Já era geral o cansaço com uma presidência feita de sobressaltos, euforias e fantasias. Almejava-se um presidente que, como disse Leon Panetta, um ex-secretário de defesa americano, priorizasse o que é importante e não o que no momento obceca as redes sociais, que evitasse brigas sem fim e sem saída com opositores e que fosse capaz de focar nas consequências da acção imediata e de também antever os problemas distantes que só podem ser enfrentados com planeamento de hoje. O sucesso conseguido nos últimos meses pela administração Biden no controlo da pandemia da covid-19, na vacinação em massa e na implementação de medidas de apoio à economia e de garantia do rendimento das pessoas veio confirmar as vantagens do regresso ao que é previsível e até ás vezes “chato”.
Muitos noutros países com líderes que preferem fazer campanha em vez de governar, transformar actos de governação em espectáculo e distorcer a realidade para garantir a sobrevivência política certamente que gostariam que lhes acontecesse o mesmo. O retomar de uma certa normalidade seria para eles bem-vinda, a começar pelo que o presidente Jorge Carlos Fonseca no seu discurso na tomada de posse do novo governo chamou de rotina democrática, ou seja “nada mudou, há procedimentos que se repetem, gestos que parecem cristalizar-se, e, citando Bobbio, de transformar a democracia em costume, a única forma de ela adquirir o estatuto de irreversibilidade. A experiência de derivas iliberais e até anti-democráticas de contestação das eleições e ataques ao sistema judicial e aos órgãos de comunicação social confirma isso. Mostra como o não cumprimento das normas democráticas, o conluio para contornar os procedimentos existentes e a ausência de debate crítico deixam as sociedades completamente expostas. Em momentos de crise profunda como a de actual pandemia é a própria sobrevivência que pode ser posta em causa. As situações extremas vividas nos Estados Unidos, no Brasil e na Índia são ilustrativas a esse respeito.
A tentação de fugir dessa rotina democrática é grande. Nos últimos anos tem-se tornado maior sob a pressão populista e a tendência de alguns partidos tradicionais em se apropriarem de algum discurso anti-sistema. Quando não é discurso são as práticas que fugindo às normas e procedimentos existentes põem em causa as instituições democráticas e alimentam o descrédito em relação ao papel dos partidos políticos. Tem acontecido com demasiado frequência em várias democracias com consequências mais ou menos graves. Em Cabo Verde e nas últimas semanas viu-se o que aconteceu à volta da sessão constitutiva da assembleia nacional. O papel do deputado saiu desvalorizado aos olhos do público, a liderança partidária passou uma imagem de fragilidade e a estabilidade futura do governo tornou-se motivo de preocupação na sequência de pronunciamentos de deputados da maioria.
Tudo porque não se seguiu com rigor esperado todo o processo que seguindo o regimento e os estatutos dos deputados deve presidir à constituição dos grupos parlamentares com a sua direcção própria seguida da indicação dos membros da mesa e votação na plenária da assembleia nacional. Com isso baralhou-se por completo a relação entre os órgãos partidários e os deputados, enfraquecendo uns e outros e pondo em risco a coesão interna. Espera-se é que haja um esforço de ultrapassar o mau passo inicial e compreender que fazer política é mais influenciação e compromisso do que imposição. O eleitorado votou estabilidade governativa e é da responsabilidade de todos, com o respeito pelas regras democráticas e pela dignidade dos cargos garantir que assim seja, em particular nestes tempos de pandemia e de crise económica e social.
Também o processo de indigitação e formação do novo governo não ficou isento de pequenas tensões, perplexidade perante certas iniciativas e falta de clarificação quanto ao estatuto do governo. Não devia ser assim considerando que se trata do VIII governo constitucional e a rotina democrática já devia ter sido estabelecida. A pressa em chamar os partidos para se pronunciarem sobre a indigitação do primeiro-ministro quando ainda nem os resultados oficiais das eleições eram conhecidos deixaram muita gente perplexa. O desejo inexplicável de se ter o elenco governamental o mais depressa possível, quando se sabe que o governo em exercício só é demitido no final da legislatura e essa data é constitucionalmente o vigésimo após a publicação dos resultados eleitorais, tornou as coisas ainda mais surrealistas. Fez lembrar o desorientamento verificado em 2016 na sessão constitutiva da assembleia nacional com a suspensão dos futuros membros do governo e naturalmente que leva as pessoas a perguntar porquê repetir o episódio.
Agora com o novo governo empossado, mas ainda por ser apreciado o seu programa de governo no parlamento e aprovada a moção de confiança, assiste-se a um nível de protagonismo dos membros do governo que não seria de esperar nesta fase. Constitucionalmente o governo está em gestão, ou seja, limitado à prática de actos estritamente necessários à gestão corrente dos negócios públicos e à administração ordinária. Éestranho, por exemplo, ver ministros com pastas recém-criadas a solicitar encontros ao presidente da república e a apresentar políticas do sector, quando nem o programa do governo foi apresentado ao parlamento que é o órgão de soberania perante o qual o primeiro-ministro e os seus ministros são politicamente responsável.
A predisposição em não cumprir com a rotina democrática e em não deixar que a democracia se transforme num costume não traz qualquer benefício ao país. Pelo contrário, exacerba os protagonismos pessoais, faz da política um espectáculo, rouba tempo para se estudar as questões, não se fazem as devidas ponderações das questões e nem se encontram e se comunicam as melhores soluções. De passagem baralha a relação entre órgãos de soberania com consequências tanto na imagem pública de uns e outros – há quem pareça mais forte e quem se mostre fraco ou submisso – como na própria eficácia do sistema de separação de poderes, fundamental para o funcionamento na democracia.
Para alguns, como aconteceu noutros países, pode parecer uma governação criativa, inovadora e propiciadora de momentos apaixonantes e por isso atractiva. A história recente mostra como tudo isso é enganador e como a eficácia governativa é seriamente posta em causa quando não se cumprem as normas e se passa por cima dos procedimentos existentes. Mas não é só eficácia que se perde. Com essa desconstrução da cultura democrática e das suas instituições também se compromete a liberdade, a confiança e a solidariedade de que tanto se necessita nos tempos actuais.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1018 de 2 de Junho de 2021.