[Re]cortes no Tempo : “Valem mais para Cabo Verde cem emigrantes da américa que dez doutores”

PorAdriana Carvalho,18 jan 2021 6:57

Nota prévia Depois de uma pausa de meio ano retomo a escrita na coluna (Re)cortes no Tempo. Terminei com o tema “a palavra proibida” (EI, 15 de junho de 2020) e continuo no campo do interdito: a proibição da entrada de cabo-verdianos analfabetos nos Estados Unidos da América no início do século XX.

I

O analfabeto - decreta a livre América - não é um ser completo1

‘Abandonar a terra durante as calamidades foi a escolha (nem sempre livre) do ilhéu. O cabo-verdiano torna-se o eterno emigrante que busca em terra estranha aquilo que a sua lhe nega sistematicamente.’2

Os Estados Unidos da América foram o destino de milhares de cabo-verdianos na senda de uma vida melhor. As estatísticas revelam que, entre 1900 e 1920, foram 18.629 os que partiram das ilhas flageladas pela seca e pela inércia da governação colonial para a “livre América”3, onde o cabo-verdiano “aprende a encarar a vida por um prisma mais elevado”4.

Nos primeiros decénios do século XX, os Estados Unidos refrearam a imigração de povos de várias nacionalidades (a entrada anual de italianos foi reduzida a 300.000). Porém, a arma favorita da política de exclusão foi a inferioridade dos analfabetos5, fragilizando-se, assim, a emigração dos cabo-verdianos, que, na sua maioria, não sabiam ler nem escrever (83% da população6).

II

Factos e notícias

No dia 21 de abril de abril de 1913, o semanário A Voz de Cabo Verde publica na primeira página a notícia:

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Ao ter conhecimento que o Senado Americano tinha aprovado uma lei que proibia a entrada na “grande república” de emigrantes analfabetos, o capitão comunicou telegraficamente com New Bedford. “Perguntado se era possível desembarcar ali emigrantes analfabetos, o sr. António L. Silva, importante negociante e rico armador de navios baleeiros, respondeu: Yes”. Não obstante a resposta, o capitão Luís de Oliveira considera que “tudo leva a crer que essa lei, em breves meses, vigorará na América”. Face a essa possibilidade, adverte: “Preparam-se, pois, os cabo-verdianos. Aprendam a ler e a escrever”.

Em 29 de maio de 1913, O Futuro de Cabo Verde noticiou: “A Comissão Municipal da Praia vai criar escolas com um novo imposto”. Trata-se de “um imposto de 10% sobre as contribuições predial e industrial cobradas pelo Estado e sobre as taxas de licenças passadas pela Câmara (…), destinado ao custeio de 7 escolas de instrução primária”. Assim, “difundia-se a instrução pelo concelho, desanuviando o futuro desventuroso que espera a todos os que, não sabendo ler nem escrever a língua nacional, pensem em ir moirejar a vida pela América”.

Passaram dois anos. O professor Augusto Miranda retoma a questão no jornal O Popular de 15 de fevereiro de 1915. A propósito da aprovação no Congresso Americano de um projeto-lei que interditava a imigração de todos os estrangeiros que, não tendo a cor branca, sejam analfabetos, aconselhou os cabo-verdianos a “esforçarem-se por estancar as trevas da ignorância”, porque “a América do Norte vai fechar-nos as portas”.

O Boletim Oficial de 10 de abril de 1915 e os jornais A Voz de Cabo Verde e O Futuro de Cabo Verde, em 12 e 15 do mesmo mês e ano, publicaram a nota oficial “Emigração de naturais de África e analfabetos para os Estados Unidos da América do Norte”. Deu-se conhecimento público do veto do Presidente Woodrow Wilson, pela terceira vez, ao projeto de exclusão de imigrantes analfabetos. Considerando possível a aprovação futura do projeto, o governador vaticina que “os habitantes do arquipélago de Cabo Verde, podem num futuro não distante ver tolhida uma emigração que até ao presente se lhe tem facilitado e dela tiravam vantagem”.

O projeto fez-se lei. O “Acto de Imigração” foi aprovado pelo 64.º Congresso Americano no dia 5 de fevereiro de 1917. Proibia a entrada no território americano de “idiotas, analfabetos, imbecis, epiléticos, alcoólicos, anarquistas, pobres, criminosos, mendigos, qualquer pessoa com ataques de insanidade, tuberculosos, estrangeiros com deficiência física, polígamos e anarquistas”. A permissão de entrada na “América livre” dependia de um teste de literacia aos maiores de 16 anos que teriam de provar saber ler 30 ou 40 palavras na sua língua”.7

Fechadas “as portas douradas do livre trabalho americano”8, o governador exortou os interessados a que procurem frequentar as escolas primárias afim de aprenderem a ler e a escrever (Boletim Oficial de Cabo Verde, 20 de maio de 1917). Em observância a este apelo, na ilha do Fogo foi solicitada a reabertura da escola noturna de S. Filipe, com alunos de maior idade que pretendiam emigrar para a América do Norte.

Um ano mais tarde, no jornal O Caboverdeano, de 23 de abril de 1918, conclui-se: “Económica e socialmente valem mais, para Cabo Verde, trazem mais vantagem colectiva material cem emigrantes da América que dez doutores, e custa menos a ensinar a lêr a cem crianças, isto é, custa menos sustentar uma escola de instrução primária um ano do que formar um bacharel.”

Obs: O texto observa as normas do Novo Acordo Ortográfico com exceção das citações que respeitam a grafia original.

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Desembarque de emigrantes cabo-verdianos em New Bedford (Fotografia de O. D. H. S)9

__________________________________________________________

1 “Nota tónica” (1915). A Voz de Cabo Verde [Monteiro, Félix (Coord.) (1997), Eugénio Tavares – pelos jornais. Ed. ICL, p. 162].

2 Carreira., António (1983). Migrações nas ilhas de Cabo Verde. Ed. ICL, p.38.

3 Segundo António Carreira, entre 1900 a 1920, a emigração para os EUA foi a preferida dos cabo-verdianos (67%) em contraste com a emigração forçada para S. Tomé (0, 6 % dos emigrantes).

Carreira, António (1977). A. Estrutura Familiar. Migrações. Ed. Ulmeiro p. 36.

4 Tavares, Eugénio (1918). Noli me tangere. Ed. Imprensa Nacional, p. 10.

5 “O analfabetismo e a imigração nos Estados Unidos”, O Popular, 15 de fevereiro de 1915.

6 Apenso n.º 7 ao Boletim Oficial de 1912, p. 6.

7 Immigration Act, www.lo.gov.help. Session-2.

8 Eugénio Tavares, “A emigração para a América”. In Monteiro. Félix (1997). Eugénio Tavares – Pelos jornais…, Ed. ICL, p. 165.

9 Almeida, Raymond (1978) (org.). Cape Verdeans in American – Our story. Ed. The American Committee for Cape Verde, p. 18.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 998 de 13 de Janeiro de 2021. 

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Autoria:Adriana Carvalho,18 jan 2021 6:57

Editado porAndre Amaral  em  18 jan 2021 6:57

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