa, e para quem (citação) «Ao falar em [...] casos previstos na lei e nos respectivos regulamentos», a Constituição [Portuguesa] refere-se sim a actos não directamente regulados por ela própria e a actos de órgãos criados por Lei»1 (fim de citação). Temos então (i)um órgão de soberania que é a A.N. (ii) criada pela Constituição e não por Lei ordinária (iii) de carácter colegial, condições que implicam que, para a CRCV, a regra geral de deliberação na Assembleia Nacional é a “pluralidade de votos” (maioria simples), nos termos do artigo 121º conjugado com o 119º e outros, todos da CRCV.
2. Para não ser esta a regra a aplicar, por exemplo no processo legislativo da A.N, a CRCV criou uma secção “DA DISCUSSÃO E DA VOTAÇÃO” em que põe as balizas do processo legislativo nos artigos 160º a 162º, com destaque para o artigo 161º que indica expressamente as “maiorias especiais” para esse processo específico, e diferentes da “pluralidade de votos” prevista na regra geral. Há mais casos em que a CRCV quis maiorias diferentes da “pluralidade de votos”.
Diferentemente do processo legislativo e outros casos, a CRCV não criou qualquer maioria especial para a A.N deliberar validamente sobre as Moções de Confiança e de Censura ao Governo, pelo que, do ponto de vista constitucional aplica-se a regra geral da “pluralidade de votos” nesses momentos de fiscalização política do Governo pela A.N. Em termos de votação, a “pluralidade de votos” é a maior abertura possível, podendo então dizer-se que a CRCV não cria, por esta via, obstáculos à posse (ou subsistência) de qualquer Governo, mesmo minoritário.
Pode-se então dizer que, neste aspecto, a Constituição da República de Cabo Verde deixa toda a abertura para qualquer solução de Governo negociada pelos Partidos Políticos e aceite pelo Presidente da República.
II. Um Regimento bloqueador na Assembleia Nacional (A.N.)
3. O artigo 131 º do Regimento enuncia a regra geral de deliberação pela A.N. do seguinte modo:
«As deliberações são tomadas por maioria absoluta de votos dos Deputados presentes, excepto nos casos especiais previstos na Constituição e neste Regimento».
Só com esta norma, há uma inversão da regra geral de deliberação «à pluralidade de votos» prevista na Constituição (excepto naqueles casos que a própria CRCV indica) quando o que prevê o Regimento é uma “... maioria absoluta dos Deputados presentes”.
Como órgão de soberania e de carácter colegial, a A.N. tem de funcionar nos termos da CRCV pelo que esta inversão é uma violação da Constituição. “Pluralidade de votos” e “maioria absoluta dos Deputados presentes”, podem ser opostos, pois os presentes podem ser todos os Deputados e Deputadas em efectividade de funções, até porque o dever (e interesse) do Deputado é estar presente nas sessões da A.N. Neste caso provável e regimentalmente previsível, a maioria absoluta dos presentes (Regimento) coincide com a “maioria absoluta dos Deputados em efectividade de funções”, ao contrário da “pluralidade de votos” prevista na Constituição, mesmo se todos os Deputados e Deputadas estiverem presentes. Mas é precisamente o voto favorável da “maioria absoluta dos Deputados em efectividade de funções”, que é pedida no n.º 2 do artigo 267 º do Regimento da Assembleia Nacional para uma Moção de Confiança.
Nestes termos, a violação da Constituição talvez fique mais clara no artigo 267 º do que no artigo 131º do Regimento da A.N. Mas as consequências políticas percebem-se melhor com o artigo 131º do Regimento da A.N. Por isso volto a ele com uma hipótese em que talvez os números ajudem a ilustrar e esclarecer melhor o aspecto político grave da inversão que faz da regra constitucional.
Considere-se a hipótese de setenta (70) Deputados presentes na votação de uma Moção de Confiança, e com o seguinte resultado:
30 (a favor) + 25 (contra) + 15 (abstenções) = 70.
Segundo a regra geral do n.º 2do artigo 121º da CRCV, a Moção foi aprovada com esta votação.
Neste caso, um Grupo (Parlamentar) de 15 Deputados, viabilizou (cf CRCV) a formação do Governo por outro Partido, através da abstenção; isto é mais fácil de acontecer, quando um Partido não quer bloquear a formação do Governo (ao votar contra a Moção de Confiança) mas ao mesmo tempo não se quer comprometer politicamente com esse Executivo (ao votar a favor Moção de Confiança); em suma, a CRCV deixa três (3) escolhas aos Partidos, das quais duas (2) são alternativas diferentes para viabilizar a formação de um Governo (votar a favor ou abster-se);
Pelo contrário, segundo a regra geral do artigo 131º do Regimento da A.N. a Moção de Confiança foi rejeitada com aquela mesma votação, porque não teve a maioria absoluta dos Deputados presentes.
4. É bom lembrar que, em caso de dispersão dos votos em eleições legislativas, o “mandato popular” aos Partidos Políticos é de “negociar soluções”! A solução do problema eminentemente político posto aos Partidos que entrarem para o Parlamento começa com estas negociações; terão de confrontar seus valores políticos, as suas propostas, mas também (re)avaliar os distanciamentos ou as proximidades políticas construídas entre si ao longo tempo; deste ponto de vista, a inversão operada pelo Regimento da A.N. é grave porque, ao se impor aos partidos, um voto favorável e mais nenhum outro para viabilizar um Governo, faz-se aumentar as exigências negociais entre os Partidos Políticos, situação que lhes exigirá mais tempo (e paciência) de negociação, o que contribui para prolongar uma eventual crise política; aquele aumento de exigências é expectável pois as contrapartidas pedidas por um Partido a outro Partido para votar a favor da formação do governo deste último, em tese serão sempre maiores do que em caso de se lhe pedir a mera abstenção.
