Estranhamente, dir-se-á, uma vez que o motivo da escolha nada tem a ver com a questão que lhe foi colocada pelos recorrentes, prende-se antes com a circunstância de o TC ter escrito que um putativo candidato a primeiro-ministro pode ganhar as eleições e não ser nomeado pelo Presidente da República em certas situações, por exemplo, numa circunstância em que o Partido daquele putativo candidato não tenha a maioria absoluta no Parlamento e não consiga um aliado para perfazer a maioria (itálico nosso).
Aí está: o TC tomou posição expressa sobre uma das questões políticas mais sensíveis da formação de um Governo, aceitando que um partido pode ganhar as eleições e não governar. Dito assim de forma tão lapidar, os partidos políticos que se cuidem e que não venham dizer que não foram avisados.
A instalação do TC foi um feito importante para o país e, apesar de não ser este o local para se dissertar sobre as suas decisões e o impacto que as mesmas tiveram no ordenamento jurídico, sempre se dirá que o TC renovou a jurisprudência nacional, tem vindo a posicionar-se numa perspectiva expansiva do exercício dos direitos fundamentais e amparou o amparo, que estava moribundo. Por isso, os Juízes Conselheiros e o pessoal de apoio merecem o meu respeito pela qualidade do seu trabalho. Obviamente, isto não exclui pontos de vista diferentes e o presente texto marca uma discordância pontual.
Regressando à eleição dos membros das referidas mesas, eram duas as questões fundamentais que o TC tinha de resolver: a primeira, saber se o presidente da assembleia municipal é eleito por sufrágio directo ou indirecto; a segunda, determinar se deve ou não respeitar-se na constituição eleitoral das mesas, o princípio da proporcionalidade.
À primeira questão respondeu que a eleição é indirecta, o que corresponde ao que sempre defendi, pelo que nada tenho a acrescentar, a não ser que se trata de uma velha questão, de quase três décadas. Com efeito, foi em Mindelo que o problema se colocou após as eleições de 1991, não sendo exacto afirmar-se o seu surgimento em 2004, como já foi dito e escrito, mas percebo que a memória institucional tenha falhado.
Já a segunda questão – a proporcionalidade – afigura-se-me merecedora de umas linhas argumentativas, e surge uma vez que o legislador não regulou expressamente a matéria. Então, como resolver a omissão? A prática, na grande maioria dos municípios, caminhou no sentido de a mesa ser constituída apenas por membros da lista vencedora. Já tive oportunidade de criticar este estado de coisas e, recentemente, numa conferência proferida sobre os municípios, antes da realização das eleições de 25 de Outubro, desafiei os eleitos a reverem esta situação. Confesso: sem sucesso.
A mesa da assembleia municipal dispõe de importantes competências, que exerce na plenária e no seu intervalo; por seu turno, os seus membros dispõem de competências próprias, sendo de realçar o poder de polícia do presidente da assembleia e o de coordenar as comissões permanentes.
O exercício das competências da mesa tem que ser transparente e não basta sê-lo; tem que parecê-lo, sob pena de ficarem no ar dúvidas sobre se as deliberações tomadas e os contactos institucionais feitos, designadamente se a respectiva motivação respeitou o interesse público municipal ou teve como móbil interesses do grupo que governa o município. A este propósito, basta atentarmos no facto de que a mesa mantém um relacionamento estreito com os executivos municipais e, frequentemente, com a administração central, bem como com entidades estrangeiras que são sujeitos de relações municipais internacionais. Esta circunstância pode levar, aqui e ali, a questionamentos sobre a transparência da sua actuação, quando constituída por membros de uma só lista, e suscitar inquietações se as informações transmitidas aos membros da assembleia não foram filtradas em prejuízo da oposição. Ou será por acaso, mero acaso, que na grande maioria dos municípios, a lista maioritária faz questão de que a mesa seja constituída apenas pelos seus membros.
Não deixa de ter um sabor amargo a afirmação do TC em como uma composição pluralista da mesa é «desejável», e a invocação do exemplo da Assembleia Nacional como «modelo referencial», para depois afastar a sua aplicação à mesa da assembleia municipal, sem nos explicar porquê; o que se espera de qualquer Tribunal, é que quando invoca uma solução como boa, a adopte; se o não fizer, ao menos que nos diga as razões do seu afastamento. Debalde procuramos.
O TC labora no equívoco de considerar que a composição pluralista da mesa «tenha sido praticada em Cabo Verde ao longo das três décadas de Poder Local democrático». É exactamente o contrário, salvo excepções. Apenas dois exemplos recentes: no mandato 2016 – 2020, em 2/3 dos municípios as mesas foram constituídas por membros de uma só lista; neste mandato (2020-2025) aconteceu o mesmo: também 2/3.
O Brasil adopta expressamente o princípio proporcional no que tange à constituição da mesa e este é o caminho adequado. Uma certa interpretação do princípio maioritário tem levado à exclusão da oposição na gestão política e administrativa da assembleia municipal e, no caso de São Vicente, à exclusão do partido mais votado. A pergunta que perturba é a de saber se as democracias modernas são ou não inclusivas.
A comparação feita pelo TC com a formação do Governo não é a mais feliz, não só porque comparam-se coisas incomparáveis, mas também pelo facto de um princípio fundamental dos sistemas constitucionais do pós-segunda guerra mundial ser a estabilidade política, existindo para tanto, muitas vezes, pressupostos constitucionais da formação de um Governo, o que não acontece com a assembleia municipal.
A mesa deve ser o espelho da vontade popular representada na assembleia municipal, salvaguardando as limitações óbvias decorrentes do número de lugares poder ser inferior ao número de listas; defender o contrário é, salvo o devido respeito, inverter as coisas; em rigor, o TC deu cobertura à prática existente e ela é má.
Num país pouco propício a conviver com as diferenças políticas, a tendência é para a exclusão do outro, agora com cobertura jurisprudencial. Se o legislador resolver sair de cena, o palco fica montado para deliberações maioritárias musculadas. Como as coisas estão, a exclusão do outro, por mais chocante que possa ser e parecer, ganhará raízes e a dimensão inclusiva da democracia não passará de miragem para os académicos se entreterem.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1026 de 28 de Julho de 2021.