EDITORIAL : Quer-se debates mais construtivos

PorHumberto Cardoso, Director,29 mar 2021 7:17

A primeira impressão que se tem ao assistir ao primeiro debate entre os líderes partidários em período de preparação para as eleições legislativas é que Cabo Verde não parece estar no meio de uma pandemia.

Os argumentos trocados, as críticas feitas e as propostas apresentadas pouca atenção deram ao facto concreto e presente de que o país vive uma recessão sem precedentes, acumulou uma enorme dívida pública e as perspectivas de retoma são incertas e dependentes de como outros países irão dinamizar as suas economias. Ao longo do debate a abordagem escolhida pelos diferentes actores acabou por reforçar a ideia de que o discurso político – cheio de chavões como inclusão, empreendedorismo, clusters e hubs, futuro digital e de ideias fixas como mobilização de água para agricultura, terminais de cruzeiros e aeroportos internacionais sem um quadro estratégico claro – está divorciado da vida real. Passa ao lado da realidade de que as pessoas querem a possibilidade de ter um emprego de qualidade, de se qualificarem através de uma educação e formação adequada e de prosperarem num ambiente ordeiro e não discriminatório. Para isso requerem segurança pessoal, mas também jurídica e condições sanitárias que lhes permita qualidade de vida.

Tal discurso contribui para uma postura das pessoas e da sociedade perante os problemas do país que passa por minimizar ou desvalorizar os formidáveis obstáculos que teimam em manter-se no caminho para o desenvolvimento. As persistentes vulnerabilidades do país e precariedade na vida das pessoas deviam estar aí para ajudar a reconhecê-los e a criar vontade para os superar. Vê-se, porém, pela forma como a pandemia do coronavírus tem sido assumida que aparentemente nem com uma ameaça maior e de natureza existencial consegue-se sacudir a modorra.

As recentes reivindicações acompanhadas de ameaças de greve que tem aparecido nas últimas semanas deixam claro a impressão de que aparentemente não se reconhece que o país vive dificuldades extraordinárias. O corte com a realidade presente e futura é mais notória porque vêm particularmente do sector público, precisamente de onde nos meses de estado de emergência e de quatro lay-offs que reduziu o rendimento de milhares de trabalhadores a 70%, os salários dos funcionários mantiveram-se a 100%. E ninguém protesta por causa disso.

Sem assunção da gravidade do problema em mãos não há como trazer à tona sentimentos mais altruísticos e solidários, atenuando impulsos mais reivindicativos, nem se é capaz de mobilizar energia para fazer da crise uma oportunidade e encetar reformas profundas que serão necessárias para redinamizar a economia. O facto de, em algumas sondagens, a pandemia ter aparecido em lugares muito abaixo nas preocupações dos caboverdianos denota o quanto o discurso político no país tem ajudado a dar uma falsa perspectiva da realidade vivida. Estar-se a viver um ano eleitoral em tempo de pandemia, agravou a situação ainda mais.

A tendência é de reproduzir discursos e práticas políticas que, numa espiral ascendente de promessas estimulado pelas duras críticas da oposição apontando a não realização, deficiente realização ou inadequação das soluções da governação, põem enfase em obras e na distribuição de rendimentos. A dialéctica entre as forças aí estabelecida não leva nem ao melhor conhecimento da situação do país nem a mais cooperação para enfrentar os problemas. Pelo contrário, tende a excitar ainda mais o sentido reivindicativo das pessoas e da sociedade quando menos dele se precisava e mais solidariedade se mostrava necessário.

A falta da adequação do discurso político produzido aos problemas do país e à realidade do mundo é vista por uns como oportunidade para se oferecerem como alternativa na governação e por outros como prova de falência da democracia, do seu sistema de partidos, do seu pluralismo, das suas instituições e das suas leis. Pelo debate vê-se que há projectos de poder diferentes. Não é claro para muitos como é que as propostas de governação divergem substancialmente. Ninguém parece querer disponibilizar-se em ver o país numa outra perspectiva não obstante as crises recentes e a pandemia que revelaram profundas vulnerabilidades das populações. Nem tão pouco quer-se ter em devida conta a conjuntura internacional que tornou evidente que voltar a crescer irá exigir reformas inovadoras, uma outra atitude e muita solidariedade.

Neste ambiente o cepticismo de alguns em relação aos partidos parece justificar-se. Daí os ataques aos partidos que acabam por fragilizar o sistema democrático e que, a exemplo de outros países, pode abrir caminho a líderes tendencialmente autocráticos e a derivas iliberais com baterias apontadas no pluralismo, na liberdade de expressão e de imprensa e na independência dos tribunais. Essa via, porém, não tem que ser a única possível para os descontentes com o funcionamento da democracia e com a aparente falta de alternativa.

Tocqueville no seu livro A Democracia na América fala no papel das associações de todo o tipo profissional, social, civil e político, naquilo que hoje se chama de sociedade civil, em ancorar o sistema democrático. Para ele a democracia não tem que ficar só pelos cargos e órgãos eleitos. Precisa da participação activa, atenta e fiscalizadora dos cidadãos e das suas associações para que a sua integridade baseada na liberdade, no pluralismo e no primado da lei não seja posta em causa. Atirar-se contra as instituições da democracia descredibilizando-as, por que descontente com o seu funcionamento num determinado momento, é como dar um tiro no pé. E a história mostra que depois de se fazer ruir as instituições o caminho fica aberto para candidatos a “salvadores da pátria” todos eles prontos a sacrificar a liberdade em nome da sua ordem e da sua justiça.

A democracia também é ancorada nos seus fundamentos quando, como se viu recentemente na América de Trump, maiorias conjunturais são limitadas no seu poder de desestruturação institucional do sistema político vigente por órgãos independentes. O Supremo Tribunal de Justiça, a comissão eleitoral e a instituição militar efectivamente impediram que a legitimidade das eleições de 2020 fosse posta em causa e que não se verificasse a transferência de poder para o candidato vencedor. O exercício independente, competente e com sentido de serviço público das suas funções pelas magistraturas judiciais e do ministério público e pelos titulares de órgãos como o banco central, comissão eleitoral, autoridades reguladoras, comissão de dados e outras entidades afins é de maior importância para a credibilidade do sistema e para manter a confiança dos cidadãos. Devem ser protegidas de interferências desestabilizadoras das suas funções.

Ainda estão por realizar mais dois debates antes das legislativas e a campanha eleitoral só começa no dia 1 de Abril. Deve haver mais pressão das pessoas e da sociedade civil para que o discurso produzido pelos candidatos reflicta mais a situação real do país neste tempo de pandemia e de recessão mundial na perspectiva de se encontrar as melhores soluções. O momento não é só dos partidos. É também de todos os cidadãos e suas organizações. E não se trata só de votar no dia 18 de Abril, mas de se fazerem ouvir com responsabilidade e um sentido apurado de que é preciso preservar as virtualidades do sistema democrático para que o futuro do país se realize com ganhos para todos.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1008 de 24 de Março de 2021. 

Concorda? Discorda? Dê-nos a sua opinião. Comente ou partilhe este artigo.

Autoria:Humberto Cardoso, Director,29 mar 2021 7:17

Editado porAndre Amaral  em  30 dez 2021 23:20

pub.

pub
pub.

Últimas no site

    Últimas na secção

      Populares na secção

        Populares no site

          pub.