No interior das democracias a luta é mais renhida e sentem-se os efeitos da crescente desigualdade social e o seu impacto na quase ruptura do contrato social. Perda de confiança nas elites do país, descrédito das instituições e a tendência para uma certa anomia social com graves consequências para o futuro são sintomas do que de muito grave vem acontecendo nas democracias e que efectivamente as põe em causa.
Não estranha que por vários países democráticos já se tenham verificado derivas de natureza iliberal que procuram constranger alguns direitos fundamentais como a liberdade de expressão e a liberdade de imprensa e pôr em causa a independência dos tribunais. Até se constatam outras de carácter mais populista que pelo exacerbar do papel do líder e de protagonismos pessoais em detrimento de formas institucionalizadas de agir e proceder lançam o descrédito no sistema democrático, na classe política e na própria política. Também em Cabo Verde são visíveis as forças, as narrativas e os comportamentos que põem em causa a democracia e tendem a desacreditar os processos democráticos de resolução de conflitos.
Não têm tido muito sucesso e o país tem conseguido manter-se em boa posição nos rankings internacionais de liberdade e democracia. E não há aqui qualquer equívoco como poderão pretender alguns mais cépticos ou cínicos. O que aconteceu nas legislativas de há dois meses atrás e já se tinha verificada nas autárquicas de Outubro mostra uma democracia a funcionar com eleições por todos aceite como justas e livres. É verdade que há deficiências no sistema, muita dependência do Estado e uma classe política mais inclinada a protagonismos pessoais do que a capacitar-se para melhor enfrentar os desafios do país.
Custa acreditar que não se tomem esses momentos de relegitimação do poder democrático como prova de que afinal as coisas não estão tão más como certos populistas querem fazer crer e agir decisivamente para credibilizar as instituições. Nesse sentido ajudaria muito uma outra postura pública dos políticos e uma atitude mais crítica em relação a comportamentos que procuram contornar normas e procedimentos e também mais ponderada no tratamento das questões complexas que se colocam a um pequeno país, de população reduzida e com poucos recursos naturais. Infelizmente não é o que acontece.
Os últimos acontecimentos em que se tem um deputado da nação supostamente a agir como advogado a orquestrar a fuga para o exterior de alguém condenado nos tribunais cabo-verdianos são dos casos que põem em causa tanto a democracia com o Estado de Direito. Pelas declarações feitas pelo próprio à Inforpress fica-se a saber que entre os planos de fuga constavam a possibilidade de uma saída via marítima a ser facilitada com recurso à contratação de ex-fuzileiros. Impunha-se extrair a pessoa que se encontrava em regime de prisão domiciliária e conduzi-la à embarcação que a levaria para fora contornando de uma forma ou outra a vigilância policial.
A extracção acabou por ser de forma mais expedita através de um voo em direcção a Lisboa atravessando as fronteiras do país sem se deparar com obstáculo que normalmente uma pessoa em falta com a justiça deveria encontrar. A falha geral do sistema que se verificou é das situações que levam à profunda descredibilização de todas as instituições, porque foram afectados não só os sectores da justiça e da segurança que veem a sua eficácia questionada como também o próprio sistema político.
O envolvimento de um titular de um órgão de soberania que apresenta a sua participação na fuga à lei e à justiça como um acto político e o apoio que de imediato recebe da força política parlamentar a que pertence não deixa de levantar questões sérias quanto ao nível de adesão de certos sectores políticos à ordem constitucional vigente. A chamada causa da “não justiça” que agora o presidente da UCID veio proclamar como sendo também a causa do seu partido sempre se configurou um ataque ao sistema judicial do país sob a capa de acusações feitas a alguns juízes.
Inquéritos do Ministério Público e do Conselho Superior da Magistratura não encontraram indícios que corroborassem as denúncias feitas e até agora não se conseguiu levar avante o julgamento do autor das mesmas, onde eventuais provas poderiam ser apresentadas, devido a expedientes diversos. Actualmente o obstáctulo é a imunidade parlamentar. Seria de esperar que a condição de deputado levasse a maior contenção nos discursos, mas como as intervenções na última reunião plenária e os últimos acontecimentos mostram, em vez de se trabalhar para melhorar o sistema democrático e o Estado de Direito, age-se para desacreditá-lo completamente. E já não é só uma pessoa a protagonizar a causa, mas também um partido político com assento parlamentar.
Hoje todas as crianças de tanto ver filmes do Homem-Aranha conhecem bem a célebre frase de que “com grandes poderes vêm grandes responsabilidades”. Quem pretende não a conhecer são alguns políticos e dirigentes públicos que se vêem hoje com grandes poderes e rejubilam com os privilégios associados, mas não se mostram tão dispostos a assumir as responsabilidades que resultam do exercício dos cargos. Em vez de servir o interesse público, servem-se dos cargos e ressentem-se com qualquer tentativa de os levar a prestar contas por algo que corra menos bem. A verdade é que a democracia não pode funcionar sem assunção de responsabilidade. Muita descrença na democracia provém do que os cidadãos veem como fuga sistemática à responsabilidade num quadro em que a política é cada vez mais espectáculo e protagonismo individual. Há que quebrar este padrão de comportamento para que a democracia crie resiliência e continue a consolidar-se não obstante as investidas dos seus descontentes e inimigos.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1022 de 30 de Junho de 2021.