Como se pode ver do exemplo numérico mais acima, os artigos 131º e n.º 2 do artigo 267 º do Regimento da A.N, impõem aos Partidos o dilema político de, ou (i) bloquear a formação do Governo (seja votando contra, seja votando abstenção), ou (ii) comprometer-se politicamente com ele, votando a favor, a única alternativa para viabilizar um Governo que lhes é deixada pelo Regimento.
5. A relativa turbulência recente na instalação dos eleitos do Poder Local leva a imaginar algo parecido no caso de se verificar dispersão de votos numas eleições legislativas, mas que seria muito mais grave neste caso. A associação de ideias entre estas duas situações em grande parte tem a ver com o facto de, em tese, considerar que no essencial, os políticos do Poder Local não são melhores ou piores que os do Poder Central, mas de entender sim que todos são – e todos somos – filhos da mesma (in)cultura democrática. É então prudente prevenir (ou pelo menos minimizar) as hipóteses de controvérsia e as consequências políticas de se ter, de um lado, uma CRCV mais aberta a soluções do que o Regimento da Assembleia Nacional, este “potencialmente” bloqueador.
Para se avaliar da abertura da CRCV neste caso, vale a pena ver mais de perto o que diz a Constituição de Cabo Verde sobre a formação do Governo.
III. A formação do Governo em Cabo Verde
6. Há uma divisão de responsabilidades na formação do Governo, entre, por um lado o Presidente da República (P.R.) que nomeia o Primeiro Ministro (P.M.) e dá posse ao Executivo; e, por outro lado, a Assembleia Nacional que decide da subsistência ou não desse Governo, votando ou não a Moção de Confiança que obrigatoriamente lhe será submetida. Pelo n.º 1 do artigo 194º da CRCV sobre a formação do Governo2, verifica-se que:
a) a ponderação que o Presidente da República fará para nomear o PM obedece a critérios conexos com os resultados eleitorais, como (i) A existência de força política maioritária; (ii) A não existência de força política maioritária; e, sobretudo neste caso, (iii) As possibilidades de coligações, bem como; (iv) As possibilidades de alianças;
b) assim a CRCV admite implicitamente, diversas saídas para a nomeação do Primeiro Ministro e a formação do Governo;
c) está aberta a qualquer solução, pois dentro do quadro de ponderação referido na alínea a), a CRCV não cria obstáculos ao PR através de qualquer outra norma, incluindo norma de votação;
d) a CRCV não impõe aos Partidos Políticos um dilema entre bloquear ou comprometer-se com o Governo através de uma forma de votação.
e) Em caso de dispersão de votos, tudo dependerá então do resultado das negociações entre as forças políticas que entrarem para o Parlamento.
Com a posse do Primeiro-Ministro e do Governo, não há ainda governação plenamente legitimada: «… limitar-se-á à prática de actos estrictamente necessários à gestão corrente dos negócios públicos e à administração ordinária» segundo o nº 2 do artigo 193º da CRCV. Para isso, falta ainda a apreciação da A.N. sobre o Programa de Governo e a votação da Moção de Confiança de que depende a subsistência do Executivo recém-empossado.
7. Nesta votação da Moção de Confiança num Parlamento com muitos Partidos Políticos, e ao contrário do que se considera no ponto 6 sobre a abertura constitucional à diversidade de soluções governativas, viu-se que o artigo 131º e o n.º 2 do artigo 267º do Regimento põem aos Partidos (pontos 3 e 4) o dilema político de escolherem, entre (i) bloquear a formação do Governo e (ii) comprometer-se politicamente com ele. Assim, a A.N. restringe a abertura à diversidade de soluções implícita no n.º 1 do artigo 194ºda CRCV que assim é violado.
As consequências políticas podem ser más. Entre outras, condiciona as negociações entre os Partidos Políticos, quando os únicos marcos para tais negociações deviam ser a CRCV, os valores e programa de cada Partido; bloqueia soluções de governo; aumenta as dificuldades políticas de subsistência de um Governo nomeado pelo PR; é fonte de controvérsia, a qual poderá acentuar uma eventual crise política se o debate acontecer no “momento de decisão”.
IV. Que saída?
Isto que se acaba de dizer pode ser prevenido (ou pelo menos mitigado em parte) com a abertura que “marca” a Constituição da República.
De há muito que se tem assistido em muitos países, ao desbloqueamento político em situações de formação do Governo, através da abertura à diversidade de soluções governativas permitida pelas respectivas constituições, e não através do estreito dilema “a favor ou contra” que o Regimento criou à revelia da nossa Lei Magna. Deve-se então rever o Regimento da Assembleia Nacional, visando conformá-lo com a abertura à diversidade de soluções governativas própria da nossa Constituição, ou seja,
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1 Ver Jorge Miranda – Rui Medeiros in, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo II, Coimbra Editora, 2006
2 Transcrição: “1.O Primeiro Ministro é nomeado pelo Presidente da República, ouvidas as forças políticas com assento na Assembleia Nacional e tendo em conta os resultados eleitorais, a existência ou não de força política maioritária e as possibilidades de coligações ou de alianças”.
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Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 997 de 6 de Janeiro de 2021.