Não vai ser fácil. De todo o modo, o esforço de superação vai requerer profunda avaliação, não só do impacto decorrente do atual fenómeno, mas sobretudo para se ajuizar da assertividade da trajetória percorrida e corrigir lá onde é necessário de forma a não cometer erros que venham a agravar a fragilidade do país com o cortejo de consequências. Houvesse já uma prática rotineira que fizesse preceder os ciclos de revisão constitucional de um tal tipo de avaliação – fica a sugestão – talvez a tarefa já estivesse facilitada. E fazendo todo o sentido. Na verdade, uma nação que nas ditas condições logra ter a sua génese no parto da globalização e talvez por isso sinta na plenitude do chão planetário campo aberto à sua própria luta pela vida, é legítimo pensar que a sua afirmação deva ser consentânea com a dinâmica de transformação da geografia global dos grandes centros de poder, o que exige ferramentas adequadas para boas escolhas, tanto no plano doméstico como no exterior. Logo, avaliar para rever. E rever de forma que as mexidas na constituição não venham a limitar o campo de ação, antes, facilitá-lo para coroar de êxito a persecução do desejado destino de felicidade.
Para acertar paços nessa saga – para já há que dizer –, a pandemia não parece vir somente para espraiar o veneno da desgraça sobre o cabo-verdiano, terá vindo também para lhe revelar acerto nas questões sociais, o que já é lado bom, porquanto doravante vai-lhe permitir valorizar e perceber melhor quão grandiosa é neste campo a obra realizada nas quatro décadas e meia de regime soberano, quanto não se deve esquecer o amargo do ponto de partida, o saltar de atropelos para chegar alto, como dizer, coroar de bênção a soberania. Bastará ver: o que seria a resistência ao choque se durante esse período o país não se permitisse apetrechar de uma vasta rede de estruturas de saúde com competente pessoal a funcionar; como seria possível dar seguimento aos procedimentos profiláticos se em todas as ilhas não houvesse, como já há, uma boa cobertura de distribuição de água para consumo e higienização; se não houvesse uma boa rede de estradas, traçadas nas piores condições de relevo, para manter a fixação das populações nos seus locais-origem e evitar grandes concentrações nos centros urbanos; uma ampla cobertura de energia elétrica a possibilitar teletrabalho e a sustentar sinais de televisão para facilitar pertinente informação, viabilizar a prevenção. E somado ao progresso feito no domínio da irradicação da fome e literacia, como seria se nada disso estivesse a existir? A realidade que se vê, afortunadamente, é que aí não se permitiu o desastre, antes, a revelação do cabo-verdiano já de outra têmpera ganhando no confronto com dois `demónios´: pandemia infernal e seca das mais rigorosas. É um facto.
Outro, já é o lado mau, o comportamento da economia onde a pandemia veio pôr a nu uma fragilidade já perturbadora para as aspirações do país, não se sabendo até onde vai sua verdadeira extensão e profundidade. Logo, esta questão: por que no campo social se consegue erguer edifício tão pautado de sucesso mas não no económico que vai ao desastre face ao choque? Aqui é preciso ir às raízes e não ficar por recriminação de sucessivas lideranças que não leva ao verdadeiro abcesso com potencial para gangrenar todo o ambiente da construção. É que se se for escavar com mais profundidade, a prática vai mostrar: lá onde a ação das lideranças se sujeita à conformidade dos ciclos governativos, o resultado quase sempre é bem-sucedido, como acontece no quadro de facilidades da área social; quando sua boa-fé leva-lhes a assumir projetos já com tempo de execução a extravasar o ciclo de governação, em domínio descoberto de responsabilidade institucional, não raro a tentativa choca na programática da alternância produzindo recriminação, quezília que não abona a construção. Se não tenta, corre o mesmo risco, já na presunção de cumprimento omisso. Uma situação de facto que atraiçoa o exercício de governação com pesadas consequências para o país.
Percebe-se que raízes penetrando em cano vazio, acabam por ganhar volume e provocar rebentamento com nefastas consequências. Ora, o país não deve permitir-se a semelhante estado de coisa, antes, obrigar-se a rever o ordenamento político-administrativo para não deixar a descoberto – como vem deixando – um campo de intervenção tão fundamental para colocar em devido patamar o processo de desenvolvimento. É que lá onde deveria existir uma instituição com a função soberana e cerebral para pensar e delinear as estratégias para o amplo horizonte da corrente geracional, o que há é um vazio, um buraco onde as raízes do mal se engrossam para bloquear o processo, o que se vê num sem número de exemplos. Porém, o génio da nação saberá como dar resposta ao problema e não se fique pelos limitados gabinetes de planeamento que acabam por sucumbir na alternância dos ciclos governativos.
Então é esta a questão: como o agir ou não agir na tentativa de contornar o buraco estará a afetar o país? Perceba-se com os seguintes exemplos: a razão por que não se vai ao ordenamento-quadro-geral do território para potenciar os fatores do desenvolvimento tem a ver com isso, a tarefa que não cabe na estreita cerca temporal dos mandatos governativos, ficando-se por pequenos ordenamentos que, integrados, nunca se sabe como poderão encaixar na moldura de uma boa arquitetura; a mitigação do constrangimento da descontinuidade territorial que nas ilhas tanto transtorna a iniciativa dos agentes económicos, na própria circulação e na circulação dos seus bens, esbarra no deixa-andar, quando a estreiteza da cerca induz a iniciativas que nem sempre escapam à contramão, como a tentativa de fazer cada ilha uma região que acentua os efeitos da descontinuidade; grandes medidas que congelam no tempo, como descentralização governativa, regionalização, racionalização na gestão da geografia habitacional e tantas outras, vai-se ver, congelam porque os contornos da ação a desenvolver também excedem a estreiteza da cerca. Logo, tape-se o buraco e tenha-se então a produção das melhores coordenadas para dirigir a corrente até ao desejado destino, ciente de que para essa tarefa é fundamental tempo e paciência até se possuir uma instituição especializada, consolidada, devidamente capacitada e vocacionada para acompanhar e compreender a dinâmica de transformação do mundo de modo a extrair dela os melhores fatores com consequência na arquitetura que corresponda às aspirações dos cabo-verdianos.
Atingido esse patamar, então sim, um tempo novo inicia, a ação governativa estará a sustentar-se dos melhores argumentos, o ambiente quezilento desvanece, o país funcionará melhor, haverá campo fértil para gerar uma economia sólida e capaz de resistir aos choques. E, mais que isso, a unidade da nação começará a crescer, para no futuro poder dizer-se: bem que se tapou o buraco!
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1009 de 31 de Março de 2021.