Quando a unidade pode transformar sonho em realidade

PorSilvino de Oliveira Lima,28 jun 2021 7:33

Engenheiro Civil – antigo Ministro das Obras Públicas
Engenheiro Civil – antigo Ministro das Obras Públicas

Hoje, talvez devido à pressão crescente sentida na labuta do dia-a-dia, o relato de sonho que mais se escuta já não é o que vem do subconsciente caótico singular estéril; mais se escuta é o que realmente permite jogar com o tempo escavando profundo nos acervos da imensidão do campo social afim-de descobrir as bengalas mais apropriadas para `escalar montanha´, no pico a presunção do desejo consumado, tanto mais elevado quanto partilhado, um país inteiro, que nem possuído de atributo de santo nem de bojão divino, podendo até fazer milagre.

Este é sonho bom, modo alto, bem focado na realidade concreta, o relato já podendo soar música a contrastar aquilo que se expressaria por `sonhar acordado´, modo baixo, ironia a ridicularizar a inação, falsa ousadia, outras fraquezas que lá donde vêm o resultado seria mesmo isso, simplesmente estéril. Seria então correto no dual de sonhos catalogar os países conforme a predominância de um desses modos? Talvez.

Seja como for, Cabo Verde é bom exemplo dos que não cola nos extremos. De facto: por um lado, pôde sempre encontrar os buracos da sobrevivência, saltar fora superando vicissitudes, alcançar picos como a independência e a liberdade democrática; por outro, reconheça-se, tais picos não são ainda estâncias de bem-estar para se distrair a cuidar da pele fustigada pelo tempo, longo ainda o caminho por percorrer. No entremeio, porém, pouca razão para o relato soar música. Já soou naqueles momentos históricos que apaixonaram multidões, provando que a nação reconhece as boas escolhas, projetos com potencial para, efetivamente, provocar salto de progresso. No entanto, quando a música desaparece de forma tão continuada, facto das últimas três décadas, há que acautelar, quando não, está-se a desconsiderar a dureza dos sinais mais recentes: a pandemia que espelha quanto é preciso firmar a economia em base estruturada e sustentada; o requinte de sofisticação ora exigido pelas campanhas a visar o desinteresse cada vez maior pela política. Portanto, é uma necessidade encontrar novos paradigmas, projetos para repetir história doutras épocas.

Importa observar entretanto: para além do impacto com foros de guerra global, a pandemia ainda veio para catalisar grande processo em aceleração, o redesenho da ordem mundial que desloca para leste o centro gravitacional dos poderes tornando complexa a situação geral, ainda que dinâmica e abonatória para Cabo Verde. Desses poderes, talvez o que mais interessa ao país é a tecnologia e o capital: tecnologia, já que permite resgatar o país da vulnerabilidade das azáguas e torna-lo sustentável; capital, importando saber, para além da inerente função nuclear, como se redesenha seu pousio, uma vez que se move rapidamente do poder dos estados para mãos de multibilionários cada vez mais numerosos e poderosos, uma realidade objetiva que o realinhamento estratégico não poderá ignorar.

Portanto, duas grandes razões para novos paradigmas do processo de crescimento: uma, a mobilização da "tropa", tê-la motivado no desafio da construção do futuro através de projetos onde ela se revê; outra, o engajamento que deve ser consentâneo com os processos globais e não falte luz e recurso para a perspetiva de porto seguro. Onde estará então o nó górdio que desatado fio-a-fio já possibilite o cumprimento de tais condições? Poderá haver dúvida, porém, ousadia ou não, quase certo é que esteja na interface dos dois grandes espaços que enformam o arquipélago: o territorial e o marítimo, na articulação podendo constatar-se defeito na arquitetura natural em algumas ilhas que transtorna a mobilidade, o equilíbrio demográfico, oportunidades de vida dum modo geral, ação governativa para gerir um sem número de problemas. A correção do defeito talvez venha a ser a antítese para contrariar um processo corrosivo que a longo prazo (população já de alguns milhões) periga a expetativa em torno do turismo: nas planas, pressão sobre as praias; nas montanhosas, sobre o ecossistema verde do interior. Daí que a correção pareça fundamental para desatar o nó.

De todo o modo, mais importante ainda é saber como uma ampla acção cirúrgica na correção da arquitetura poderá, efetivamente, vir em abono da realização do velho sonho que é maximizar o potencial geoestratégico do arquipélago. Aqui, nenhuma dúvida, porque da mesma forma que para casa familiar a arrumação é ação primeira na hora de receber visitante, na casa maior que é todo o arquipélago, mais que primeira, ela é superlativa, já tendo em conta a expetativa de visitante que vem para consumir ou investir, arrumação ora significando ganho de competitividade. É aqui que parece estar então o verdadeiro nó górdio, desatá-lo de forma a melhorar a interface entre aqueles espaços é extrair abcesso com potencial para gangrenar as expetativas com relação ao futuro, mais sensível, evidentemente, a partir de uma enésima geração. Onde estará então o mal mais gravoso para se priorizar a intervenção do `bisturi´?

Quem já teve a oportunidade de fazer de barco uma volta completa à ilha de Santo Antão (segunda territorialmente), bem perto das ciclópicas cercanias montanhosas que se erguem de forma abrupta relativamente ao mar, sabe quanto aí é também ciclópico a dimensão do problema que envolve uma população a quem o resgate das contingências da seca obriga a crescer até ao precário limite de sua sustentação, para, a partir daí, se tornar ninho de formação de quadros para servir no exterior, como aliás já se tornou. Pergunta-se agora: foi este o cenário que o percurso das cinco décadas de soberania quis visar, ou será traição as circunstâncias que obriga a processo de tão difícil retorno? A verdadeira resposta poderá estar nesta última. Contudo, esconde-se no cenário uma situação que a prazo longo poderá ser demasiado custoso para o país. E para que não aconteça, longe de pensar que toda aquela cercania natural foi ali colocada como coisa que nada presta para castigar os seres que para aí fossem habitar, o sonho em modo alto obriga-nos agora a assumir que afinal tudo aquilo é `plasticina´ de alto valor para uma arquitetura que quis a natureza fosse deixada incompleta, forma de testar a coragem e a capacidade do habitante para levá-la a término feliz. Será assim?

Seja como for, a arrumação do país para maximizar seu potencial geostratégico irá exigir vastos quilómetros quadrados de área plana para que haja, de facto, vantagem competitiva e não seja um problema a existência de espaço para acomodar nas melhores condições todas as exigências da futura demanda, seja externa ou doméstica. Ora, a única região que parece capaz de concorrer com esse objetivo, sem agravamento, quer nos equilíbrios socioeconómicos, quer no meio-ambiente, região que pode somar território e não subtraí-lo, é precisamente Santo Antão, ilha possuída da tal ‘plasticina’, litoral de dezenas de quilómetros de montanha totalmente inóspitos, campo imenso para delinear com engenho e arte uma nova arquitetura, planície imensa estendendo sua vantagem até à ilha de S. Vicente. Um facto extraordinário. Assim, entre sonhar no modo baixo e modo alto, preferiria o superlativo do alto. Por uma razão muito simples: é possível o potencial sonhado tornar-se realidade para júbilo da nação cabo-verdiana, como noutros tempos, oportunidade para, mais uma vez, se rever num grandioso projeto. 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1021 de 23 de Junho de 2021.

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Autoria:Silvino de Oliveira Lima,28 jun 2021 7:33

Editado porAndre Amaral  em  10 abr 2022 23:20

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